Prêmio temporário

Crédito-prêmio de IPI é benefício setorial

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28 de julho de 2009, 4h14

Atualmente, nenhuma disputa judicial é mais relevante para a Fazenda Nacional e os contribuintes do que a que envolve o termo final do crédito-prêmio do IPI. Como os leitores que acompanham a questão seguramente sabem, essa discussão é travada nos tribunais brasileiros há bem mais de uma década e a jurisprudência oscilou dentro de alguns parâmetros. Mas o que é esse crédito-prêmio do IPI?

Instituído em 1969 pelo artigo 5º do Decreto-lei 491 como um incentivo às exportações de produtos manufaturados, primeiramente destinado apenas aos fabricantes-exportadores e posteriormente às trading companies (DL 1.894/81), o crédito-prêmio se traduzia na possibilidade de compensação do seu valor com tributos, ou no seu recebimento em dinheiro. O cálculo do benefício era feito com a aplicação da alíquota do IPI daquele produto no mercado interno sobre o valor exportado, limitado a 15%. Por pressões no âmbito do GATT, antecessor da Organização Mundial do Comércio, já que se tratava de incentivo à exportação e não de desoneração tributária, o governo brasileiro programou sua extinção gradual até 30 de junho de 1983.

A evolução jurisprudencial do tema no Superior Tribunal de Justiça pode assim ser resumida: (i) de 1999 a 2004, por ambas as Turmas de Direito Público, o STJ entendia que o crédito-prêmio do IPI não havia sido extinto em 30 de junho de 1983, e que, portanto, poderia ser gozado até 5 de outubro de 1990 (os pedidos nas ações judiciais eram nesse sentido); (ii) em 2004, pela Primeira Turma, e em 2005, pela Primeira Seção, o STJ mudou seu entendimento para fixar a data de extinção do benefício em 30 de junho de 1983; (iii) e finalmente em 2006, pela Primeira Seção, retornou ao entendimento anterior pela extinção em 5 de outubro de 1990, o qual foi confirmado em julgamento finalizado em 2007.

O tema agora encontra-se com repercussão geral reconhecida no Supremo Tribunal Federal (RE 577.302/RS), que deverá interpretar o disposto no artigo 41 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição da República de 1988[1]. Sem adentrar nos pormenores da disputa judicial travada até agora, o que se deve ressaltar sobre a discussão que se avizinha no STF é que ela se dará sobre o conceito do que seria um incentivo setorial. Pela dicção do artigo em questão, se o crédito-prêmio do IPI for considerado um incentivo setorial, poder-se-á concluir que, se ele não foi extinto em 1983, como preconiza a Fazenda Nacional, ele seguramente foi extinto em 5 de outubro de 1990, entendimento pacificado no STJ, como se viu. É essa a análise que aqui se fará, ainda que de forma perfunctória.

A transcrição acima feita do dispositivo constitucional demonstra que o constituinte originário concedeu o prazo de dois anos para os entes políticos confirmarem expressamente por lei a permanência em vigor dos incentivos de natureza setorial. O primeiro dado relevante: o crédito-prêmio do IPI não foi expressamente confirmado pelo Congresso Nacional, seja dentro dos dois anos estabelecidos pelo constituinte, seja em período posterior — o que, se tivesse ocorrido ou vier a ocorrer, teria ou terá a mácula da inconstitucionalidade. O principal argumento dos defensores da tese de que o crédito-prêmio do IPI estaria em vigor reside na natureza do incentivo em questão, que não seria setorial, o que afastaria a aplicação do artigo 41 do ADCT.

Para se chegar à validade desse argumento, dever-se-á perquirir qual a definição de incentivo setorial. A própria Constituição da República não o faz, por óbvio, e tampouco se encontrará na legislação infraconstitucional, o conceito de setorial. Como as expressões contidas na Constituição da República devem ser interpretadas de forma larga, sem restrições de ordem doutrinária, as quais não foram pensadas e queridas pelo constituinte originário, o conceito de setorial contido no artigo 41 do ADCT deve ser interpretado da forma mais ampla possível. Nesse sentido setorial pode ser setor exportador, setor agrícola, setor de grãos, setor industrial, setor automobilístico, setor farmacêutico, setor de serviços etc. Enfim, setor pode ser o mais genérico possível, como pode ser deveras específico. Não há limitações interpretativas para a expressão “setorial” de que ora se cuida, salvo uma, conforme se aprende com o Procurador da Fazenda Nacional Túlio de Medeiros Garcia, em excelente artigo sobre o assunto:

Quer parecer-nos, inclusive, que a intenção do legislador constitucional, ao inserir o termo “de natureza setorial” no artigo 41, do ADCT, foi apenas para excluir da regra os incentivos de natureza regional, como aqueles relativos à SUDAM e SUDENE.

Gabriel Lacerda Troianelli reproduz trechos dos debates travados na Assembléia Nacional Constituinte referentes à gênese desse dispositivo constitucional temporário.

Na idéia original, a norma seria permanente, localizada no corpo da Constituição e a revisão seria periódica, aplicando-se indistintamente a todos os incentivos fiscais, segundo o anteprojeto relatado pelo então Deputado Federal José Serra.

O dispositivo causou espécie entre os constituintes. A alguns, como o Deputado Roberto Campos, pela insegurança causada pela periodicidade da revisão. A outros, notadamente do Norte e Nordeste, temerosos de que a regra pusesse em risco os investimentos realizados em razão dos incentivos fiscais específicos para as regiões menos desenvolvidas do país.

Explicando os objetivos de seu anteprojeto, o deputado José Serra esclareceu que o objetivo da norma era de reavaliar todos os incentivos fiscais, mantidos, entretanto, aqueles de natureza setorial:

“É muito importante, no Brasil, fazer-se uma revisão no sistema de incentivos, não para suprimir os de caráter regional, mas para melhorá-los, onde for possível, porque nada é perfeito. Há vários outros. Os que não são de caráter regional deveriam ser suprimidos, mas não os de caráter regional tendentes a combater desigualdades.” (destacamos)

Em razão das polêmicas levantadas, foi alterada a redação original contida no anteprojeto, retirando a periodicidade das revisões, passando o dispositivo para o ADCT e incluindo o termo “de natureza setorial”. Dessa forma, não se colocou em risco os incentivos fiscais destinados ao desenvolvimento regional.

Verifica-se, assim, que o objetivo do legislador foi especificamente de diferenciar os incentivos de caráter regional dos demais incentivos fiscais, para os quais a revisão se impunha. Não utilizou o constituinte nomenclatura técnica, se é que se pode falar em sentido técnico para a expressão em debate, haja vista a ausência na doutrina de conceituação clara das espécies de incentivos fiscais.

O objetivo da norma contida no artigo 41, do ADCT, era o de promover a revisão de todos os incentivos fiscais então em vigor, ressalvados apenas os incentivos de natureza regional, que inclusive têm escopo constitucional, no art. 151, inciso I.

Nesse ponto, é importante notar, não pretendeu o legislador constituinte extinguir todos os incentivos fiscais que não tivessem natureza regional. Ao contrário, o dispositivo contido no ADCT previu a necessária revisão desses benefícios, em dois anos, devendo, nesse prazo, ser restabelecidos por lei, sob pena de se considerarem revogados. 

O histórico do debate travado na Assembléia Nacional Constituinte acerca da definição contida no citado artigo 41 do ADCT é provavelmente a melhor indicação do que deve ser entendido por “incentivo setorial”. Incentivo setorial inclui qualquer incentivo que não possa ser considerado regional, isto é, que vise beneficiar uma determinada região do país. Como o crédito-prêmio do IPI inegavelmente abrangia todo o território nacional, não há como tentar classificá-lo como benefício regional, o que leva à inexorável conclusão que o mesmo é um benefício setorial, o qual, por não ter sido confirmado em nenhum momento, encontra-se extinto desde 5 de outubro de 1990, isso na hipótese de se desconsiderar a sua extinção em 1983. Na Corte Constitucional, responsável por dar a palavra final na interpretação dos dispositivos constitucionais, o artigo 41 do ADCT foi interpretado de forma ampla, como aqui preconizado. Eis a ementa do RE nº 280.294/MG (DJ 21/06/2002, p. 130), da relatoria do ministro Carlos Velloso:

CONSTITUCIONAL. TRIBUTÁRIO. ISS. INCENTIVOS FISCAIS: ISENÇÕES CONCEDIDAS PELA UNIÃO. CF, 1967, com a EC 1/69, art. 19, § 2º. PROIBIÇÃO DE CONCESSÃO, POR PARTE DA UNIÃO, DE ISENÇÕES DE TRIBUTOS ESTADUAIS E MUNICIPAIS. C.F., art. 151, III. I. – O art. 41 do ADCT/1988 compreende todos os incentivos fiscais, inclusive isenções de tributos, dado que a isenção é espécie do gênero incentivo fiscal. II. – Isenções de tributos municipais concedidas pela União na sistemática da Constituição de 1967 art. 19, § 2º: D.L. 406/68, art. 11, redação da Lei Compl. 22, de 1971. Incentivos fiscais, nestes incluídas isenções. Sua revogação, com observância das regras de transição inscritas no art. 41, §§ 1º, 2º e 3º, ADCT/1988. III. – RE conhecido e provido. (grifou-se)

O Supremo Tribunal Federal, portanto, quando instado a se manifestar sobre a abrangência da expressão “incentivos fiscais de natureza setorial” afirmou: “o art. 41 do ADCT/1988 compreende todos os incentivos fiscais”. Tal decisão é significativa, eis que não há nenhuma outra em sentido contrário naquela Corte e caberá novamente a ela decidir sobre a aplicação desse dispositivo ao crédito-prêmio do IPI. Se o objetivo da norma era o de extinguir todos os incentivos fiscais que não os regionais, desde que não fossem confirmados no prazo de dois anos da promulgação da Constituição, qual seria a razão para se entender agora que o crédito-prêmio do IPI não seria por ela alcançado? Qual seria o motivo de se manter em vigor justamente um benefício que reconhecidamente era e é contrário aos acordos internacionais de que o Brasil era e é signatário na área do comércio internacional? Enfim, não há razões jurídicas para se entender que o crédito-prêmio do IPI está em vigor.


[1] Art. 41. Os Poderes Executivos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios reavaliarão todos os incentivos fiscais de natureza setorial ora em vigor, propondo aos Poderes Legislativos respectivos as medidas cabíveis.

§ 1º Considerar-se-ão revogados após dois anos, a partir da data da promulgação da Constituição, os incentivos que não forem confirmados por lei.

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