Justiça seletiva

Justiça paulista é a que mais nega acesso aos pobres

Autor

12 de junho de 2009, 6h35

Tornou-se corrente, já há algum tempo, a afirmação de que, no Brasil, a Justiça civil se destina aos ricos e a criminal aos pobres.

Esclareça-se que o processo penal corre contra o réu pobre ou rico independentemente do pagamento de custas e despesas processuais. Nesse caso, o Estado, isento de custas, é obrigado, para cumprir preceito constitucional e respeitar convenções internacionais, se o réu não constituir advogado, a garantir a defesa por meio da Defensoria Pública.

Já o processo civil só tem trâmite efetivo se o autor comprovar o pagamento de custas e despesas processuais, exceto nos casos em que o interessado demonstra sua situação de pobreza e o juiz lhe concede a assistência judiciária gratuita. Isso vale também para a formulação de defesa e a interposição de recursos. A falta de pagamento de custas e despesas processuais pode acarretar a sucumbência e, portanto, sérias consequências patrimoniais para o autor ou para o demandado, conforme o caso.

Em todo o país o benefício da assistência judiciária ou Justiça gratuita tem sido assegurado ao cidadão que, nos termos do artigo 4º, da Lei 1.060, de 5 de fevereiro de 1950, tenha assinado simples declaração no sentido de não estar em condições de pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo próprio ou de sua família. Em outros termos, presume-se pobre quem fizer tal afirmação, ficando a cargo da parte contrária demonstrar a falsidade da assertiva (art.7º). E o juiz não pode indeferir o benefício se não tiver fundadas razões (art.5º).

A propósito, o Supremo Tribunal Federal já asseverou, em reiterados julgamentos, que esse dispositivo da lei federal foi recepcionado pelo artigo 5º, inciso LXXIV, da Constituição Federal, pondo-se, aliás, dentro do seu espírito, que é o de facilitar o acesso de todos à Justiça (STF, RE 205746-RS, 2ªT, julg.26.11.97, Rel.Min. Carlos Velloso, public.DJ.28.2.97, p.4080; RE 204305-PR, 1ªT, julg.5.5.98, Rel.Min. Moreira Alves, public.DJ.19.6.98, p.20; RE 291501-MG, 1ªT, julg.20.3.2001, Rel.Min. Moreira Alves, public DJ.4.5.2001, p.40, por exemplo).

E a Suprema Corte brasileira não faz nenhum favor ao seu pobre povo, pois o acesso ao Judiciário, para o exercício do direito de ação ou do contraditório, é direito garantido pela Constituição (CF, art.5º, XXXV, LIV, LV, LXIX, LXXIII, LXXIV e 134) por imposição de convenções internacionais. Com efeito, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabelece que, em nações ditas civilizadas, todos os seres humanos são iguais perante a lei, têm direito a igual proteção e, ainda, o direito de receber dos tribunais nacionais competentes o remédio efetivo para os atos que violem seus direitos (VII e VIII).

Apesar disso, grande parte do Judiciário paulista, renitente, vem impondo exigências absurdas ao cidadão sem condições financeiras, para só excepcionalmente assegurar-lhe o exercício dessa garantia fundamental.

Ora, muitos dos pobres requerentes da assistência judiciária estão em situação de miserabilidade tal que, se instados a voltarem ao escritório do defensor depois de colherem provas de sua condição financeira, preferirão desistir da demanda com a consequente perda do direito correspondente, por mais legítimo que seja. É que não poderão suportar os ônus decorrentes — falta ao trabalho, pagamento de meio de transporte, extração de cópias de documentos.

Note-se, pois, que não existe no sistema legal vigente a definição objetiva da pobreza para a mencionada finalidade. Daí a presunção de legitimidade da declaração do próprio requerente.

Em caso de impugnação da parte contrária, para negar o benefício ao cidadão que pretenda, representado pela Defensoria Pública e isento de custas, ajuizar demanda para a obtenção de um direito ou promover defesa em processo que enfrenta, deve o juiz examinar todas as circunstâncias de cada caso, não podendo se restringir ao exame do valor nominal do salário do requerente.

Deve, portanto, analisar, além do valor dos rendimentos mensais do pleiteante, a moderação de seu patrimônio, a quantidade de dependentes, a existência de grave enfermidade em casa, as necessidades especiais, o valor e o caráter das despesas, destacando as indispensáveis para a sobrevivência familiar e, ainda, a natureza e o custo da demanda.


Todavia, criou-se em São Paulo, para a obtenção desse benefício, o requisito do rendimento mensal máximo de três salários-mínimos (cf. página de atendimento da Defensoria Pública do Estado de São Paulo na rede digital internacional). Em outras palavras, ninguém consegue ser atendido pelos defensores públicos paulistas (ou por advogados inscritos em convênio com a OAB), senão com o contracheque do salário comprovando ter no máximo aquele rendimento mensal. E, lamentavelmente, é essa a posição que vem prevalecendo também no Judiciário estadual que, data vênia, caiu na armadilha da política econômica implantada nos últimos lustros.

É que, como a linguagem econômica, por um grave equívoco, substituiu por completo a linguagem jurídica, a ordem é reduzir ao mínimo o custo do Estado. Realmente, a redução do Estado é a primeira lição da cartilha da globalização econômica, pouco importando aos propagadores dessa doutrina os danos decorrentes da falta de estrutura pública mínima a tornar possível o controle ético da sociedade.

De se observar, entretanto, que depois da última crise econômica mundial, causada principalmente pela corrupção norte-americana no campo do mercado imobiliário e mercado de futuros e que obrigou grandes potências empresariais a pedir socorro ao Estado, restou comprovado o equívoco da chamada teoria do Estado-mínimo.

O Estado, pois, deve ser do tamanho que a eficiência exigir.

De qualquer forma, não podem ser desconsiderados os números das estatísticas oficiais, até porque ainda não contestados. E quem quiser conferi-los pode consultar a página do Conselho Nacional de Justiça (em Estatística do Poder Judiciário, Justiça em Números) na Internet.

Ao que consta, o estado de São Paulo, em 2007, segundo tais dados, tinha uma população 5,84 vezes superior à média nacional e, talvez por isso, tenha tido despesas totais 7,74 maiores que a média nacional — só com o Judiciário, os gastos são 6,79 vezes maiores que a média nacional.

Esses informes, isoladamente, poderiam dar ao desavisado a impressão de que o estado teria todas as justificativas para negar aos pobres os serviços judiciais.

Todavia, o estado bandeirante teve naquele mesmo período um PIB 9,21 vezes maior que a média nacional, numa demonstração de que as citadas despesas não ocorreram na mesma proporção das receitas.

Ocorre que essa circunstância colocou em incontestável situação de miséria o Judiciário estadual paulista que, não sem motivo, registrou uma carga de trabalho 2,66 vezes maior que a média nacional. No já considerado espaço de tempo, cada juiz estadual de 1º grau teve de examinar e julgar 2,03 vezes mais casos novos que a média de todo o país.

O certo é que, refém de imposições governamentais, ora de ordem orçamentária, ora de ordem administrativa, vem a Justiça paulista, na esfera civil, fechando cada vez mais suas portas a quem mais precisa.

Ou seria normal o fato de o Judiciário paulista, ainda em 2007, ter exigido dos litigantes recolhimento de custas quase dez (9,57) vezes maiores do que a média de todos os estados?

Essa filosofia judicial vem acarretando sérios danos à população.

Há quem, é verdade, mesmo com o indeferimento da Justiça gratuita, tenha de quem emprestar ou mendigar os recursos necessários para custear sua demanda ou sua defesa. Mas muita gente, certamente a maioria, não encontrará alternativa senão desistir de seu direito e até dos ideais de justiça.

Assim, mesmo que se utilizasse exclusivamente a linguagem econômica, a conclusão seria a mesma: não há justificativa para os agentes governamentais e judiciais paulistas suprimirem do cidadão pobre os direitos decorrentes ou dependentes do direito de ação.

Sem qualquer sombra de dúvida, é cabível a concessão de assistência judiciária mesmo ao cidadão possuidor de um rendimento superior a três salários mínimos. O que importa, para tal fim, é a demonstração de que o beneficiário não tenha a possibilidade de custear a demanda ou a defesa sem o sacrifício de sua subsistência e de sua família. Importante, também, fazer a distinção entre condição econômica e financeira da pessoa, levando-se em consideração as circunstâncias de cada caso. E, existindo eventual dúvida, é melhor que se decida a favor de quem pede o benefício, até porque é o serviço judiciário relevante bem social já custeado pela carga tributária geral.


De outro lado, não custa registrar que, de acordo com o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos, só as despesas de alimentação básicas de um indivíduo no período de um mês alcançavam, em 2008, antes da crise econômica mundial, o custo mínimo de R$ 239,49. E, consideradas as demais necessidades básicas humanas, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social, o salário mínimo mensal exigível deveria ser de R$ 2.014,73.

Ora, isso representa quase cinco vezes o salário mínimo em vigor que, como é do conhecimento geral, é fixado pelas autoridades econômicas do país para atender interesses menos nobres do que os inspiradores do preceito do artigo 7º, inciso IV, da CF, que estabelece deva o salário mínimo assegurar ao trabalhador e sua família uma sobrevivência digna.

Trata-se de informação que, por contar com irrecusável suporte científico, não pode ser desconsiderada para a referida finalidade pelo Judiciário, último reduto do cidadão.

O que esperar do grau de justiça da sentença final em um processo judicial, se o Judiciário já se revela injusto no exame dos requisitos para a sua instauração?

O maior prejuízo decorrente dessa verdadeira injustiça, num médio ou longo prazo, será certamente o aparecimento da cultura social ou da impressão coletiva de ter o Judiciário perdido a sua utilidade ou a possibilidade de alcançar o objetivo institucional.

Em outros termos, o povo pode fazer com o Judiciário o mesmo que fez com a Polícia que, por completa falta de credibilidade, não vem sendo mais procurada para o registro de ocorrência de roubos e furtos de bens de pequeno valor, por exemplo. E aí talvez seja tarde para o sistema de Justiça readquirir a confiança do cidadão.

Ora, é importante entender que a república brasileira foi constituída como Estado democrático de direito, tendo como fundamento o respeito à cidadania e à dignidade da pessoa humana (CF, art.1º, incisos II e III). E, além disso, tem como objetivo a construção de uma sociedade justa e solidária, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e a promoção do bem de todos (CF, art.3º, incisos I, III e IV).

Não se pode esquecer também que esses fundamentos e objetivos republicanos, bem como o exercício dos direitos fundamentais do cidadão, não são princípios programáticos, sendo, ao contrário, de execução imediata (CF, arts.2º, 5º, caput e §1º, XXXV, LXXIV e 37, caput).

O grau de democracia de um Estado mede-se tanto pelo limite de concentração de poder nas mãos do governante, como pelo respeito aos direitos fundamentais do cidadão, sobretudo daquele invariavelmente excluído de todos os benefícios decorrentes da riqueza social produzida com a importantíssima contribuição de seu trabalho.

Concluindo, a inclusão social depende de um Judiciário com portas abertas para o povo.

Airton Florentino de Barros, procurador de justiça em SP, integrante fundador do Movimento do Ministério Público Democrático

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!