Voo 447

Famílias das vítimas podem se assegurar em lei

Autor

  • Walter Ceneviva

    é advogado e ex-professor de direito civil da PUC-SP. É autor entre muitas outras obras do livro "Direito Constitucional Brasileiro". Mantém há quase 30 anos a coluna Letras Jurídicas na Folha de S. Paulo.

13 de junho de 2009, 15h41

[Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo neste sábado (13/6)]

A Folha noiciou a possibilidade de mais uma causa de dor para as famílias dos que pereceram no voo da Air France, no oceano Atlântico. Talvez o DNA de algumas vítimas tenha sido alterado, por causa de longa permanência no mar. Se for confirmado, o elemento básico de identificação foi perdido, embora outros elementos devam ser verificados. Nesse aspecto, a lei brasileira é sábia. Venho tratando do tema há muitos anos, em meu livro "Lei dos Registros Públicos Comentada" (Saraiva), cuja 19ª edição saiu neste ano.

A solução está no artigo 88 da lei nº 6.015, de 1973. O artigo é claro. Aplica-se a todos os casos de desaparecimento em acidente, o que inclui, entre outras espécies, a da destruição do Airbus A330-220, da empresa francesa. O artigo 88 diz o seguinte: "Poderão os juízes togados admitir justificação para o assento de óbito de pessoas desaparecidas em naufrágio, inundação, incêndio, terremoto ou qualquer outra catástrofe, quando estiver provada a sua presença no local do desastre e não for possível encontrar-se o cadáver para exame". 

Na realidade, a permissão legal é até mais ampla, pois o parágrafo único do artigo admite a mesma justificação "no caso de desaparecimento em campanha", ou seja, em combate, quando haja fatos que convençam o juiz da ocorrência da morte. 

A expressão "juiz togado" não deve confundir o leitor, ao lembrar que todos os magistrados têm toga. A lei restringiu a permissão do reconhecimento a juízes vitaliciados. Na Constituição de 1988, o ingresso na magistratura exige aprovação em concurso, sendo adquirida a vitaliciedade, no cargo em primeiro grau da carreira, após dois anos. 

Nesse período inicial, o juiz é apenas substituto. Pode perder o cargo por deliberação do tribunal ao qual estiver vinculado (artigo 95, inciso I da Carta Magna). A exigência do juiz vitaliciado se explica com as consequências da morte certificada, desde os direitos hereditários até questões relativas à paternidade e ao estado de viuvez do cônjuge sobrevivente, entre outros eventos. 

A justificação é desenvolvida, perante o juiz, na forma do Código de Processo Civil (artigos 861 a 866). O interessado em demonstrar a morte, para possibilitar o assentamento do óbito no registro civil de pessoas desaparecidas ou não identificáveis, afirmará seu direito e comprovará, por meios legais e moralmente legítimos, ao menos três fatos: a ocorrência da catástrofe; a presença da pessoa no local do desastre; e a impossibilidade de encontrar o cadáver para exame. 

É o caso do Airbus: o juiz exigirá comprovação de que a vítima estava no avião, ainda que o corpo não seja encontrado ou tiver identificação impossibilitada em consequência dos danos sofridos. 

Manifestei, no livro referido, meu entendimento de que pode pedir justificação, para o fim previsto, qualquer pessoa que por laço de parentesco, de casamento, de união estável ou de negócios comprove interesse e legitimidade.
A competência do juiz brasileiro, em relação a pessoa nascida neste país, é reconhecida, mesmo sendo o voo 447, em avião francês, fora das fronteiras nacionais. O juiz competente para a justificação é o do domicílio da vítima. A lei assegura o direito das famílias e respeita seus sentimentos. É sábia. 

Autores

  • Brave

    é advogado e ex-professor de direito civil da PUC-SP. É autor, entre muitas outras obras, do livro "Direito Constitucional Brasileiro". Mantém há quase 30 anos a coluna Letras Jurídicas, na Folha de S. Paulo.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!