Transformação social

Acessibilidade é mais do que rebaixar calçadas

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5 de junho de 2009, 8h30

Através da evolução dos tempos, o nascimento de uma pessoa com necessidades especiais ou com algum tipo de deficiência foi visto de maneiras totalmente diferentes. Nas civilizações antigas, não era suportado o “fardo” de sustentar e criar uma criança com deficiência, cabendo, em certas culturas, aos pais ou aos líderes do grupo, se “desfazerem” dessa criança, atirando-a, normalmente, em algum precipício. Como ocorria na civilização espartana, em que sendo a cultura voltada para a formação de guerreiros, não havia espaço para pessoas “imperfeitas”.

Com a evolução da cultura e o agravamento das leis, essas crianças deixaram de ser privadas de suas vidas. No entanto, em nada melhorou a sua situação, eis que agora, apesar de vivas, continuavam deixadas em abismos não físicos, mas enfrentando abismos como o da solidão, da rejeição, da indiferença e do desafeto, tanto por parte de sua família, como pela comunidade.

Muitas vezes, as crianças eram exploradas, vendidas para algum malfeitor que, expondo a deficiência e a fragilidade da criança, a transformava em pequenos monstros, capazes de garantir sua rentabilidade e o divertimento daqueles que se consideravam normais. Quem não viu, ouviu, ou leu algo desse gênero em sua vida? Bobos da corte, monstros demoníacos; até mesmo as clássicas obras O Fantasma da Ópera e O Corcunda de Notre Dame, demonstram casos como esses. Agora, será que devemos passar o resto de nossas vidas acreditando que essas atrocidades são apenas frutos de uma mente obstinada a criar uma estória fantasiosa e, com isso, garantir seus lucros exorbitantes? Por mais que nos doa, a realidade não é um mar de rosas.

No decorrer dos tempos, a ciência e a medicina evoluíram e com ela a mentalidade e a percepção dos homens também. Com isso, essas crianças passaram a ter um pouco mais de dignidade e respeito. Do mesmo modo que, deploravelmente,  em muitos lares as crianças ainda sofrem com a discriminação, há também um aumento gradativo de casos em que os deficientes deixaram de ser os monstros e os diabólicos e passaram a ser os “especiais” e, com isso, conseguiram o mínimo de apoio, carinho e atenção necessários para a aceitação e superação de suas limitações.

A família, a escola e a sociedade passaram a entender melhor o imortal pensamento de Aristóteles: “Tratar os iguais igualmente e os desiguais, desigualmente, na medida de sua desigualdade”. E uma das formas de expressar esse entendimento é garantindo às pessoas com deficiência, o cumprimento de seus direitos de acessibilidade, em todas as suas formas, objetivando a inclusão da pessoa com deficiência à sociedade, para, assim, dentro de sua desigualdade, se sentir igual aos seus desiguais.

Para o concreto entendimento do presente trabalho, mister se faz a conceituação de dois termos alicerces: deficiência e acessibilidade.

Deficiência: o artigo 3º, inciso I, do Decreto 3.298, de 20 de dezembro de 1999, define deficiência como sendo “toda perda ou anormalidade de uma estrutura ou função psicológica, fisiológica ou anatômica que gere incapacidade para o desempenho de atividade, dentro do padrão considerado normal para o ser humano”.

Nota-se que na própria definição jurídica do que é considerado deficiência, há uma lacuna imensa, deixando a sua interpretação para que cada um faça de acordo com seu pensamento e o seu modo de vida.

Ao dispor “dentro do padrão considerado normal para o ser humano”, o legislador deixou de fixar um parâmetro, pois, diante de tantas ideologias, crenças, ceitas e culturas diferentes, o que realmente é considerado o padrão de normalidade do ser humano?

No evoluir de nossa história tivemos a infelicidade de vivenciar o padrão de normalidade ariana, imposto por Adolf Hitler e seus comandados, o que originou o maior genocídio da história da humanidade com a eliminação de mais de seis milhões de judeus.

É devidamente em decorrência do pensamento como o desse ditador que hoje, ainda vemos tantas pessoas com alguma deficiência ou limitação serem humilhadas e tratadas com o mais prejudicial “animus jocandi” pela sociedade, uma vez que para essas “pessoas normais”, o conceito de padrão de normalidade se limita àquela imagem que todos os dias veem diante do espelho.

Dentre a classificação das deficiências encontramos a deficiência física, deficiência auditiva, deficiência visual, deficiência mental e deficiência múltipla (artigo 4º, Decreto 3.298/99). Entretanto, a deficiência com que mais sofre e que mais atinge as pessoas especiais não a diagnosticada em grandes centros médicos ou em qualquer dispositivo legal, pois é exatamente a deficiência de não serem compreendidos e amados.

É a deficiência no sentido de déficit, de falta, de insuficiência. Apesar de ter se mudado a forma de tratamento em relação a essas pessoas, a maioria ainda sofre com algum tipo de rejeição, seja da própria família, que não tem suporte psicológico e/ou financeiro; seja por parte dos estabelecimentos de ensino, que apresentam um plano de inclusão, mas que na verdade não apresentam as mínimas condições para que isso aconteça efetivamente. Seja nos lugares de esporte, lazer e cultura ou prédios públicos e particulares, que não garantem o acesso e permanência do deficiente, ou na falha por parte dos Poderes Públicos, que apesar de conhecerem bem todas as leis e todos os direitos dessas pessoas, simplesmente preferem ficar inertes diante da situação, ou mesmo, por parte de cada um de nós, cidadãos e seres humanos que, de alguma forma, não enxergamos nessas pessoas a nossa imagem e semelhança e, por isso, não os tratamos da forma como os trataríamos caso não fossem dessa maneira.

Na própria denominação de pessoa com deficiência já acontece a segregação, eis que os termos utilizados para assim os definir já traz em sua bagagem o conteúdo discriminatório. O texto constitucional já sofreu várias mudanças e, mesmo assim, ainda continua equivocado, alimentando, para muitos, o sentimento preconceituoso. Antes da Constituição de 1988, os termos utilizados para identificar essas pessoas eram “excepcional”, “inválido” ou “menos válido”.

Com a promulgação da Emenda Constitucional 12, o termo empregado passou a ser “deficiente”, no entanto, era totalmente inapropriado, pois não lhes falta eficiência, eis que muitas dessas pessoas são mais eficientes que as pessoas tidas como “normais”.

Esse termo só foi modificado com a ratificação da Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, que a denominação veio a se alterar, e, posteriormente com a Constituição Federal de 1988, verificou-se a mudança desse indicativo, para a expressão “pessoas portadoras de deficiência”, entretanto, mais uma vez apresentou-se equivocada, eis que essas pessoas não portam as suas deficiências de um lado para o outro, como se portassem o seu RG e seu CPF, e sim possuem um tipo de deficiência.

Essas pessoas nasceram ou adquiriram uma deficiência e, por isso, o termo mais apropriado para sua denominação seria “pessoa com deficiência” e não os indicativos pejorativos e excludentes utilizados pela legislação pátria.

Acessibilidade: a palavra acessibilidade deriva-se do termo latino “acessibilitate”. Segundo o Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, acessibilidade significa facilidade de acesso, de obtenção; facilidade no trato. (1)

De acordo com o enunciado no artigo 2º, inciso I, da Lei 10.098/00, acessibilidade é “a possibilidade e condição de alcance para utilização, com segurança e autonomia, dos espaços, mobiliários e equipamentos urbanos, das edificações, dos transportes e dos sistemas e meios de comunicação, por pessoas portadoras de deficiência ou com mobilidade reduzida”.

Segundo o consultor Romeu Sassaki “hoje a acessibilidade não mais se restringe ao espaço físico, à dimensão arquitetônica” (II), porque existe a questão do preconceito, da rejeição, da ignorância e da indiferença, que infelizmente persiste na mentalidade de muitas pessoas da sociedade. Apesar de a definição de acessibilidade transmitir a ideia de acessibilidade física, não é somente essa que pretende denominar, afinal, para ser conseguida integramente, a acessibilidade se divide em seis subtipos, que juntos, completam o real significado de seu termo.


A acessibilidade não se apresenta apenas na falta de construção de rampas de acesso, como é o pensamento da maioria das pessoas, eis que vai muito além, abrangendo outras áreas, como a comunicação, ensino, trabalho, lazer, portarias, regulamentos, etc. Esses tipos de acessibilidade, para fazerem valer todos os direitos assegurados em lei, devem estar presentes em todos os ambientes internos e externos, por onde possa transitar fisicamente ou virtualmente qualquer pessoa, inclusive as com necessidades especiais.

Os seis tipos de acessibilidade, ou de barreiras excludentes, como prefere chamar Romeu Sassaki, são:

Acessibilidade arquitetônica: é a barreira que não permite o acesso da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida; a barreira física encontrada nos estabelecimentos de ensino, residências, edifícios públicos e privados, nas empresas e meios de transporte, os quais não apresentam mínimas condições de acesso às pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida.

Para muitas pessoas, que desconhecem as dificuldades diárias de uma pessoa com deficiência, esse é o único tipo de cerceamento à acessibilidade que se deve ser combatido, no entanto, esta é apenas uma das formas de garantir o direito de acesso às pessoas com deficiência ou com mobilidade reduzida.

Isso se deve à associação de acesso à entrada em qualquer ambiente, esquecendo que, com um mundo em constante informatização, em que as pessoas buscam a melhoria de suas condições de vida através da comunicação, da escola, do trabalho e na observância de seus direitos, o acesso deve ser considerado de forma ampla, capaz de abranger todas as formas de limitação ao pleno desenvolvimento dessas atividades.

Acessibilidade comunicacional: é quando a linguagem verbal, visual e, agora virtual, utilizada não alcança todas as pessoas. São as denominadas “barreiras na comunicação interpessoal (face-a-face, língua de sinais, linguagem corporal, linguagem gestual, etc.), na comunicação escrita (jornal, revista, livro, carta, apostila, entre outros, incluindo textos em Braille, textos com letras ampliadas para quem tem baixa visão, notebook e outras tecnologias assistivas para comunicar) e na comunicação virtual (acessibilidade digital)”. (III)

Para Cláudia Werneck, diretora-executiva da Escola de Gente, a acessibilidade comunicacional é importante visto que, "trata-se do direito de se comunicar que é diferente do direito à comunicação, à informação e a participação e não está expresso em nenhuma convenção de direitos humanos. Se uma pessoa surda vai a um evento e este não tem um intérprete de Libras (Língua Brasileira de Sinais) por exemplo, o seu direito de comunicar está sendo violado. É um problema tão óbvio que ninguém vê. O direito de se comunicar tem a ver com a liberdade de expressão e vem antes dos outros, por isso precisa ser garantido.” (IV)

Somente com a comunicação oral, escrita e gestual é que conseguimos interagir com o meio e com as pessoas que nos cercam e, com isso, estabelecemos um núcleo de convivência e integração, numa sinergia indispensável para a consolidação de uma sociedade saudável e inclusiva.

Acessibilidade atitudinal: apresenta-se nas atitudes preconceituosas e discriminadoras em relação às pessoas com deficiência; que pode ser revertida por meio de programas e práticas de sensibilização e conscientização da sociedade em geral. Muitas vezes, apesar de não manifestarmos qualquer atitude discriminatória, estamos indiretamente contribuindo para isso, pois é um dever de todos zelar pelo devido cumprimento dos direitos das pessoas com deficiência e, mesmo assim, vemos locais e meios de transporte sem qualquer acessibilidade ou presenciarmos atitudes preconceituosas e nada fazermos para modificá-la.

Pode acontecer de, mesmo que indiretamente, realizarmos alguma ação em dissonância com a intenção de realizarmos a inclusão, o que também acaba impedindo a acessibilidade atitudinal.

Acessibilidade metodológica: deve ser utilizada para garantir que todos os métodos de ensino, trabalho e lazer sejam homogêneos, “sem barreiras nos métodos e técnicas de estudo (adaptações curriculares, aulas baseadas nas inteligências múltiplas, uso de todos os estilos de aprendizagem, participação do todo de cada aluno, novo conceito de avaliação de aprendizagem, novo conceito de educação, novo conceito de logística didática, etc.), de trabalho (métodos e técnicas de treinamento e desenvolvimento de recursos humanos, ergonomia, novo conceito de fluxograma, empoderamento, etc.), de ação comunitária (metodologia social, cultural, artística, etc. baseada em participação ativa), de educação dos filhos (novos métodos e técnicas nas relações familiares etc.) e de outras áreas de atuação.” (V)

Somente se terá a acessibilidade metodológica quando as “pessoas normais” forem capazes de adequarem os métodos de tratamento, estudo e labor às necessidades das pessoas com deficiência, pois sem essa adaptação, fica difícil de se garantir o cumprimento dos direitos dessas pessoas e, assim, estaremos cada vez mais distantes de harmonizarmos a sociedade como um todo.

Acessibilidade instrumental: é encontrada quando os instrumentos utilizados para trabalhar, brincar, estudar, realizar atividades comuns da vida diária, além de outras áreas de atuação, não atendem às limitações das pessoas com deficiência.

São as adaptações realizadas nos instrumentos, capazes de garantir às pessoas com deficiências, condições de igualdade com as outras pessoas, no desenvolvimento de sua vida social. Em defesa desse tipo de acessibilidade encontramos os terapeutas ocupacionais, os fisioterapeutas, os designers de produtos, dentre outros profissionais, que por meio de estudos, conseguem adaptar os instrumentos às necessidades de cada pessoa com deficiência e, com isso garantir o seu sentimento de utilidade e independência.

Acessibilidade programática: verifica-se quando as leis, portarias, regulamentos e políticas perpetuam a exclusão. São as barreiras invisíveis que se encontram nas políticas públicas, em regulamentos e normas em geral ou quando garantem os direitos dessas pessoas, deixam de ser obedecidas.

Afinal, de que adianta tantas normas garantindo amplo acesso às pessoas com deficiência, quando não há uma fiscalização eficiente e uma constante cobrança do cumprimento desses tantos direitos?

Apesar de nossa Lex Máxima garantir os direitos dessas pessoas e de existirem diversas normas infraconstitucionais tutelando esses direitos, ainda há muito desrespeito e indiferença por parte da sociedade em relação às pessoas com deficiência. Podemos citar, ainda, a acessibilidade tecnológica, que não é considerada um tipo autônomo de acessibilidade, no entanto, deve ser identificada e estar presente nos modos supracitados, exceto no atitudinal, para fazer valer o direito das pessoas com deficiência.

 

Acessibilidades X Funcionalidade: muito se fala e, recentemente está sendo frequente, se encontrar prédios buscando a tão cobrada acessibilidade; contudo, o que para muitos é uma garantia de consciência tranquila, de dever cumprido, para aqueles que necessitam de utilizar essas adaptações os aborrecimentos e constrangimentos ainda permanecem.

No caminho dessas pessoas com necessidades especiais, muitas serão as vezes em que as cadeiras de roda não terão como fazer as estreitas curvas das rampas de acesso, ou então, muitas serão as rampas que não contam com o piso antiderrapante, ou mesmo, possuem inclinações totalmente inviáveis para o acesso de um cadeirante ou de uma pessoa com mobilidade reduzida, por exemplo.

Entretanto, os problemas geralmente não param por aí, pois uma vez conseguido o acesso, isso não indica que a pessoa com deficiência conseguirá realizar as suas atividades normal e independentemente. Basta tomarmos como exemplo uma instituição financeira, em que vencidos os obstáculos de ingresso, ainda há a serem vencidos: as portas giratórias e detectoras de metais, os caixas eletrônicos com os comandos em localização alta demais para o adequado acesso de uma pessoa com mobilidade reduzida e a falta de piso tátil direcional e de alerta para as pessoas com deficiência visual.

Ou então, a luta para se conseguir a assistir uma simples partida de futebol em alguns estádios brasileiros, onde nunca há os assentos reservados para as pessoas com deficiência no meio da torcida do seu time, ou quando tem, não existe o lugar destinado a seu acompanhante (como institui a Lei 5.296/04, em seu artigo 23, caput e parágrafo 3º, e o Estatuto do Torcedor, artigo 13, parágrafo único); ou não suportam o número suficiente de torcedores “especiais”; isso quando conseguem chegar até o local das partidas, tendo em vista a falta de acessibilidade nas calçadas entorno dos estádios e nos transportes até os locais das partidas.


A sociedade precisa entender que para garantir a acessibilidade plena de uma pessoa com limitações não é simplesmente rebaixar as guias das calçadas, construírem rampas de acesso ou colocar barras de apoio pelos caminhos, pois há a necessidade de tais empreendimentos virem acompanhados de funcionalidade, eis que, de nada adianta a implantação se não vir a garantir o efetivo acesso.

Essa questão da funcionalidade das obras de acesso, vem sendo de fundamental preocupação nos projetos urbanísticos e arquitetônicos das cidades; fator que revolucionou o trabalho dos arquitetos, engenheiros e designers de interiores, eis que apesar de não terem uma matéria específica em seus currículos acadêmicos, há a questão social e perceptiva, que vem sendo cobrada por mais e mais clientes, e a necessidade de adequação previstas na lei de acessibilidade e nos padrões da ABNT.

O presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil, Gilberto Belleza, afirma que “a questão da acessibilidade é um ponto vital hoje nos projetos arquitetônicos” e ressalta que “não é possível mais considerarmos as construções que não possuem esse aspecto no seu escopo. Os arquitetos estão conscientes dessa necessidade dentro de seus projetos.” (VI)

As palavras do Presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil demonstra a preocupação em se fazer cumprir as normas de acessibilidade, de maneira correta e funcional uma vez que de nada adianta uma rampa de acesso bem construída se depois de entrar, a pessoa não conseguir fazer a atividade que o levou até ali.

No caso dos bancos, em que adianta as guias rebaixadas e as rampas de acesso, se no seu interior não dispõe de porta de acesso diferente da giratória, ou então, de um caixa eletrônico adaptado em altura, teclado em Braille e adaptações para deficientes auditivos? Por acaso será que os atendentes e principalmente o gerente vão ter o trabalho de se levantarem de suas mesas e se dirigirem até a parte externa da agência para atenderem os deficientes? E, será que se por acaso fizerem isso, não estarão causando um constrangimento ainda maior para essa pessoa? Será que não estarão a excluindo da maneira mais vexatória e desumana? Eis a questão para se refletir.

Nas palavras de Romeu Kazumi Sassaki, “inclusão, em rápidas palavras, é um processo de mudança do sistema social comum, para acolher toda a diversidade humana” (VII)

Sendo a acessibilidade a chave mestra para a garantia de todos os outros direitos, não seria correto não o ser também para a inclusão da pessoa com deficiência ao meio social, pelo contrário, a acessibilidade é a condição imprescindível para se formar uma sociedade inclusiva. A inclusão passa por diversos segmentos dentre eles o da saúde, educação, lazer, cultura, trabalho e, em todos, a regra básica para a sua concretização é a acessibilidade.

Uma vez garantida à acessibilidade em qualquer desses espaços, está se dando o primeiro passo para a inclusão, eis que sem esse acesso, a única coisa que se consegue é a segregação da pessoa com deficiência. Em todos os seus ramos a acessibilidade devolve à pessoa especial, a sua dignidade, independência, respeito e, principalmente o sentimento de ser útil e não apenas mais um pesado fardo a ser suportado pela sociedade.

Fica difícil de falar em inclusão se não tivermos nos cinemas, teatros, campos de futebol, edifícios públicos e privados, as rampas e barras (funcionais) de acesso, se não tivermos um professor habilitado para lhe dar com as deficiências auditivas e visuais, se não garantirmos os meios de acesso aos transportes e da internet, dentre outros meios de acessibilidade.

A inclusão é um processo gradativo, que deve abranger e contar com o apoio e participação de cada uma das pessoas que compõem a sociedade, eis que não vem melhorar apenas a vida das pessoas com deficiência, mas também das pessoas que sejam pelo fato de idade ou pela vida corrida e sedentária passaram a ter alguma redução na mobilidade, como por exemplo, têm-se os idosos, obesos e gestantes.

Ao contrário do que a maioria pensa, ao não propiciarmos a inclusão de uma pessoa especial em nosso meio social, quem mais perde não é essa pessoa, que apesar do preconceito vai lutar bravamente pelo respeito de seus direitos, mas todos nós, “a maioria”; “os normais”, que deixamos de aprender regras básicas como a da tolerância, respeito e amor para com o próximo.

A inclusão não garante benefícios apenas para as pessoas com deficiência, e sim para todos que integram esse ambiente, uma vez que as pessoas param de ser tão egoístas e de acharem que o mundo é uma imensa fábrica de problemas insuperáveis, e passam a ver que existem coisas muito piores do que os problemas que sustentam diariamente.

Com a presença de uma pessoa com deficiência, podemos aprender que a força não está no corpo que nos sustenta ou na mente que nos domina, mas na coragem e na determinação que cada um tem dentro de si. Aprende que existem muitas coisas ao nosso redor, que diariamente vemos, no entanto, não enxergamos a sua beleza e a sua verdadeira essência. Compreendemos que a comunicação vai muito além do simples ato de falar, mas também escutar a voz que vem de dentro, a voz da alma, dos sentimentos, dos gestos emanados por nossos corpos e, assim, garantir a harmonia e o convívio em sociedade.

Na tentativa de atuar diretamente promovendo a inclusão, a Igreja Católica, por meio da Campanha da Fraternidade de 2006, que teve como tema: “Levanta-te e vem para o meio”, tentou inserir as pessoas com deficiências no meio social. Na época vários movimentos e adequações visando à acessibilidade e a inclusão foram elaboradas, entretanto, decorridos três anos, a situação dessas pessoas continua a mesma. A sociedade se esqueceu de tudo que foi dito e realizado durante as celebrações e a própria igreja deixou de cumprir o seu papel de fiscalização e cobrança, assumido com esse tema.

Segundo Rubens Chiesa, conselheiro da Associação Amigos Metroviários dos Excepcionais – AME, “a inclusão social da pessoa com deficiência ou com mobilidade reduzida está intimamente ligada à sua mobilidade, caracterizada pela possibilidade de deslocamento na cidade” (VIII), o que hoje ainda é um grande problema para muitas pessoas com deficiência, e o que só vai ser conseguido com a mudança do pensamento da sociedade.

Garantias de acessibilidade: a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes, proclamada em 9 de dezembro de 1975, em seu artigo 3º, dispõe: “as pessoas deficientes têm o direito inerente de respeito por sua dignidade humana. As pessoas deficientes qualquer que seja a origem, natureza e gravidade de suas deficiências, têm os mesmos direitos fundamentais que seus concidadãos da mesma idade, o que implica, antes de tudo, o direito de desfrutar uma vida decente, tão normal e plena quanto possível”.(IX)

Encontramos em nossa Constituição Federal de 1988, garantias indispensáveis para a vivência das pessoas com deficiência, no entanto, alguns princípios se destacam e passam a ter maior importância sobre os demais, tais como o princípio da dignidade humana (artigo 1º, inciso III, Constituição Federal); o princípio da isonomia (artigo 5º, caput, Constituição Federal) e o princípio da habilitação e reabilitação (artigo 203, inciso IV da Constituição Federal).

Para o exercício desses e de todos os outros direitos fundamentais, o ponto vital; a pedra toque desses direitos é justamente a garantia da acessibilidade. As constituições anteriores já consagravam o direito de acesso das pessoas com deficiência, contudo, eram poucos os que realmente lutavam para o cumprimento de seus direitos.

Posteriormente, com o advento da Lex Máxima de 1988, o direito de acessibilidade, apesar de constar no rol das garantias fundamentais, sofreu um retrocesso, pois seu texto é de eficácia contida, uma norma de caráter limitado institutivo, por necessitar de outra norma para sua completa integração, o que só veio a ocorrer com a aprovação das Leis 10.048, de 8 de novembro de 2000 e a 10.098, de 19 de dezembro de 2000, portanto doze anos depois.

A Lei de Acessibilidade se tornou mais uma garantia e mais uma forma de se cobrar a aplicação dos princípios protetores das pessoas com deficiência, contudo, não foi o suficiente, dando ensejo à criação de um Decreto de Regulamentação (Decreto 5.296/04), o qual além de regulamentar a Lei de Acessibilidade, estabeleceu os prazos para adaptação dos prédios e estabelecimentos públicos e privados, de modo a garantir o acesso e permanência das pessoas com deficiência.


Apesar de todas essas garantias em prol das pessoas com necessidades especiais, o seu cumprimento carece de uma atenção especial, tendo em vista que, de acordo com os prazos estabelecidos no Decreto 5.296/04, muitos estabelecimentos ainda não dispõem de acessibilidade, gerando consequentemente muita exclusão.

O que falta para acelerar o cumprimento dessas normas é a cobrança por parte dos Conselhos Municipais dos Direitos das Pessoas com Deficiência, das Sociedades Organizadas que representam as pessoas com deficiência, do Poder Público, das próprias pessoas com deficiência e seus familiares e, principalmente pela sociedade, porque só assim, se estará exercendo a tolerância e cultivando o seu respeito para com o seu semelhante.

A legitimação dessas pessoas para o acompanhamento do cumprimento das regras estabelecidas pelo Decreto 5.296/04, encontra-se prevista no artigo 4º, desse Decreto. Sem a efetiva cobrança os responsáveis pelas adaptações ficam alheios às suas responsabilidades e, prorrogam, em demasia, o cumprimento de suas obrigações para com as pessoas com deficiência e também para com a sociedade.

Somente após a concretização de tais mudanças, em que todos os estabelecimentos disponibilizarão de acesso às pessoas com limitações é que “as pessoas normais” se conscientizarão de que vivem em um mundo em que há igualdades, semelhanças e desigualdades e, que para uma vivência sadia e feliz, é necessário que convivamos harmonicamente, respeitando as desigualdades e as semelhanças de cada um.

O direito de locomoção X direito de acessibilidade: o direito de locomoção muito se foi discutido em todos os tempos, sendo totalmente eliminado, juntamente com outros direitos fundamentais, no período considerado negro da nossa história, ou seja, o período da Ditadura Militar. Para se conter o abuso de limitação do direito de ir e vir, tem-se o remédio constitucional do Habeas Corpus, que serve tanto para prevenir um futuro cerceamento desse direito, ou então, para devolver a autonomia do exercício desse mesmo direito.

Entretanto, há uma limitação ao direito de locomoção que não é amparada pelo instituto do Habeas Corpus, que é exatamente o direito de acessibilidade. Apesar de ambos serem garantidos e reconhecidos constitucionalmente como de fundamental importância, em determinados casos, o direito de locomoção sofre limitação considerável, diante das condições adversas de acessibilidade, ou, mesmo sendo garantida, não apresenta a funcionalidade necessária para garantir o acesso da pessoa com deficiência.

Quando se fala no direito de locomoção, deve entender que neste não deve ser respeitado apenas o direito de ir e vir, mas principalmente o direito de existir, o que só é conseguido através do respeito ao acesso das pessoas com deficiência. Nos últimos anos esses direitos têm se mostrado mais claros, as autoridades, pressionadas pela Lei de Acessibilidade vêm tentando se adequar aos parâmetros legais estabelecidos, propiciando a inclusão das pessoas com deficiência que com os seus direitos assegurados retribuem à sociedade o respeito recebido, como é o caso dos atletas paraolímpicos que, apesar de suas limitações, tiveram os seus direitos garantidos e por isso são motivos de orgulho para nós nas competições mundiais.

O excelente rendimento desses atletas “nos prova que é possível romper obstáculos e que a maior deficiência pode estar entre os considerados “normais”, por ainda não terem adaptado os espaços públicos e privados para que as pessoas portadoras de deficiência possam cumprir o seu direito de ir e vir(X).”  O Procurador do Estado de São Paulo, Guilherme de Figueiredo, expõe sua opinião a respeito do tema, esclarecendo que “o meio ambiente urbano concentra alguns dos mais graves entraves para a plena efetividade do direito constitucional de locomoção, na forma de conflitos decorrentes da inadequação arquitetônica dos prédios, de concepções urbanísticas falhas e de desenho industrial impróprio dos veículos de transporte que circulam pela malha viária urbana (XI).”

O cerceamento no direito de locomoção das pessoas com deficiência, não só impedem o pleno exercício do direito de ir e vir, mas reflete negativamente em todos os outros ramos sociais da vida dessa pessoa e, também na de seus familiares. Além do significado imediato garantido com a acessibilidade, que é a dignidade da pessoa com deficiência, há um forte significado político implícito neste tipo de ação governamental.

“Ao se preocupar com o direito daqueles que a sociedade não só marginaliza como deixa escondidos em casa, o governo está reforçando a idéia de extensão de cidadania. Abre-se espaço na sociedade, portanto, para outras intervenções que promovam os direitos de outros setores. Além disso, questiona a retórica do liberalismo, que afirma a igualdade de direitos e oportunidades sem considerar as condições materiais de existência. Ainda que em grau limitado, contribui para reduzir as desigualdades sociais, especialmente porque grande parte das deficiências atinem em maior escala a população mais pobre (XII).”

Os conflitos entre o direito de locomoção e o direito de acessibilidade, surgem em decorrência do conceito de padronização de ambientes que ocorre em virtude de se utilizar os padrões típicos da “maioria” das pessoas. Um padrão que se forma com a imagem de pessoas jovens, atléticas, escolarizadas, independentes e saudáveis, esquecendo-se que pelo menos 10% (XIII) da população mundial apresenta algum tipo de deficiência ou alguma forma de mobilidade reduzida, o que deve ser considerado por todos, afinal, conviver com os iguais é fácil, no entanto, o mais enriquecedor e desafiador é conviver com os nossos desiguais e aprender com a sua desigualdade.

Referências

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I. MICHAELIS. Acessibilidade. Moderno Dicionário da Língua Portuguesa.

II. LOIOLA, Mariana. Acessibilidade: uma chave para a inclusão social.

III. ACESSIBILIDADE.

IV. Idem nota II

V. Idem nota III

VI. ACESSIBILIDADE PRESENTE NA CASA COR. Jornal da Associação Amigos Metroviários dos Excepcionais – AME. Ano IX. n.º 58. Julho/Agosto de 2006. p. 3.

VII. INCLUSÃO IMPLICA EM TRANSFORMAÇÃO.

VIII. CHIESA, Rubens. Transportes Públicos: Equação Social. Jornal da Associação Amigos Metroviários dos Excepcionais – AME. Ano IX. n. 57. Maio/Junho de 2006. p. 6.

IX. NASCIMENTO. Rui Bianchi, Os Direitos Humanos dos Portadores de Deficiência.

X. O DIREITO DE IR E VIR. Nossa Voz. Informativo da APAE de Carmo do Rio Claro-MG. Ano V. n. 5. agosto de 2006. p.2.

XI. FIGUEIREDO, Guilherme José Purvim de. Direito de Locomoção da Pessoa Portadora de Deficiência no meio urbano.

XII. TODOS TÊM DIREITO A SE LOCOMOVER.

XIII. Dados obtidos junto a relatórios da ONU.

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