Dignidade humana

Mentira como declaração falsa vai contra Constituição

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31 de julho de 2009, 16h40

A aridez do tema que empresta título a estas reflexões é efetivamente sufocante. Não sei se, pois, serão notas inférteis, improdutivas, inúteis. Apenas sei que devem ser ditas, porque a tendência decisória do Superior Tribunal de Justiça, se o predomínio vier a ser desse entendimento, representará mais um golpe no equilíbrio da cidadania, não não só já comprometida na sua inteireza como no seu exercício, como também no vigor da dignidade humana que estará, tanto quanto a ética já o está, em flagrante processo de descontituição.

Ora, se tomarmos como verdadeiro o fato de que dignidade humana e cidadão devem ter um só objeto, embora em suas respectivas jurisdições, o fato é que o cidadão carece da dignidade humana como a dignidade humana não existiria sem o cidadão.

Afinal, por que falamos de cidadão? Porque falamos do ser humano, aquele ser que sintetiza a própria existência das relações sóciojurídicas e do Estado. Tudo não se põe ao redor e no seu núcleo? É a partir do fato sócioeconômico que temos a norma jurídica e é a norma jurídica que regula em gradações diferenciadas a possibilidade do cidadão existir! E o fato sócioeconômico tem como ator o cidadão!

Ora, se assim é, a dignidade humana, tomando-se dignidade como dignitas, é valor, essencial à própria existência do cidadão, porque é ela que o põe perante si próprio e perante a sociedade em que ele vive. É a dignidade humana que estabelece, no campo do Direito, uma gradação de diversos valores que, não enunciados por escrito, defluem da própria consciência do existir. Apenas carecem de um registro gráfico, porque sua perenidade se impõe através desse registro, que é indelével, embora deva ser constantemente reavivado, especialmente em sociedades como a nossa, em que o poder exercido pelos Políticos sofre as incertezas da cobiça e da falta de metas ideais dos mesmos, que são pragmáticos e entendem sua atuação na gestão da coisa pública apenas nos limites em que possam se servir do Poder e de seus recursos.

A dignidade humana estaria, pois, no âmago do cidadão, talvez se confundindo com a própria mente, neste caso definido como “…o total organizado de estruturas e processos psíquico, conscientes e inconscientes;” ou “…a atividade total de um homem ou de um animal ao reagir à estimulação interna ou externa com relação à experiência do passado e à expectativa do futuro;” (Dicionário de Ciências Sociais, Fundação Getúlio Vargas, 1986,Coordenação de Benedito Silva).

O fato é que cidadania e dignidade humana se constituem em fundamentos do nosso Estado Democrático de Direito e ambas estão, no contexto constitucional, referidas de forma explícita ou implícita em diversos enunciados programáticos ou normativos existentes.

Na efetivação, portanto, dessas ações que deveriam preservar o cidadão, com vistas a lhe garantir o que os autores soem designar de direitos e garantias fundamentais, assecuratórias de um mínimo de segurança e felicidade ao cidadão, o fato é que um rol de proteções e faculdades em benefício do cidadão, aplicáveis até mesmo no momento em que ele ultrapassou o respeito que deveria ter a outro cidadão, feriu-lhes a dignidade, é previsto.

Tais faculdades ou tais direitos se arrolam por toda a Constituição, mas, em especial, no Artigo 5º. E é a partir do inciso LXIII deste Artigo 5º que gostaria de desenvolver, brevemente, as observações que julgo necessárias. O seu enunciado é de que “o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e do advogado.”

Ora, quem é preso? Em regra geral, podemos assumir que o preso é quem usou suas faculdades para ultrapassar o que se poderia designar de razoabilidade da ação ou da reação, quando da convivência social.  Juridicamente, seria quem infringiu, na exteriorização ou na concretude das suas ações, uma norma cuja sanção fosse precisamente a supressão da liberdade do Cidadão infrator.


Se assim é, podemos continuar, mas ressalvar que os tais princípios da razoabilidade ou da proporcionalidade, tão em voga, são instrumentos de que se vale a inteligência para o exercício de uma opção de prevalência de algum dos princípios que se enumeram na Constituição.

E ao nos referirmos à inteligência, é mister também que se precise, não estamos senão retendo um nível mental, sem buscar qualquer conceito mais profundo. Mas, de qualquer forma, se nos determos, conforme o Dicionário de Ciências Sociais, da Fundação Getúlio Vargas, Ed.1986, sob a Coordenação de Benedicto Silva, editado sob inspiração da Unesco para melhor divulgar as Ciências Sociais, o fato é que a inteligência mais que simplesmente traduzir um nível mental, tem polarizado “… diversos modos de defini-la…” e tais modos podem ser assim agrupados: “a) capacidade de abstração; b) eficácia da aprendizagem (em termos de aquisição, elaboração e transferência) e consequentemente organização do comportamento; c) competência para a solução de problemas.”

Assim, ainda nos termos dos ensinamentos constantes do verbete próprio daquele dicionário, “Em todos os casos a inteligência é concebida como um potencial interindividualmente variável e vinculado fundamentalmente aos processos cognitivos,  notadamente ao pensamento.”

E tudo isso sem podermos nos esquecer que a inteligência, de uma forma ou de outra no sentido de sua disseminação ou nuclearização, “… juntamente com a sensibilidade e a vontade – integrava o núcleo da vida psíquica.” do Cidadão.

Portanto, como instrumento fundamental do processo de escolha que tiver que ocorrer no campo do Direito, tanto o raciocínio que se fizer por inspiração do enunciado de razoabilidade como aquele da proporcionalidade é indispensável para que se possam alinhar com os idéias de Justiça e Felicidade do cidadão os diversos direitos ou faculdades – reunidos como princípios – que lhe são conferidos na Constituição.

Portanto, ainda que não assumamos qualquer posicionamento de especialistas como decorrência de pesquisas empíricas ou teóricas, o fato é que a inteligência sempre estará no cerne do comportamento do Cidadão. Ora, ao ser assegurado ao cidadão o direito de ficar calado, não se lhe está aplicando a máxima popular do “quem cala consente”.  De fato, estaremos diante de uma garantia assegurada. Seu silêncio apenas significará a recusa em prestar informações, em declarar os fatos, ainda que subjetivamente na sua visão particular, motivadora do ato, eventualmente delitual.

Ainda, conforme a doutrina, não tem o cidadão que se postar como prova. Nesse aspecto, Ada Pellegrini Grinover, citada por Celso Ribeiro Bastos, em Comentários à Constituição do Brasil, Ed. Saraiva, 2ª. Ed. atualizada, 2001, 2º volume, leciona “… Ainda que se quisesse ver no interrogatório um meio de prova, só o seria em sentido meramente eventual, em face da faculdade dada ao acusado de não responder. A autoridade judiciária não pode dispor do réu como meio de prova.”

Todavia, uma coisa é guardar o silêncio, outra coisa é exercer uma faculdade e no seu exercício abusar de seu uso e transgredir ou desrespeitar a dignidade humana.

Efetivamente, se, como vimos, o cidadão exerce com a dignidade humana o seu extrato de valor, exterioriza um respeito a si próprio, a perda de qualquer vetor componente da própria dignidade humana é agressiva e é a negação da existência desse valor. Ora, nesse contexto, mentir não é errar, mas realizar uma “…afirmação deliberada e falsa….” (Dicionário de Psicologia, Dorsch, Editora Vozes, Editado pelo Prof. Friedrich Dorsch e outros, Ed. 2001).

Não vamos nos aprofundar nos fundamentos da mentira, porque não é o escopo destas reflexões, mas o fato é que, cientificamente, pode-se simplesmente qualificar como mentira, no campo científico, o comportamento deliberado contrário à verdade, que se expressaria no silêncio. As razões para tanto é que, contrastado com o fato, silenciando o Agente mente ao não se conformar com a realidade dos fatos. E tal segurança a Constituição brasileira lhe dá, lhe assegura, como vimos, pelo silêncio.


Portanto, aí competirá ao Magistrado avaliar a intensidade da omissão, do silêncio para firmar ou infirmar os elementos probatórios que puderem alcançar o cidadão, agente, no fato flagrado, do ato. Nesse aspecto, nossa premissa não está conforme Celso Ribeiro Bastos, no livro mencionado, citando Grevi, em Ciência Penal, “…do silêncio ou da mentira do réu não podem deduzir-se presunções que superem a presunção de inocência, solenemente proclamada no artigo 9º, da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão, ou que superem o princípio.

Mas não nos alinhamos com tais comentários, porque não vimos neles a necessária seriedade numa abordagem constitucional do silêncio num contexto de cidadania e dignidade humana.

Aí está o nosso ponto crucial. Se num contexto científico do ato mentira se podem distinguir o silêncio ou a declaração falsa, o fato é que a declaração falsa, envolve o agente em uma ação violenta que fere a dignidade humana, isto é, que desmonta a escala de valor que dá ao cidadão um destaque especial, uma individualidade que tem que ser respeitada por todos em benefício de todos. Até mesmo porque, ao mentir através de uma declaração falsa, o cidadão atropela, com a versão fraudada, a área de atuação de outro cidadão, lesando-o, ferindo-o, negando assim os valores que a qualquer cidadão são devidos.

E é nesse contexto que lamentamos que o STJ esteja abrigando, na ponderação dos princípios inscritos na nossa Constituição, a mentira como declaração falsa dentre as faculdades da cidadania, inscritas no enunciado do direito ao silêncio.

Esconder a verdade, que se efetiva com o silêncio, é faculdade constitucional sem dúvida, sobre a qual não vamos discutir, porque concordamos em que exista, pelas razões sintetizadas acima. Mas no silêncio há omissão, mas pode-se dizer que não há agressão formal, já que voltar-se sobre si, recusar-se interagir com as autoridades se constitui apenas na transferência à Autoridade do encargo de produzir os elementos probatórios que permitirá, afinal, aplicar à cidadão infrator a norma adequada.

Distorcer a verdade, com expressões volitivas adredemente arquitetadas para falsear os fatos, extrapolando os limites individuais do exercício da liberdade de agir, é a nossa objeção ao posicionamento do STJ.

Na ponderação dos valores constitucionais, que defluem no Artigo 1º, como fundamento do Estado Democrático de Direito, e aqueles que se inscrevem no Artigo 5º, é mister que a aplicação de um – especialmente se inscrito no Artigo 5º! – não prejudique ou distorça outro, que possa estar nos fundamentos do próprio Estado, como o é a cidadania e a dignidade humana.

Ao utilizar a mentira como declaração falsa, ou o ato de simplesmente mentir, e não o ato de simplesmente se omitir  ou simplesmente se calar ou, ainda, simplesmente ficar em silêncio, o cidadão está invadindo a individualidade a cidadania, de forma coletiva, porque a mentira como declaração falsa descreve áreas de atuação de outro cidadão e não dignifica a cidadania. A mentira como declaração falsa, além do mais, se posiciona contra todos os outros princípios prevalecentes de nossa Constituição.

O cidadão não tem que se autoincriminar, mas o cidadão não pode, no exercício de sua defesa, ferir o exercício da dignidade humana de outro cidadão.

A observância dos princípios da moralidade, da legalidade, da eficiência, da impessoalidade e todos os demais que possam ser extraídos da Constituição em vigor há que se efetivar como atributo da dignidade humana e, assim, toda vez que for desconstituído ou infringido se estará também infringindo ao próprio cidadão, que possa estar sendo alcançado nas consequências, uma agressão pelos atos daquele cidadão, que não só está mais se defendendo, mas agredindo um seu semelhante, sem observar o princípio da dignidade humana.

Lamento, portanto, imensamente, que possa o STJ estar abrigando e incentivando, por amor a um enunciado constitucional cuja leitura está, venia concessa, inadequadamente fazendo, o cometimento de uma agressão ao próprio exercício da dignidade humana, como, por exemplo quando afirma que “Quem atribui a si mesmo falsa identidade diante da polícia para esconder antecedentes penais não comete crime.”

Creio que o contexto do “notório saber jurídico” impõe ao Ministro ou ao Magistrado a capacidade intelectiva de ponderar a categoria de valores que devem ser abrigados e divulgados na sociedade em que as normas de determinada Constituição se aplicam. E, nesse contexto, porque a inteligência, como já mencionamos, tem uma vertente dinâmica e fundamental no comportamento do cidadão. Além disso, é mister que as opções de razoabilidade ou proporcionalidade levem em conta o perfil dessa sociedade, cuja decisão judicial está ajudando a construir.

Como já tive oportunidade de deduzir, há poucos dias, se a presunção de inocência está atuando sobre os princípios da moralidade, da legalidade, da eficiência, da publicidade e da eficiência como uma verdadeira condição suspensiva de vigência das mesmas, já que as ações que as infringem só podem ser assim consideradas após trânsito em julgado da decisão judicial que as declara ocorrida, o fato é que é imperativo, para o bem da sociedade brasileira, para a boa estrutura dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, que as decisões dos Tribunais, observados os devidos processos legais – esses, sim, sagrados e inadiáveis – sejam preservados no interesse de todos os cidadãos, que se devem sentir a segurança jurídica como um vetor indispensável de Justiça e Felicidade!

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