Improbus litigator

Analogia fornece definição do que é litigância de má-fé

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2 de junho de 2009, 9h00

Utilizando-se de analogia legis, um magistrado aplicou elevada multa a advogado, com base nos artigos 14 e 17 do Código de Processo Civil, por ter se utilizado de meio impugnativo impróprio, no exercício da defesa de um condenado por tentativa de homicídio. O emprego da analogia nessa hipótese, entretanto, merece análise rigorosa que, invariavelmente, culmina na impossibilidade de sua aplicação.

Ao tentar usar a analogia e aplicar o instituto processual civil da litigância de má-fé na seara do processo penal, o juiz irá se deparar com uma grande dificuldade. De início, o aplicador da lei verá que o parágrafo único do art. 14 e o art. 18 da lei civil de ritos limitam o valor da multa processual a 20% e 1% do valor da causa, respectivamente. Transportará a penalidade sem o seu dispositivo limitador, e se verá sem o parâmetro previsto em lei para sua aplicação — o valor da causa.

Se em processo civil o valor da causa é fixado conforme parâmetros objetivos, (v.g. art. 259 do CPC), que dizem respeito ao objeto da demanda, em sede processual penal os parâmetros são subjetivos. A vida humana e a liberdade possuem valor inestimável. Daí o ditado: reus res sacra est. Como dizia a fábula: “Não há ouro o bastante para pagar a liberdade.” Nas causas penais, não há valor da causa; mais precisamente: há um valor de imensurável caráter público e social.

As limitações previstas no parágrafo único do art. 14 e no art. 18 foram criadas pelas leis n. 10.358/01 e lei n. 9.668/98, com redação legal destinada à seara onde as causas possuem, sempre (art. 259, CPC), valor definido ou definível. O legislador, assim, teve a oportunidade de prever as balizas que definiriam o quantum da multa processual civil.

A analogia fornece, ao juiz criminal, uma definição legal do que seja litigância de má-fé (art. 17, CPC), mas não lhe concede a multa processual (art. 18, CPC), que é vinculada a parâmetro inexistente em processo penal. A multa é inaplicável em sede criminal. Tais parâmetros são intransponíveis. Não é por menos que, em 2006, o Supremo Tribunal Federal(1) reconheceu em processo penal a litigância de má-fé, porém, sem aplicar multa processual.

Carlos Maximiliano advertia sobre a dificuldade de se empregar a analogia, ressaltando que seu manejo exige “inteligência, discernimento, rigor de lógica; não comporta uma ação passiva, mecânica. O processo não é simples, destituído de perigos; facilmente conduz a erros deploráveis o aplicador descuidado”(2).

Inúmeros problemas resultam dessa analogia, que emprega um conceito a guisa de semelhança, e lidam e são relacionados a instrumentalização de direitos materiais de naturezas distintas. Relembre-se o caso em que magistrado recebeu pedido de habeas corpus formulado pela área de meio ambiente do Ministério Público baiano, em que se buscava a libertação de uma chimpanzé. Usando de analogia juris, alegou-se que o animal era geneticamente o primata mais próximo do homem. A mesma analogia se empregou recentemente no writ n. 96.344, no STJ. Co­mo ensina Kauf­mann, “se seguirmos demasiado a analogia, tudo se torna idêntico; se a evitarmos, tudo se dissemina até ao infinito” (3).

O conceito de analogia consiste em aplicar a uma “hipótese não prevista em lei a disposição relativa a um caso semelhante” (4). A regra geral é excludente. Não se deve empregar a analogia quando a hipótese for prevista em lei. Na hipótese, prevêem a conduta do improbus litigator o artigo 34, VI, XIV, entre outros dispositivos da lei n. 8.906/94 (EOAB), que cuidam extensamente de infrações disciplinares, cominando penas severas, entre elas a multa. Inexistindo a lacuna legal, descabe falar em analogia, também por esse fundamento.

Para analisar o processo analógico, vamos nos valer da seguinte proposição utilizada por Maximiliano:

“A assemelha-se a B; será, por isso, muitíssimo verossímil que o fato m, verificado em A, seja também verdadeiro relativamente a B.

O argumento não procede, se é demonstrável que os fatos, ou propriedades comuns a B e A, não têm a menor ligação com m.


Se B se parece com A relativamente a todas as suas propriedades essenciais, todas as presunções militam no sentido de concluir que um e outro possuem o atributo m”(5).

Neste rumo, há que se indagar se o processo penal se assemelha com o processo civil, em todas as suas propriedades essenciais.

A própria ideia de litigância, em processo penal, já suscita um certo desconforto. Em que pese a doutrina majoritária, vale registrar o entendimento exarado pelo STJ, em acórdão unânime, declarando que em processo penal “não há partes, pedido ou lide, nos termos empregados no processo civil” (6).

Com efeito, o conflito de interesses qualificado por uma pretensão resistida, na clássica definição de Carnelutti, encontra significantes diferenças quando aplicado ao processo penal, em especial quanto à natureza dos interesses envolvidos e dos bens jurídicos tutelados, sendo o processo penal “um conjunto de atos que se realizam sucessivamente, preor­de­nados à solução de um conflito de interesses de alta relevância social”(7).

Na analogia o objeto a conhecer não é conhecido em si ou por si (na sua essência), mas pela relação que tenha com um outro que seja mais bem conhecido. “Por isso a lógica das proposições não pode bastar aqui, é necessária uma lógica dos predicados e das relações.” (8)

Sendo o direito processual, sob o ponto de vista de sua função jurídica, um “instrumento a serviço do direito material”(9), não há como se desconsiderar a relação que cada ramo processual contém com a natureza do seu direito material.

Destarte, no direito processual penal, a utilização da analogia, quando ocorre, diz respeito a meras questões procedimentais, nunca atingindo direitos ou criando punições. A doutrina cita como exemplos:

“a) a aplicação do art. 207 do CPC, que prevê a possibilidade de se transmitir por telefone uma carta de ordem ou precatórias, dependendo somente da confirmação do emissor. Não havendo dispositivo semelhante no CPP, tem-se usado tal preceito para a transmissão de ordens de habeas corpus, para a soltura do paciente, justamente porque mais eficaz;

b) não há um número especificado no CPP para ouvir testemunhas no caso de exceção de suspeição apresentada contra juiz, razão pela qual tem se utilizado o disposto no art. 407, parágrafo único, do CPC, ou seja, três para cada fato(10);

c) a questão atinente aos embargos declaratórios e seus efeitos sobre a decisão embargada, se suspende ou interrompe o prazo para outro eventual recurso. Não é tratada no CPP, e o entendimento é o de que se aplica o art. 538 do CPC, interrompendo-se o prazo”(11).

Nota-se que os exemplos não alcançam, e nem poderiam alcançar, limitações à liberdade individual, ao exercício de direitos, interesses juridicamente protegidos, ou o direito de defesa. Antes de se perquirir sobre a ontologia do processo e as correntes unicis­ta e dualista, há que se observar que a analogia encontra limitações constitucionalmente impostas ao intérprete da lei. Fauzi Hassan Choukr, ao analisar as bases de emprego e limites para a aplicação analógica, afirma que: “A admissão da analogia como método de interpretação tem como limite a natureza das normas reguladoras da relação processual penal a partir de sua fonte maior que é a Constituição. Tal observação por vezes se torna de difícil compreensão a partir do momento em que se impõe o discurso dogmático da teoria geral do processo que, numa visão unificadora a partir de uma metodologia comparativa (sobretudo a partir da obra de Carnelutti, 1950, repetida em grande parte pela abalizada doutrina nacional: Dinamarco: 1987, pp. 75-103), faz parecer possível a simples transposição de instrumentos existentes no processo civil ao processo penal, acarretando riscos a esse último (…).”(12)

Há muito se alerta para a necessidade de se observarem as distinções entre os ramos do direito ao se interpretar as normas (grifou-se):

“A teoria orientadora do exegeta não pode ser única e universal, a mesma para todas as leis, imutáveis no tempo; além dos princípios gerais, observáveis a respeito de quaisquer normas, há outros especiais, exigidos pela natureza das regras jurídicas, variável conforme a fonte de que derivam, o sistema político a que se acham ligadas e as categorias diversas de relações que disciplinam. O que não partir desse pressuposto, essencial à boa hermenêutica, incidirá em erros graves e freqüentes(13).


As disposições de Direito Público se não interpretam do mesmo modo que as do Direito Privado;(14) 

O recurso à analogia tem cabimento quanto a prescrições de Direito comum; mas não do excepcional, nem do penal. No campo destes dois a lei só se aplica aos casos que especifica”(15).

Ao cuidar da exegese extensiva, a doutrina tem reconhecido que o preceito do art. 3º não é absoluto, devendo considerar-se o texto taxativo, quando se tratarem de exceções às regras gerais, bem como de limitações à liberdade individual, ao exercício de direitos ou a interesses juridicamente protegidos, v.g. “quanto às prescrições que autorizem a prisão preventiva, o seqüestro dos bens do indiciado, ou restrições ao direito de defesa”(16).

Por esse motivo a criação analógica de delitos na Inglaterra teve fim em 1972, quando a Câmara dos Lordes rejeitou unanimemente a existência de um poder residual nas cortes para criar novos delitos ou ampliar os existentes, e tornar puníveis condutas do tipo anteriormente não submetido à pena (Cross and Jones)(17).

A aplicação analógica do instituto da multa processual civil, instrumento de Direito Privado com perfil punitivo, em seara processual penal, instrumento de Direito Público, atinge o direito de defesa — pelo estigma que produz — e o princípio da nula poena sine lege (princípio da legalidade).

Notas
(1) Supremo Tribunal Federal. Emb. Decl. no Ag. Reg. nos Emb. Div. nos Emb. Decl. nos Emb. Decl. no Ag. Reg. no Agravo de Instrumento nº 362.828-3/SP.

(2) MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 211.

(3) KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. p. 119.

(4) MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 208.

(5) Ibidem.

(6) REsp. 13.375/RJ, rel. Vicente Cernicchiaro, un. Sexta Turma. DJ 17.02.1992, RT vol. 681 p. 406.

(7) TUCCI, Rogério Lauria. apud NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 73.

(8) KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2004. p. 120.

(9) GRINOVER, Ada Pellegrini; DINAMARCO, Cândido Rangel; CINTRA, Antonio Carlos de Araújo. Teoria Geral do Processo. 16ª ed., São Paulo: Malheiros, 2000. p. 40.

(10) NUCCI, Guilherme de Souza. Manual de Processo Penal e Execução Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 112.

(11) TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. São Paulo: Saraiva. p. 38.

(12) CHOUKR, Fauzi Hassan. Código de Processo Penal – Comentários Consolidados e Crítica Jurisprudencial. Rio de Janeiro: Lúmen Iuris. 2007. p. 15.

(13) MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 2000. p. 303.

(14) Idem.

(15) Ibidem, p. 213.

(16) Ibidem, p. 329.

(17) ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. Manual de Direito Penal Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007. p. 154.

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