Carga rápida

Regras para carga de processos afrontam lei

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22 de julho de 2009, 16h52

Se por um lado a advocacia festejou a aprovação da Lei de Carga Rápida dos processos judiciais em papel, para assegurar o direito de extrair cópias sem maiores entraves burocráticos, o acesso à íntegra dos autos digitais não está sendo cumprido, em regra, pelos tribunais, em conformidade com a legislação vigente.

Com o advento da Lei 11.969/09, denominada como Lei da Carga Rápida, houve a alteração do parágrafo 2º do artigo 40 do Código de Processo Civil, disciplinando a retirada dos autos de cartório ou de secretaria pelos procuradores, na hipótese de prazo comum às partes pelo período de uma hora, independentemente de ajuste prévio.

Essa norma justifica-se para facilitar a obtenção de cópias para estudo do processo pelos procuradores, em detrimento da então vigência de algumas normas de organização judiciária adotadas por certos tribunais que dificultavam a efetividade da carga rápida.

Se levarmos em conta que o Judiciário brasileiro conta atualmente com setenta milhões de processos ativos e cerca de noventa e seis por cento destes processos possui tramitação em papel, constataremos que essa mudança processual ainda será de grande utilidade por um bom período.

Entretanto, em se tratando do grupo de autos judiciais que tramitam em formato digital, que atualmente somam cerca de dois milhões e oitocentos mil processos, as regras quanto ao acesso à íntegra dos autos nos parece estar em relativa desconformidade com a legislação vigente.

A grande maioria dos sistemas de práticas processuais que vêm sendo colocadas em uso após a vigência da Lei 11.419, de março de 2007, adotam como regra procedimental critérios que limitam o acesso aos autos somente aos procuradores e partes, ressalvados os casos de segredo de Justiça, de acordo com o disposto do artigo 11, parágrafo 6º, da Lei 11.419/06.

Em outras palavras, não é possível que um advogado possa ter acesso para extrair cópias ou estudar o processo caso não tenha procuração nos autos.

Em alguns sistemas adotados pelos tribunais, não basta apenas a existência da procuração juntada aos autos, mas será necessário também que o procurador esteja cadastrado no sistema, de modo a habilitá-lo de fato para o exercício pleno de suas prerrogativas.

Durante o procedimento de análise processual no tocante à identificação dos procuradores, nem sempre o critério adotado é tratado com o mesmo zelo ao se inserir dados no cadastro do processo digital. Isso ocorre principalmente nos casos em que existem inúmeros procuradores com instrumento de procuração em um determinado processo, pois nem sempre todos estão sendo previamente cadastrados nos sistemas.

Esse fato acarreta uma situação inusitada, pois o advogado pode dar carga nos autos em papel desde que apresente sua identificação presencialmente, mas terá assegurado o direito de acesso à íntegra dos autos digitais. Esse problema só será sanado mediante comparecimento do interessado presencialmente no balcão da secretaria, para reivindicar o seu cadastramento no sistema, que já deveria ter ocorrido no momento da análise processual, ao constatar que a sua procuração se encontra presente nos autos.

O correto seria que os tribunais onde tramitam processos digitais possibilitassem o suprimento deste lapso da secretaria, por meio de rotinas sistêmicas online onde seria possível apurar a autenticação do advogado por meio de certificado digital. Com isso, não ocorreria o desconforto do comparecimento presencial, pois o benefício a ser propiciado pela tecnologia busca reduzir os deslocamentos aos tribunais.

Outra controvérsia que irá gerar um impasse no tocante ao acesso aos autos em formato digital resulta do conflito entre dois dispositivos legais. Trata-se do artigo 11, parágrafo 6º, da Lei 11.419, e o artigo 7º, inciso XIII, da Lei 8.906/94. Isso significa dizer que e a lei do processo eletrônico (11.419), como norma geral referente às práticas processuais por meio eletrônico, limitou o acesso à íntegra dos autos às partes e seus advogados constituídos e ao Ministério Público.

Entretanto, não se pode olvidar a existência de norma específica que regulamenta o exercício da advocacia, que preceitua que é direito do advogado “examinar, em qualquer órgão dos Poderes Judiciário e Legislativo, ou da Administração Pública em geral, autos de processos findos ou em andamento, mesmo sem procuração, quando não estejam sujeitos a sigilo, assegurada a obtenção de cópias, podendo tomar apontamentos” (artigo 7º, inciso XIII, Lei 8.906/94).

Entendo que, neste caso, há de prevalecer o princípio da proporcionalidade, pois o legislador não está liberto de limites quando elabora as normas, mormente quando estas tendem a reduzir a esfera de algum direito fundamental.

Portanto, é imperioso que os sistemas de práticas processuais já adotados sejam adequados, para conformidade entre os meios e fins, bem como a utilidade de um ato para a proteção de um direito já anteriormente assegurado à classe dos profissionais da advocacia.

As medidas visando restringir o acesso à íntegra dos autos digitais para advogados que não estejam com procuração ou registrados no sistema de práticas processuais é medida que gera lesão a um dos direitos fundamentais e conflita com o disposto no inciso XIII do artigo 5º da Constituição Federal, que preceitua ser livre o exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer.

Desta forma, se a lei que regulamenta o exercício da advocacia — a Lei 8.906, no artigo 7º, inciso XIII — assegura acesso aos autos indistintamente, sejam digitais ou em papel, esta norma específica não se curva aos comandos da norma geral.

Na única oportunidade em que a Justiça brasileira analisou até o momento essa controvérsia, o CNJ decidiu pela revogação do Enunciado Administrativo 11, que preceituava:

“Nos processos digitais findos ou em curso perante o Conselho Nacional de Justiça, o acesso à íntegra dos autos é limitado às partes e seus advogados constituídos e ao Ministério Público (Lei nº 11.419/2006, art. 11, § 6º).” Questão de Ordem no PCA 200710000003932.

Os fundamentos para essa revogação foram brilhantemente sustentados em voto do ministro Técio Lins e Silva que asseverou:

A regra que assegura ao Advogado a vista dos autos sem procuração é prerrogativa que se concede ao cidadão, do qual o Advogado é mandatário, para assegurar o direito de defesa.

Quantas vezes o Advogado – sobretudo o que trabalha com a prova, como no âmbito criminal ou na advocacia de família – necessita colher prova emprestada para instruir a causa de seu cliente.

Além disso, no cotidiano da advocacia, o Advogado muitas vezes antes de assumir a causa necessita conhecê-la para dizer se a aceita, estabelecer condições de trabalho, enfim, formalizar o vínculo profissional. Não tem sentido que para tanto o Advogado necessite de procuração, que pressupõe a relação formal já estabelecida. Não é conveniente que a procuração seja concedida para quem ainda não é o Advogado da causa!

Como se vê, a lei do processo eletrônico não pode abolir as prerrogativas adquiridas no Estatuto da Advocacia, pois naquela lei federal não há limitação ou restrição que o direito de acesso à íntegra dos autos seja aplicado apenas nos casos em que os autos judiciais sejam em papel.

É importante enfatizar que os avanços da tecnologia da informação aliada a inovadoras atividades que vêm sendo exitosamente desempenhadas por diversos tribunais brasileiros ao longo desses anos têm garantido resultado jamais vistos em prol da almejada celeridade no trâmite processual.

Os resultados práticos já alcançados pelos tribunais têm demonstrado que o investimento em tecnologia e capacitação de servidores irá reduzir o número de processos e o lapso temporal das decisões, pois esse é o caminho seguro para alavancar a credibilidade do Judiciário perante a sociedade.

Porém, é necessário refletir sobre a adequação das práticas processuais sistêmicas vigentes, notadamente quanto ao acesso à íntegra dos autos digitais, para que estejam em conformidade legal.

Caso isso não aconteça, a tecnologia não proporcionará o conforto almejado e poderá propiciar a criação, por cada tribunal, de um CPS próprio, ou seja, um Código de Processo do Sistema, onde as rotinas de programação implantadas poderão estar em desacordo com as normas processuais vigentes.

Isso é ainda mais preocupante uma vez que cada tribunal atualmente tem poderes para criar suas próprias regras, sistêmicas e normativas, conforme disposto no artigo 18 da Lei 11.419/06.

Como estamos tratando do desenvolvimento contínuo de um programa de computador por cada tribunal para a gestão das práticas processuais, essa solução deve ser encarada como um produto inacabado, em decorrência da evolução contínua da inteligência humana. Esperamos que estes ajustes possam ser efetivados o quanto antes, para que possamos buscar uma rápida adesão a estes benefícios por todos os atores processuais.

Autores

  • é advogado, sócio do escritório Aristoteles Atheniense Advogados, presidente da Comissão de Tecnologia da Informação do Conselho Federal da OAB, coordenador e professor do Curso de Pós-Graduação de Direito de Informática da Escola Superior de Advocacia da OAB/SP

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