Via de mão dupla

Tributação deve respeitar Direitos Humanos

Autor

  • Renato Lopes Becho

    é juiz federal titular da 10ª Vara Federal de Execuções Fiscais de São Paulo/SP Livre-docente em Direito Tributário pela USP professor de Direito Tributário na PUC/SP e autor de Filosofia do Direito Tributário.

27 de julho de 2009, 5h19

Os Direitos Humanos podem ser estendidos à tributação, tema incipiente, mas que começa a ser objeto de reflexão no Brasil. Por Direitos Humanos temos a concepção jurídico-filosófica que privilegia o respeito aos valores e coloca novamente o homem no centro do Direito. O positivismo jurídico — mero respeito às leis — dá lugar, de forma prudente e moderada, à finalidade do sistema jurídico: a proteção do homem. Para alcançar seu objetivo de proteção do ser humano, notadamente frente ao Estado, o Direito volta sua atenção a valores como a dignidade da pessoa, o respeito à individualidade e à privacidade.

Mas será que em uma área tão técnica como a tributação há espaço para discussões humanistas? A resposta é sim. O Estado pode agir, no campo da tributação, sem respeitar o contribuinte, reduzindo-lhe a dignidade, a individualidade e a privacidade. Para atingir os seguidos recordes de arrecadação, sempre superiores ao crescimento da economia, o governo brasileiro pode estar arranhando a Constituição Federal de 1988, por exemplo, nos princípios da igualdade, do devido processo legal, da moralidade e da razoabilidade — todos eles instrumentos dos Direitos Humanos.

A alcançada eficiência na arrecadação, muito bem vinda e imprescindível para o avanço social, a redução das desigualdades econômicas, a manutenção da máquina pública e o pagamento da pesada dívida pública, tem que ser acompanhada pelo tratamento digno e eficiente das demandas daqueles que suportam o peso dos tributos. Sobre eles não deve pesar, também, excessos burocráticos sem importância e inúteis para o Estado. A eficiência em atendê-los tem que ser exemplar, como exemplar é a arrecadação.

Há algumas situações, contudo, em que esse quadro não é confirmado. Na “Declaração de Bagagem Acompanhada” que os viajantes ao exterior têm que entregar à Receita Federal, pede-se atualmente o número da poltrona. Será que, com isso, a Administração Tributária quer saber se o contribuinte estava em classe econômica, executiva ou primeira classe? Se for por isso, cabe a pergunta: será que os agentes da Alfândega vão conhecer a configuração de todos os aviões para saber, apenas pelo número da poltrona, em que classe estavam? Fará diferença se pagaram ou não por aquela determinada poltrona? Esse exemplo talvez confirme o que muitos empresários relatam: o dever de prestar informações ao fisco por vezes é estendido a dados inúteis.

Mas, ao lado de situações aparentemente sem maiores consequências, há outras muito mais sérias, como exemplificamos a partir do Sistema Público de Escrituração Digital – SPED, em início de operação. Nele, a entrega de dados à Receita Federal, para as grandes empresas, é online, em tempo real e integral. Todos os dados que o fisco quiser são, agora, repassados a ele imediatamente. Pois bem, para haver respeito aos Direitos Humanos, à dignidade do contribuinte, o fisco deve prestar as informações, para os contribuintes, também de forma muito rápida. Não é o que acontece em uma situação muito importante. Se um contribuinte se defender, perante um juiz federal, em um processo de execução fiscal federal na cidade de São Paulo, apresentando uma cópia de guia de pagamento de tributo, o Poder Judiciário tem que aguardar, em média, quatro anos pela resposta da Receita Federal. A mesma instituição que exige informações online dos contribuintes lhes responde — via Poder Judiciário Federal — em quatro anos! Esse quadro não respeita a dignidade do contribuinte, assim como fere o princípio da igualdade, com reflexo nos Direitos Humanos dos contribuintes.

Outra dúvida nos parece relevante. O Sistema Público de Escrituração Digital poderá ser aplicado às pessoas físicas? Nós poderemos ser obrigados a somente fazer compras — por exemplo, em supermercados, lojas e farmácias — apresentando o CPF, com dados repassados imediatamente à Receita Federal? A resposta tem que ser negativa, pois isso feriria os Direitos Humanos.

A discussão dos Direitos Humanos, aplicada à tributação, é uma ferramenta de defesa do contribuinte contra os Poderes Públicos. O Estado pode ser opressor pela Polícia (comum e política), pela Censura, por obrigar nacionais a viverem no exílio, mas também pode sê-lo pelo fisco. Se não houver limites para a Administração Tributária, não haverá aplicação dos Direitos Humanos à tributação. Significa dizer que os contribuintes estarão sujeitos a toda sorte de desrespeito e opressão pelo Estado fiscal.

Na Europa, a Corte Européia de Direitos Humanos foi chamada, entre maio de 1959 e abril de 2000, em mais de 240 casos relacionados à tributação, como noticia o professor inglês Philip Baker. Os principais temas foram: proteção à propriedade, direito a um processo justo, proibição de discriminação, direito ao respeito, à privacidade e à vida humana e liberdade de pensamento, consciência e religião. Essas indicações demonstram como são vários os temas tributários que podem sofrer a interferência dos Direitos Humanos.

Acreditamos que a Administração Tributária tenha condições, por conta própria, de melhorar os mecanismos de respeito aos contribuintes, equilibrando os bônus e os ônus do Estado fiscal. Caso contrário, as hierarquias superiores do Poder Executivo — Ministério da Fazenda e Presidência da República —, assim como os demais Poderes, devem promover os ajustes para que os Direitos Humanos dos contribuintes sejam plenamente respeitados.

Autores

  • é juiz federal, titular da 10ª Vara Federal de Execuções Fiscais de São Paulo/SP, Livre-docente em Direito Tributário pela USP, professor de Direito Tributário na PUC/SP e autor de Filosofia do Direito Tributário.

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