Recurso ilegítimo

Leia voto de Marco Aurélio na ADPF do caso Sean

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13 de junho de 2009, 9h49

O PP se atrasou e se equivocou ao tentar manter o garoto Sean Goldman com a família brasileira por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Como este não é o recurso adequado e outros três já estavam em andamento contra a decisão de primeira instância que determinou a entrega da criança ao consulado dos Estados Unidos em 48 horas, o ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, extinguiu a ADPF na última quarta-feira (10/6). Ele foi acompanhado por unanimidade pelo Plenário da corte.

Em seu voto (leia abaixo), Marco Aurélio enumera um pedido de Habeas Corpus, uma Ação Cautelar e um pedido de Mandando de Segurança apresentados ao Tribunal Regional Federal da 2ª Região com o mesmo tema. Neste último, o tribunal concedeu liminar para que o garoto de nove anos fique no Brasil. Esta liminar foi dada poucas horas antes da decisão do Supremo.

Para o ministro Celso de Mello, a liminar do TRF-2 impede a análise da ação proposta pelo PP ao Supremo. O presidente da corte, ministro Gilmar Mendes, disse que o Supremo até poderia discutir o uso da ADPF no caso Sean, mas só se o único recurso legítimo não tivesse a possibilidade de suspender os efeitos da decisão considerada lesiva pela defesa da família de Sean no Brasil, o que não era o caso.

Antes da decisão de extinguir a ação, o ministro Marco Aurélio havia concedido liminar para impedir que a criança fosse entregue ao consulado, como determinava a sentença de 82 páginas do juiz da 16ª Vara Federal do Rio de Janeiro de 1º de junho. Na ocasião, Marco Aurélio observou que o principal objetivo da Convenção de Haia, ratificada pelo Brasil, é preservar o interesse do menor. Além disso, ele afirmou que, como o Superior Tribunal de Justiça já havia decidido pela permanência de Sean no país, não haveria qualquer prejuízo em prevalecer a “manifestação de criança de continuar com a família brasileira”.

O caso
Sean nasceu nos Estados Unidos e morou naquele país até 2004, quando, aos quatro anos, foi trazido ao Brasil pela mãe, Bruna Bianchi. No Brasil, Bruna obteve a guarda de Sean, pediu o divórcio e casou-se com o advogado João Paulo Lins e Silva. No ano passado, ela morreu de complicações no parto da segunda filha. Lins e Silva, então, passou a ser o tutor de Sean e a travar na Justiça, juntamente com a família de Bruna, uma disputa pela guarda do menino. O caso começou na Justiça Estadual do Rio e depois passou para a competência Federal.

Com a morte de Bruna, David Goldman intensificou uma campanha para tentar levar o filho de volta para os Estados Unidos. Goldman diz que o Brasil viola a Convenção de Haia ao negar seu direito à guarda do filho. Já a família brasileira do garoto diz que, por “razões socioafetivas”, ele deve permanecer no país.

Leia o voto

R E L A T Ó R I O

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO – Em caráter de urgência, implementei a seguinte decisão:

ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL – CRIANÇA – PERMANÊNCIA NO BRASIL VERSUS VOLTA AO PAÍS DE ORIGEM – CONVENÇÃO SOBRE OS ASPECTOS CIVIS DO SEQUESTRO INTERNACIONAL DE CRIANÇAS – DECRETOS 79/99, DO LEGISLATIVO, E 3.413/2000, DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA – CONSTITUIÇÃO FEDERAL – TUTELA ANTECIPADA – RETORNO IMEDIATO AOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA – AFASTAMENTO.

1. O Partido Progressista – PP formalizou esta arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada sentença proferida pelo Juízo da 16ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro no Processo nº 2009.51.01.018422-0, que tem, como autora, a União e, como réu, João Paulo Bagueira Leal Lins e Silva. Fê-lo ante a conclusão sobre o retorno do menor Sean Richard Goldman aos Estados Unidos, implicando a sentença a ordem de busca e apreensão caso, presente a tutela antecipada, o menor não venha a ser apresentado ao Consulado Americano na cidade do Rio de Janeiro, no dia de amanhã, até às 14h.

Consta da inicial:

a) capítulo referente à prevenção considerado o Agravo de Instrumento nº 728.785-8/RJ;


b) exposição da controvérsia em face da Convenção de Haia, do texto constitucional e da situação envolvendo o menor Sean;

c) a viabilidade da arguição de descumprimento de preceito fundamental presente a tutela antecipada;

d) a ocorrência de transgressão à Constituição Federal mediante o ato formalizado pelo Juízo;

e) ser fundamento da República a dignidade da pessoa humana.

Discorre-se sobre o quadro, apontando-se haver prevalecido o interesse político, nas relações internacionais, em vez das garantias constitucionais. Com isso, em plano secundário vieram a ficar, segundo as razões expendidas, a independência nacional e a prevalência dos direitos humanos, mitigando-se o interesse do próprio menor.

Articula-se com o disposto no artigo 3º, cabeça e inciso IV, artigo 4º, cabeça e incisos I e II, artigo 5º, cabeça e incisos X, XI, XV, XLI, XLVII a LI, LIV e LV e § 1º, do Diploma Maior, asseverando-se que, a preponderar a decisão proferida, ficará prejudicado o menor diante da privação da convivência com a irmã e os avós maternos. Alude-se ao direito social à proteção à infância previsto no artigo 6º, cabeça, da Carta da República, evocando-se, mais, o artigo 227 nela contido. Menciona-se lição do saudoso Professor Celso de Albuquerque Mello sobre a obrigação de o Estado proteger os nacionais, buscando-se demonstrar a lesão específica, a lesão concreta, a direitos fundamentais do menor decorrente de ato do poder público.

A peça veicula enfoque considerado o alcance da Constituição Federal, salientando-se a circunstância de, quando da entrevista com sociólogos, o menor haver afirmado preferir morar neste País. Pretende-se revelar a percepção da criança, hoje com nove anos, e a permanência no Brasil por quase cinco anos. Cita-se como precedente o Habeas Corpus nº 31.449-DF, no qual foi designado redator para o acórdão o Ministro Teori Albino Zavascki, deixando-se ressaltado o dever de resguardar os interesses da criança, isso presente a interpretação sistemática da Convenção de Haia e da Lei Fundamental. No mesmo sentido é feita referência ao desprovimento do Recurso Especial nº 900.262/RJ, relatora Ministra Nancy Andrighi, registrando a ementa, em cautelar a envolver o próprio menor Sean, o fato de a Convenção de Haia possuir o viés do interesse prevalente do menor no que voltada a proteger crianças quanto a condutas ilícitas. Aborda-se a necessidade de ponderarem-se princípios – o da cooperação internacional e os relativos aos direitos fundamentais –, vindo-se a interpretar a Convenção de Haia em conformidade com o texto constitucional.

Sob o ângulo da liminar, após se dizer da relevância do pedido e do risco de manter-se com plena eficácia o quadro, aponta-se o caráter irreversível do alcance da tutela antecipada, com prejuízo para a formação psicossocial do menor. Afirma-se a existência de quadro assemelhado ao sequestro que a Convenção de Haia busca impedir. O pleito de concessão de medida acauteladora visa a sustar a eficácia da sentença prolatada bem como de qualquer ato ou pronunciamento judicial a implicar a observação da Convenção de Haia e a contrariedade à vontade e aos interesses do menor, reconhecendo-se, alfim, a prevalência do direito fundamental deste de ver respeitada a vontade de permanecer no Brasil.

A petição inicial veio subscrita pelo Presidente do Diretório Nacional do Partido Progressista — PP, Senador Francisco Dornelles, e pelo profissional da advocacia Herman Barbosa. O processo deu entrada no Gabinete no dia de hoje, às 18h08 (folha 175). À folha 176, formalizei a seguinte decisão:

1. Segue em fita magnética a fundamentação deste ato.

2. A sentença proferida revela ordem de apresentação de criança, ao Consulado Americano na cidade do Rio de Janeiro, para encaminhamento aos Estados Unidos da América, com a maior brevidade possível, no dia de amanhã – quarta-feira, 3 de junho de 2009, até às 14 horas.

3. Aciono, ante a exiguidade de tempo, o artigo 5º, § 1º, da Lei 9882/99 e suspendo a eficácia da sentença proferida, no processo 2009.51.01.018422-0 do Juízo da 16ª Vara Federal do Rio de Janeiro.


4. Providenciem as comunicações cabíveis.

Brasília, Gabinete do Supremo, 2 de junho de 2009 – 20h30.

2. Dispõe a Constituição Federal ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão – artigo 227.

Sob o aspecto da dignidade do menor, a Segunda Turma do Tribunal concedeu, em 30 de junho de 1992, ordem no Habeas Corpus nº 69.303-2/MG — no qual fui designado redator para o acórdão, publicado no Diário da Justiça de 20 de novembro de 1992 —, assentando que, em idade viabilizadora de compreensão suficiente dos conturbados caminhos da vida, assiste ao menor o direito de ser ouvido e de ter as opiniões levadas em conta quanto à permanência neste ou naquele lugar, neste ou naquele meio familiar, e, por consequência, de continuar na companhia deste ou daquele ascendente, se inexistirem motivos morais que afastem a razoabilidade da definição.

Consignou-se configurar constrangimento ilegal a determinação de, peremptoriamente, como se coisa fosse, voltar o menor a determinada localidade, objetivando a permanência sob a guarda de um dos pais. Constou da ementa que o direito à guarda não se sobrepõe ao dever do próprio titular de preservar a formação do menor que a letra do artigo 227 da Constituição Federal tem como alvo prioritário. Então, a ordem foi concedida para emprestar à manifestação de vontade dos menores envolvidos efeito maior, sobrepujando a definição da guarda, que sempre possui color relativo e, por isso mesmo, passível de ser modificada tão logo as circunstâncias reinantes reclamem.

Pois bem, o fato de cuidar-se de criança de nove anos que mora no Brasil – trazida pela genitora, falecida após parto — há praticamente cinco anos, a completarem-se em 16 do corrente mês, a qual revelou o desejo de ficar com a família materna, indica a relevância da articulação, estando o risco de manter-se o quadro decisório, presente a tutela antecipada para a entrega do menor, até às 14h de amanhã, no Consulado Americano na cidade do Rio de Janeiro, não na irreversibilidade de encaminhamento imediato aos Estados Unidos da América, mas nas repercussões psicossociais que as idas e vindas podem ocasionar. De qualquer forma, o poder de cautela ínsito ao Judiciário, além de visar ao afastamento de lesão a direito fundamental, tem como base garantir campo propício à concretude de eventual pronunciamento do Supremo favorável ao pedido formulado.

Se, de um lado, veio o Juízo a formalizar tutela antecipada com a imediatidade vista, fazendo-o para observação após 48 horas do julgamento da ação de busca e apreensão, de outro, com maior fundamento, impõe-se, no âmbito do Supremo, providência que viabilize a manutenção do menor no seio da família onde se encontra há praticamente cinco anos para, no exame final desta arguição de descumprimento de preceito fundamental, dizer-se da procedência, ou não, do que asseverado quanto à impossibilidade de potencializar-se o que previsto na Convenção de Haia, de 25 de outubro de 1980, aprovada mediante o Decreto Legislativo nº 79/99 e promulgada pelo Decreto da Presidência da República nº 3.413, de 14 de abril de 2000.

Vale notar que o objetivo maior do entendimento entre os países não é outro senão preservar o interesse do menor presente a respectiva formação. Contando a discussão sobre a guarda com cinco anos e com pronunciamentos favoráveis, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, à permanência do menor no Brasil, não haverá prejuízo algum se prevalecer a manifestação da criança de continuar com a família brasileira, o que, aliás, autoriza, ante a própria Convenção de Haia, conclusão no sentido de afastar-se o retorno à origem — artigo 13, letra “b”, parte final —, tudo isso visando ao crivo da mais alta Corte do País no tocante ao alegado conflito entre o ato formalizado pelo Juízo e os ditames constitucionais.


3. Sem adentrar, por ora, o acerto ou o desacerto da longa e cuidadosa sentença proferida pelo Juízo — de 82 laudas — considerados preceitos fundamentais da Constituição Federal e até mesmo o enquadramento do caso nas exceções contempladas na referida Convenção de Haia, defiro a liminar pleiteada. Suspendo, submetendo este ato ao Plenário, a eficácia da aludida sentença.

4. Deem conhecimento desta decisão aos envolvidos no Processo nº 2009.51.01.018422-0, da 16ª Vara Federal do Rio de Janeiro. Colham, após possíveis manifestações dos interessados, o parecer do Procurador-Geral da República.

5. Imprimam preferência ao trânsito desta arguição, visando, em prazo razoável, ao julgamento final do Plenário.

6. Publiquem.

Brasília, Gabinete do Supremo, 2 de junho de 2009, às 20h30.

Já agora, trago o processo à bancada para o crivo do Colegiado presente, inclusive, o fato de o § 1º do artigo 4º da Lei nº 9.882, de 3 de dezembro de 1999, preceituar a inadmissibilidade da arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver qualquer outro meio eficaz de sanar a lesividade. Ressalto, mais uma vez, que, ante o contexto, incumbia, até mesmo para essa definição pelo Plenário, acionar o poder de cautela, considerado o alcance imediato da sentença proferida – prazo de 48 horas para apresentação da criança, no Consulado americano, sob pena de busca e apreensão a ser feita com o auxílio das Polícias Federal e Militar a Constituição Federal, a Convenção das Nações Unidas sobre os direitos da Criança e a Convenção de Haia referida, alfim o valor maior em jogo, ou seja, a dignidade do menor Sean.

É o relatório.

V O T O

O SENHOR MINISTRO MARCO AURÉLIO (RELATOR) – O quadro está suficientemente delineado. O ato do poder público atacado mediante esta arguição de descumprimento de preceito fundamental encontra-se consubstanciado em sentença que implicou julgamento de mérito e tutela antecipada para apresentação em 48 horas do menor no Consulado Americano na cidade do Rio de Janeiro. Então, deve-se ter presente a viabilidade de impugnação mediante recurso próprio, o recurso por excelência, que é a apelação. Se, de um lado, tem-se como possível o recebimento apenas no efeito devolutivo, de outro, surge adequado, contra a decisão do Juízo primeiro de admissibilidade em tal sentido, o agravo de instrumento – artigo 522 do Código de Processo Civil. Eis o preceito:

Das decisões interlocutórias caberá agravo, no prazo de dez dias, na forma retida, salvo quando se tratar de decisão suscetível de causar à parte lesão grave de difícil reparação, bem como nos casos de inadmissão da apelação e nos relativos aos efeitos em que a apelação é recebida, quando será admitida a sua interposição por instrumento.

Parágrafo único: O agravo retido independe de preparo.

Mais do que isso, a teor do disposto no artigo 527, inciso III do Código de Processo Civil, o relator pode adentrar o campo da liminar, atendendo a pretensão recursal e comunicando ao juízo a decisão.

A par desse aspecto, a União, em petição protocolada no Supremo, noticiou haverem os interessados nesta ação impetrado habeas corpus e mandado de segurança bem como ajuizado ação cautelar – Habeas Corpus nº 2009.02.01.008630-3, Mandado de Segurança nº 2009.02.01.008575-0 e Ação Cautelar nº 2009.02.01.008648-0 —, tendo o Tribunal Regional Federal da 2ª Região, no tocante aos dois primeiros, remetido cópia das decisões formalizadas. No mandado de segurança, chegou-se, até mesmo, a conceder liminar para que o período de transição – adaptação do menor à nova convivência – ocorra não nos Estados Unidos da América, mas no Brasil, tal como preconizado pelo Ministério Público.

A esta altura, pronunciando-me no Colegiado, não posso olvidar o óbice ao curso desta arguição de descumprimento de preceito fundamental. Existem remédios jurídicos, dotados de eficácia, para sanar a lesividade maior, que vislumbrei no campo precário e efêmero, presente o interesse do menor que a Constituição Federal e ambas as Convenções visam resguardar — de Haia e das Nações Unidas sobre os direitos da criança — esta última não subscrita apenas por dois países: Estados Unidos e Somália — artigo do Desembargador do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro Siro Darlan, sob o título Vontade da criança deve ser considerada nas ações, publicado na Revista Consultou Jurídico — Conjur de 8 de junho de 2009.

Voto no sentido da extinção do processo sem julgamento do mérito, reafirmando, mais uma vez, a necessidade de observância irrestrita à legislação instrumental no que consagra a segurança jurídica.

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