Técnica jurídica

Formação de quadrilha e delação em crime eleitoral

Autor

7 de junho de 2009, 6h02

Alguns Tribunais Eleitorais têm aceitado denúncia de crimes eleitorais conexos com o crime comum de formação de quadrilha, além de permitir a oferta do instituto da delação premiada para os co-autores que auxiliem na investigação criminal e na punição dos culpados.

É que o Ministério Público Eleitoral tem acrescentado o crime de formação de quadrilha, a delação premiada e alguns agravantes penais, como a continuidade delitiva ou o concurso de crimes, com o objetivo assegurar a efetividade do processo penal eleitoral, até para fins disciplinadores, na tentativa de afastar, ab initio, a possibilidade de suspensão condicional do processo, considerando que as penas dos ilícitos eleitorais são relativamente brandas e que muitas ações prescrevem antes que se alcance o trânsito em julgado da decisão condenatória.

É como se cada processo concluído tivesse o poder disciplinador de evitar a prática de novos ilícitos, sendo por isso válido, em tese, o agravamento inicial da conduta ilícita, para evitar que os agentes tenham acesso ao benefício da suspensão condicional do processo.

Entretanto, adianto que rechaço a possibilidade de enquadramento do crime de formação de quadrilha conexo com crimes eleitorais, bem como a oferta de delação premiada para os co-autores de ilícitos penais, tanto em razão do baixo grau de periculosidade inerente aos crimes desta espécie, com também pelos demais argumentos que passo a expor.

Façamos um estudo circunstanciado da matéria.

Da formação de quadrilha

O crime de quadrilha ou bando está tipificado no art. 288 do Código Penal Brasileiro e exige um vínculo associativo estável e permanente, de natureza duradoura e com o propósito de praticar ilícitos de alta periculosidade.

No caso dos crimes eleitorais que permitem co-autoria, a exemplo da corrupção eleitoral, transporte irregular de eleitores, dentre outros, em regra, o que observamos é uma relação de subordinação, em que assessores e líderes comunitários são regularmente remunerados para arregimentar eleitores dispostos a praticar ilícitos eleitorais, com o objetivo de beneficiar determinado candidato ou grupo político.

Ademais, por sua própria natureza, a ocorrência dos delitos eleitorais é sazonal, o que afasta a conduta estável e permanente, típica do crime de quadrilha. Sobre o assunto, ensina o mestre Julio Fabrini Mirabete, in verbis:

“Não basta que se reúnam essas pessoas para o cometimento de um crime determinado, existindo aí simples concurso de agentes se o ilícito for ao menos tentando. É necessário que haja um vínculo associativo permanente para fins criminosos, uma predisposição comum de meios para a prática de uma série indeterminada de delitos. Exige-se, assim, uma estabilidade ou permanência com o fim de cometer crimes, uma organização de seus membros que revele acordo sobre a duradoura atuação em comum.” (in Código penal interpretado, 5ª edição. Editora Atlas, 2005; p. 2130).

Também esclarecedora a manifestação jurisprudencial, a exemplo dos seguintes precedentes, textualmente:

TJ-SP: “Crime de quadrilha. Elementos de sua configuração típica. O crime de quadrilha constitui modalidade delituosa que ofende a paz pública. A configuração típica de quadrilha ou bando deriva da conjunção dos seguintes elementos caracterizadores: a) concurso necessário de pelo menos quatro (4) pessoas (RT 582/348 – RT 565/406); b) finalidade específica dos agentes voltada ao cometimento de delitos (RTJ 102/614 – RT 600/383); e c) existência de estabilidade e de permanência da associação criminosa. (RT 580/328).” (HC 72.922-4-SP, DJU 14.11.1996, p. 44.469. Extraído da obra de J. F. Mirabete, p. 2131) — grifamos.

TJ-SP: “Quadrilha ou bando. Descaracterização. Associação que teve caráter provisório. Ausência de permanência e estabilidade da associação criminosa, não passando de um isolado concurso de agentes. (…) O certo é que o bando ou quadrilha, como delito autônomo, só se corporifica quando os membros do grupo formam uma associação organizada e estável, com programas preparados para a prática de crimes, com a adesão de todos, de modo reiterado.” (RT 721/423; Ob. cit., p. 2133).” — grifamos.


TJ-RJ: “Para que o crime de formação de quadrilha se caracterize é necessário que a associação se traduza por dolo de planejamento, divisão de trabalho, organicidade e que a prática de crimes seja permanente. Assim, não comprovados tais requisitos, é de se afastar a condenação prevista no art. 288 do CP.” (RT 745/628; Ob. cit., pág. 2133)

Com estas considerações, não vislumbro a ocorrência de crimes eleitorais conexos com o de quadrilha ou bando, previsto no artigo 288 do CP, uma vez que os crimes eleitorais não demonstram associação estável e permanente para o crime, nem ofensa à paz pública. Em regra, o que se observa é a reunião de grupos políticos que atuam de forma irregular, por um período determinado, desfazendo-se logo após o pleito eleitoral, o que melhor se enquadraria na hipótese de concurso de agentes.

Além disso, a maioria das pessoas flagradas na prática de crimes eleitorais que permitem co-autoria, a exemplo do crime de boca de urna (art. 39, § 5º da Lei 9.504/97), não apresentam o animus de delinquir, ou seja, não agem com dolo, posto que sequer possuem o discernimento necessário para entender a conduta criminosa da qual participam, quase sempre, embalados apenas pela paixão política e a vontade de colaborar com determinada candidatura ou partido político, do qual já são simpatizantes ou eleitores declarados.

Da delação premiada

Quanto à oferta do benefício de delação premiada aos acusados que colaborarem com a investigação criminal, observa-se que o instituto tem previsão nas Leis 8.072/90, 9.034/95 e 9.807/99.

O artigo 8º, parágrafo único, da Lei 8.072/90, permite a redução da pena de um a dois terços aos associados que denunciarem a existência de bando ou quadrilha para fins ilícitos.

A mesma redução de pena é prevista também no artigo 6º da Lei 9.034/95, para o agente cuja colaboração espontânea permita o esclarecimento de infrações penais e sua autoria, na hipótese de crimes praticados em organização criminosa. Vejamos o inteiro teor dos dispositivos citados, in verbis:

Lei 8.702/90

“Art. 8º — Será de três a seis anos de reclusão a pena prevista no art. 288 do CP, quando se tratar de crimes hediondos, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo.

Parágrafo único — O participante e o associado que denunciar à autoridade o bando ou quadrilha, possibilitando o seu desmantelamento, terá a pena reduzida de um a dois terços.”

Lei 9.034/95:

“Art. 6º — Nos crimes praticados em organização criminosa, a pena será reduzida de um a dois terços, quando a colaboração espontânea do agente levar ao esclarecimento de infrações penais e sua autoria.” (grifo nosso).

Como visto, a primeira hipótese legal de aplicação do instituto da delação premiada ocorre nos crimes hediondos, prática de tortura, tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins ou terrorismo, enquanto a segunda hipótese destina-se aos casos de prevenção e repressão de ações praticadas por organização criminosa.

Uma vez afastada a hipótese de crime de quadrilha ou de formação de organização criminosa para fins eleitorais, pelos fundamentos já declinados acima, não há que se falar em delação premiada, sem prejuízo, entretanto, de possível aplicação de outras atenuantes ou causas de diminuição de pena aos acusados que colaborarem com a busca da verdade real e a efetiva prestação jurisdicional.

Por fim, existe ainda uma terceira hipótese de delação premiada, amparada no artigo 14 da Lei 9.807/99, que assim dispõe:

“Art. 14. O indiciado ou acusado que colaborar voluntariamente com a investigação policial e o processo criminal na identificação dos demais co-autores ou partícipes do crime, na localização da vítima com vida e na recuperação total ou parcial do produto do crime, no caso de condenação, terá pena reduzida de um a dois terços.”


Todavia, também não parece suficiente este argumento para permitir o oferecimento do benefício de delação premiada na apuração dos crimes eleitorais, pelos seguintes fundamentos:

— os co-autores ou partícipes de crimes eleitorais são sempre apontados por seus adversários políticos ou legitimados para propositura da representação junto ao Ministério Público Eleitoral, com riqueza de detalhes das condutas praticadas por cada agente, razão pela qual, não há necessidade de ofertar um benefício penal a co-autores de uma mesma conduta ilícita reprovável, se é praticamente impossível a existência de agentes ocultos de crimes eleitorais.

— os ilícitos eleitorais não oferecem risco de vida às suas vítimas;

— o produto de um crime eleitoral jamais pode ser recuperado, porque, em regra, traduzem condutas de conceito subjetivo, com a finalidade de influenciar a consciência do eleitorado, atingir a honra de adversários, desequilibrar a concorrência entre os candidatos ou dificultar o bom andamento do processo eleitoral.

Sobre o assunto, cito precedente da 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, na Apelação Criminal 1.0209.05.045418-7/001, relator: des. Paulo César Dias, julgado em 24/04/2007, no seguinte sentido:

“Como se sabe, o benefício da delação premiada será concedido ao acusado que presta informações importantes para a elucidação dos fatos, colaborando na identificação dos co-autores. No caso, o réu delatou os seus comparsas que se encontravam sob investigação e já haviam sido identificados pela Policia Judiciária, não fazendo jus ao beneficio em tela. As declarações do apelante não tiveram o condão de ajudar a desvendar eventuais participantes do bando, e nem colaborou na recuperação do produto do crime. Nesse caso, a confissão e a delação dos outros agentes, gera direito apenas à atenuante da confissão espontânea, pois a delação premiada somente pode ser acolhida quando resultar na efetiva identificação e prisão dos demais autores e na recuperação total ou parcial do produto do crime, conforme reza o art. 14 da Lei 9.807/99.” (destaquei)

No mesmo sentido, já decidiu o Eg. Tribunal de Justiça de Minas Gerais:

“ROUBO — CONFISSÃO — DELACAO PREMIADA — GRAVE AMEAÇA — ARMA NÃO APREENDIDA — MAJORANTE DECOTADA. A confissão e delação dos outros agentes geram direito apenas à atenuante da confissão espontânea, pois a chamada delação premiada somente pode ser acolhida quando da efetiva colaboração resultar a identificação e prisão dos demais autores. Não há como reconhecer a qualificadora do uso de arma, se esta não tiver sido apreendida e aferida a sua real potencialidade ofensiva à integridade física da vítima. Recurso parcialmente provido.” (Ap. Crim. 415.456-3 – Rel. Des. ANTONIO ARMANDO DOS ANJOS – Data da publicação 06.03.2004)” – grifamos.

“APELAÇÃO CRIMINAL — COLABORAÇÃO PREMIADA — AUSÊNCIA DE CONFIGURAÇÃO — PERDÃO JUDICIAL — DEFERIMENTO — INVIABILIDADE — CONDENAÇÃO MANTIDA — RECURSO DESPROVIDO. "Não há que se falar em colaboração (delação) premiada a viabilizar deferimento do perdão judicial a que se refere o art. 13 da Lei nº 9.807/99, com conseqüente extinção da punibilidade do agente, na hipótese em que somente através de informações prestadas por outros envolvidos no roubo é que se chegou à identificação do pretenso beneficiário, cujas declarações, ademais, por deficientes, não culminaram na recuperação (total ou parcial) do produto do crime – obtida graças à eficiente ação da Polícia -, nem tampouco na identificação de quem, segundo alega, o teria auxiliado no cometimento do delito". (Ap. Crim. n. 1.0027.01.007080-6/001 – Rel. Des. EDUARDO BRUM – Data da publicação 11.04.2006) — grifamos.

Como visto, o benefício da delação premiada é um instituto criado para facilitar a investigação de crimes de alta periculosidade, viabilizando o acesso a informações que possam ajudar a identificar os co-autores, resgatar vítimas em risco de vida ou recuperar o produto do crime, sendo que tais situações jamais ocorrem nos crimes eleitorais.


Além disso, os poucos casos encontrados na jurisprudência dos Tribunais Eleitorais que registram ações para apurar crimes eleitorais conexos com o de quadrilha ou que admitem o benefício da delação premiada na seara eleitoral, quase sempre terminam em absolvição do réu, dada a fragilidade da técnica de agravamento da conduta criminosa com o único objetivo, em meu sentir, de permitir que os agentes de tais ilícitos sejam efetivamente processados, conforme os seguintes precedentes:

“RECURSO CRIMINAL ELEITORAL. COMPRA DE VOTOS. AUSÊNCIA DE PROVA CABAL. AUSÊNCIA DE DENÚNCIA CONTRA O CASAL DELATOR. COMPROMETIMENTO DAS DECLARAÇÕES PRESTADAS EM JUÍZO. NUMERÁRIO ENCONTRADO COM O RECORRENTE. PAGAMENTO DE CABOS ELEITORAIS. PROVIMENTO. Sendo a motivação originada de desavenças políticas para o desencadeamento das providências judiciais, comprometendo irremediavelmente o substrato probatório que lastreia o decreto condenatório, devem ser providos os recurso, mormente quando o casal que recebeu a "delação premiada" deixaram de ser denunciados pela prática dos mesmos ilícitos.” (TRE — MS, ReCrim nº 65. Acórdão nº 5251, Relator Juiz Oswaldo Rodrigues de Melo , julgado em 04/07/2006. Diário da Justiça — 1306, Data 10/07/2006, Página 089).

“RECURSO CRIMINAL. IRREGULARIDADES NO PLEITO ELEITORAL. INTERVENÇÃO CIRÚRGICA GRATUITA COM FINS DE CAPTAÇÃO DE VOTOS. INVESTIGAÇÃO REALIZADA PELO MINISTÉRIO PÚBLICO. DELATOR QUE NÃO É DENUNCIADO JUNTAMENTE COM OS DEMAIS ACUSADOS. INSTITUTO DA DELAÇÃO PREMIADA. ART. 13 DA LEI N° 9807/99. ADVERTÊNCIA ÀS ELEITORAS DAS CONSEQÜÊNCIAS ADVINDAS COM A INFORMAÇÃO DA VANTAGEM RECEBIDA. ART. 299 DO CÓDIGO ELEITORAL QUE INCRIMINA AMBAS MODALIDADES DE CORRUPÇÃO ELEITORAL – ATIVA E PASSIVA. PROVA JUDICIAL COMPROMETIDA. IN DUBIO PRO REO. RECURSOS PROVIDOS.” (TRE-MS, Rcrim nº 61; Acórdão nº 5241, Relator Juiz OSWALDO RODRIGUES DE MELO, j. 05/06/2006, DIÁRIO DA JUSTIÇA — 1289, Data 12/06/2006, Página 108).

Com efeito, não adianta criar instrumentos jurídicos frágeis, que não resistem a uma análise mais acurada do direito, apenas para garantir a continuidade de ações penais eleitorais, como objetivo mais disciplinador do que punitivo. Até porque, em que pese ter encontrado alguns Habeas Corpus permitindo o recebimento de denúncias com tal fundamentação, ainda não há notícia de nenhuma condenação por crime eleitoral conexo com formação de quadrilha.

Nesse prisma, entendo que aceitar denúncias de crimes eleitorais conexos com o de formação de quadrilha ou permitir a oferta do benefício da delação premiada para facilitar a investigação de crimes desta espécie, é nivelar toda a classe política aos assaltantes de bancos, sequestradores ou agentes de outros crimes de alta periculosidade, o que não traz nenhum benefício para continuidade do nosso regime democrático.

Por outro lado, aos que defendem a instrumentalidade e efeito disciplinador do processo penal eleitoral, em detrimento da melhor técnica jurídica, afirmo que o calo maior da nossa democracia não está apenas nos crimes eleitorais, mas sim nas condutas de improbidade administrativa, praticado, muitas vezes, por quem jamais disputou um voto sequer. Sendo assim, não se pode sacrificar o direito e a técnica jurídica em nome do ativismo judicial.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!