Recuperação judicial

Aplicação financeira não tem significado de garantia

Autor

  • Lionel Zaclis

    é advogado mestre e doutor em Direito pela USP e sócio de Barretto Ferreira Kujawski Brancher e Gonçalves - Sociedade de Advogados (BKBG).

1 de junho de 2009, 8h37

Por força do disposto no artigo 49 da Lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 (LRF), sujeitam-se à recuperação judicial os créditos existentes na data do pedido, excepcionando-se, nos termos de seu parágrafo 3º, os garantidos por alienação fiduciária de bens móveis ou imóveis, e outros assemelhados, vedada, apenas, a venda ou retirada durante o período de suspensão de 180 dias. Tal vedação, contudo, não se aplica aos casos de créditos decorrentes de locação ou de arrendamento de aeronaves (art. 199, § 2º).

De seu lado, prescreve o parágrafo 5º do artigo 49 que as quantias decorrentes do resgate de títulos de crédito, direitos creditórios, aplicações financeiras ou valores mobiliários dados em penhor pela empresa sujeita à recuperação judicial permanecerão em conta vinculada durante aquele período de suspensão, enquanto não renovada ou substituída a garantia.

Respeitáveis opiniões, inclusive na seara jurisprudencial, vêm sustentando que os créditos garantidos por “cessão fiduciária de direitos creditórios”, conhecidos no jargão financeiro como “travas bancárias”, inserem-se na esfera de imunidade estabelecida pelo parágrafo 3º do artigo 49 e, isso não bastasse, vêm entendendo que a disposição de seu parágrafo 5º se aplica às importâncias resultantes dos resgates dos títulos de crédito integrantes dessas garantias, devendo, assim, permanecer em conta vinculada durante o período de suspensão. Com o devido respeito, quer-nos parecer que tais entendimentos incidem em equívoco, pois, apegando-se à estrita literalidade da norma, desconsideram-lhe a correta interpretação gramatical, o significado teleológico e a função sistêmica.

Tenha-se em linha de conta, em primeiro lugar, que, por constituir finalidade primordial da LRF viabilizar a recuperação da empresa, as normas de que resultem obstáculos à sua consecução devem ser interpretadas estritamente.

Bem por isso, não há como enquadrar os créditos garantidos por cessão fiduciária de direitos creditórios na esfera de imunidade de que trata o parágrafo 3º do artigo 49 da LRF. Esta norma diz respeito a créditos com garantia imanente, consubstanciada na retenção, pelo credor, da propriedade sobre o próprio bem objeto do contrato. A causa desse negócio jurídico consiste na aquisição futura de um ativo por parte do devedor, de modo que, nessa hipótese, a garantia incide sobre um bem ainda alheio ao seu patrimônio, e que a ele só se integrará sob condição de adimplemento do contrato.

Parece clara a intenção da lei de conferir especial proteção a essa categoria de crédito, vinculado umbilicalmente ao direito de propriedade. Não seria racional, por isso mesmo, pudesse vir a sofrer os efeitos da recuperação judicial. Saliente-se, a propósito, que a imunidade foi assim justificada pelo legislador, na Exposição de Motivos que acompanhou o projeto de lei: “A solução decorre do disposto no artigo 170 da Constituição, que tutela, como princípios da ordem econômica, o direito de propriedade e a sua função social”.

Já no caso de garantia consistente na cessão fiduciária de direitos creditórios, o que se tem são créditos garantidos colateralmente. Aqui, o objeto da garantia já fazia parte do patrimônio do devedor. A causa desse contrato consiste na constituição de uma garantia por meio de pacto adjeto a um contrato de mútuo ou de financiamento. É indiscutível que, pelo fato de já integrarem o patrimônio do devedor, os direitos creditórios cedidos representam garantia de todos os seus credores, de modo que tornar imune o crédito decorrente do mútuo ou do financiamento configuraria clara violação dos princípios fundamentais do direito concursal aplicáveis.

Do ponto de vista da realidade substancial, nada há que justifique tratar distintamente um crédito garantido por penhor ou hipoteca e outro garantido por cessão fiduciária de direitos creditórios. A diversidade meramente formal das garantias não é suficiente para ensejar disciplinas jurídicas distintas.


Além desses aspectos, é de fundamental importância ter em vista que o conceito jurídico de “titularidade” empregado pelo artigo 18 da Lei 9.514, de 20 de novembro de 1997 — que trata da cessão fiduciária de direitos creditórios decorrentes de contratos de alienação de imóveis — não implica o de “propriedade”. De fato, como é curial, o cessionário de direitos creditórios não adquire a “propriedade fiduciária” desses direitos. Recebe, apenas, a titularidade de um direito de garantia sobre bem alheio. Ora, só os proprietários, propriamente ditos, é que gozam da imunidade prevista no parágrafo 3º do artigo 49 da LFR. Outrossim, é manifesto que a lei, ao utilizar a expressão “propriedade sobre a coisa”, quer-se referir apenas aos bens corpóreos, não aos incorpóreos.

Por outro lado, a vertente jurisprudencial do posicionamento ora examinado, embora afirmando que os créditos garantidos por cessão fiduciária de direitos creditórios sejam imunes aos efeitos da recuperação judicial, vem, contraditoriamente, determinando que as quantias resultantes dos resgates dos títulos fiduciariamente cedidos ao credor sejam depositados em conta vinculada durante o período de suspensão de 180 dias (art. 6º, § 4º da LFR).

Com o devido respeito, a contradição é inegável, pois, se o crédito garantido por cessão fiduciária de direitos creditórios fosse imune à recuperação — o que se admite apenas para argumentar —, nada, do ponto de vista jurídico, justificaria que os recursos financeiros advindos do resgate dos títulos cedidos em garantia devessem ser depositados em conta vinculada. Com efeito, esse depósito cautelar só é concebível na hipótese de recursos financeiros que, por sub-rogação, garantam créditos efetivamente sujeitos à eficácia da recuperação judicial.

Ora, é exatamente essa a situação jurídica do crédito garantido por cessão de direitos creditórios, o qual, por submeter-se aos efeitos da recuperação judicial, deve receber o mesmo tratamento daquele garantido por hipoteca ou por penhor. Com efeito, as garantias acima referidas só se distinguem entre si do ponto de vista jurídico-formal, não havendo entre elas nenhuma diversidade em termos jurídico-substanciais. Na realidade, em última análise, a distinção entre elas é meramente nominal, de modo que serve como luva à mão a célebre pergunta de Julieta a Romeu: “What`s in a name? “That which we call a rose by any other name would smell as sweet”.

Portanto, admitida que fosse, para argumentar, a imunidade dos créditos garantidos pela cessão fiduciária de direitos creditórios, tornar-se-ia assim injurídico como ilógico o bloqueio dos recursos financeiros decorrentes do pagamento das respectivas garantias.

Com o devido respeito, essa injuridicidade decorre de interpretação gramatical equivocada do parágrafo 5º do artigo 49 da LRF, como se, na oração iniciada por “tratando-se”, as locuções “direitos creditórios, “aplicações financeiras” e “valores mobiliários” apresentassem a mesma função sintática da locução “por penhor sobre títulos de crédito”, de tal modo que todas elas nada mais fossem, senão complementos nominais da locução “crédito garantido”, restando elíptica, em cada uma delas, a preposição “por”.

A propósito, sustenta um dos julgados integrantes dessa corrente jurisprudencial que a distinção entre as garantias representadas por propriedade fiduciária, de um lado, e por penhor, de outro, é insuficiente para subtrair o crédito garantido pela cessão fiduciária de direitos creditórios da incidência da norma contida no prágrafo 5º do artigo 49 da LFR, o qual impõe o depósito do dinheiro em conta vinculada. A explicação dada pelo aludido julgado, forte na interpretação acima referida, é a de que a lei não pretendeu dizer “penhor sobre títulos de crédito”, “penhor sobre direitos creditórios”, etc., “mas”, consoante suas próprias palavras, “apenas o que ali efetivamente consta”.


Com o devido respeito, esse raciocínio encerra uma petição de princípio, na medida em que dá como provado exatamente o que se trata de provar. Como é curial, para descobrir-se o que é que “ali efetivamente consta”, mister se faz, primeiramente, proceder-se à correta interpretação gramatical da norma, o que passa, de modo necessário, pela análise sintática de seu enunciado.

Feita tal análise, é fácil constatar que a interpretação ora criticada não apresenta consistência gramatical, pois, sendo zeugmática a expressão da norma, o termo elíptico deve corresponder àquele que, com a mesma função sintática, lhe preceda na frase, de modo mais próximo, e desde que, desse modo, esta última guarde sentido lógico.

Com efeito, a Gramática Normativa é um código de aplicação obrigatória, voltado a preservar o sistema de comunicação de uma dada sociedade. Assim sendo, não é gramaticalmente admissível que, em uma oração zeugmática, seja desconsiderado o termo mais próximo, de mesma função sintática, para, em substituição, pinçar-se um mais distante, que permita confirmar a conclusão a que o intérprete tenha chegado previamente. Como é evidente, os princípios e as leis da Gramática Normativa não podem validar o resultado de uma interpretação que os infrinja. Suponha-se, por exemplo, que na fachada de um salão de cabeleireiro fosse colocada uma placa com os seguintes dizeres: “Corto Cabelo e Pinto”. Se os potenciais clientes interpretassem seus dizeres de modo a infringir a regra do zeugma, a empresa, com toda a certeza, seria levada à falência.

No texto legal em exame, é indubitável que o zeugma ocorre em relação à preposição “sobre” e não à preposição “por”. Assim não fora, ter-se-ia que concluir não haver a lei disciplinado os efeitos decorrentes de créditos garantidos por penhor sobre direitos creditórios, por penhor sobre aplicações financeiras ou por penhor sobre valores mobiliários, o que constituiria rematado absurdo. Ora, é princípio basilar de hermenêutica jurídica que não se podem presumir absurdos na lei. Além disso, deixando-se de lado o linguajar comum, o certo é que, consoante a terminologia técnico-jurídica, as expressões “direitos creditórios”, “aplicações financeiras” e “valores mobiliários”, propriamente ditas, não apresentam o significado de “garantia”. Exercem, no contexto, apenas a função de objetos de garantias prestadas. Garantia, no rigor técnico-jurídico, é o instrumento jurídico (direito real sobre coisa alheia, propriedade fiduciária, fiança etc), por força do qual se assegura o cumprimento de uma obrigação.

Do exposto, pode-se concluir, de um lado, que os créditos garantidos por cessão fiduciária de direitos creditórios não se enquadram no âmbito da norma expressa no parágrafo 3º do artigo 49 da LRF, de modo que se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial, sendo certo que, a prevalecer entendimento contrário, esse instituto, tão fundamental para a proteção de empresas viáveis, e, portanto, para a ordem econômica nacional, seria fulminado de morte; e, de outro, pode-se concluir que as situações retratadas nos parágrafos 3º e 5º do artigo 49 são juridicamente distintas, sendo impossível, por consequência, aplicar a uma a disciplina estabelecida para a outra, sob pena de configurar-se flagrante contradição lógico-jurídica, com a quebra do sistema estabelecido pela lei.

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    é doutor e mestre em Direito pela USP e sócio de Barretto Ferreira Kujawski, Brancher e Gonçalves (BKBG) - Sociedade de Advogados, responsável pelo Departamento de Recuperação de Empresas, Insolvência e Direitos dos Credores.

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