Direito Penal "Inimigo"

É preciso lutar pela garantia da ampla defesa

Autor

  • Marcio Rodrigo Delfim

    é advogado em São Paulo e professor de Direito Penal Direito Constitucional Direito Processual Civil Direito Empresarial e de Instituições de Direito em três faculdades de Goiás

21 de julho de 2009, 13h38

De acordo com a teoria desenvolvida pelo professor alemão Günther Jakobs, pode-se dizer que existem dois direitos penais, “um é o do cidadão, que deve ser respeitado e contar com todas as garantias penais e processuais; para ele vale na integralidade o devido processo legal; o outro é o Direito Penal do inimigo. Este deve ser tratado como fonte de perigo e, portanto, como meio para intimidar outras pessoas” (Gomes, 2009).

Deve ser considerado inimigo “quem se afasta de modo permanente do Direito e não oferece garantias cognitivas de que vai continuar fiel a norma”. Como exemplo, Jakobs cita os “criminosos econômicos, terroristas, delinquentes organizados, autores de delitos sexuais e outras infrações penais perigosas” (Gomes, 2009).

No que tange ao tratamento que deve ser dispensado ao inimigo, como ele “não é um sujeito processual, (…) não pode contar com direitos processuais” (Gomes, 2009). Em suma, o “Direito Penal do Inimigo” estabelece que o “cidadão” deve ser respeitado e pode contar com todas as garantias penais e processuais colocadas à sua disposição. Já o “inimigo”, pelo fato de não ser um sujeito processual, não pode contar com tais direitos.

Tecidos esses comentários, é imprescindível esclarecer que, a nosso ver, a aplicação da referida teoria é um retrocesso, além de ser flagrantemente inconstitucional. Em um Estado Democrático de Direito as garantias processuais e materiais devem ser asseguradas a todos, independentemente de qualquer condição pessoal. Apesar disso, questiona-se: será que a tese do “Direito Penal do Inimigo” não está sendo aplicada no Brasil, de forma mascarada?

Para analisar esse assunto, é importante ressaltar que a Constituição Federal, em seu artigo 5º, inciso LXXIV estabelece que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos”. Os doutrinadores, ao comentarem referido dispositivo, ensinam que “(…) a assistência judiciária costuma ser conceituada como a organização estatal ou paraestatal que tem por fim, ao lado da dispensa das despesas processuais, a indicação de um advogado para os necessitados” (CHIMENTI: 2003).

Por óbvio, não basta a mera indicação de um advogado, pois, na realidade, é seu dever utilizar todos os meios que estejam à sua disposição, para tentar melhorar a condição do assistido. Nesse momento, é imprescindível a transcrição do seguinte trecho do preâmbulo do Código de Ética e Disciplina da OAB: “O Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, ao instituir o Código de Ética e Disciplina, norteou-se por princípios que formam a consciência profissional do advogado e representam imperativos de sua conduta, tais como: os de lutar sem receio pelo primado da Justiça; pugnar pelo cumprimento da Constituição e pelo respeito à Lei, fazendo com que esta seja interpretada com retidão, em perfeita sintonia com os fins sociais a que se dirige e as exigências do bem comum; (…) comportar-se, nesse mister, com independência e altivez, defendendo com o mesmo denodo humildes e poderosos; (…) jamais permitindo que o anseio de ganho material sobreleve à finalidade social do seu trabalho” .

Em outras palavras, isso significa que o advogado deve lutar, com todas as “armas” possíveis, a fim de concretizar o princípio do devido processo legal (artigo 5º, inciso LIV, CF), que tem como um de seus corolários, a ampla defesa (artigo 5º, inciso LV, CF).  Ampla defesa nada mais é do que propiciar ao acusado todos os mecanismos necessários para salvaguardar seu direito, lembrando que tais mecanismos devem ser executados no tempo e no modo previstos pela legislação processual penal. Como se sabe, a ampla defesa divide-se em autodefesa e defesa técnica.

Autodefesa é a realizada pelo próprio acusado e se subdivide em direito de audiência e direito de presença. Direito de audiência significa que o acusado tem direito de ser ouvido pelo juiz, visando interferir na formação de sua convicção. É o que ocorre, por exemplo, no interrogatório. Já o direito de presença quer dizer que o acusado pode participar de todos os atos processuais, notadamente os instrutórios. É o que ocorre quando se ouve uma testemunha de acusação. Importante ressaltar, porém, que a autodefesa é facultativa.


A defesa técnica, entretanto, é obrigatória e é aquela executada por advogado legalmente inscrito na OAB. A falta dessa defesa constitui nulidade absoluta, enquanto a sua deficiência gera nulidade relativa, nos termos da súmula 523 do STF (1). Ricardo Cunha Chimenti, ao tratar da ampla defesa, aponta entre seus requisitos básicos o seguinte: “que o interessado possa recorrer da decisão que lhe for desfavorável” (CHIMENTI: 2003). É inegável que, se o advogado nomeado não interpuser o recurso cabível e isso venha a acarretar prejuízo ao assistido, estar-se-á diante de uma nulidade relativa.

A preocupação com a questão dos recursos é tão grande que foi editada a Súmula 708 do STF (2), que trata do princípio da ampla defesa aplicada aos recursos. Como se sabe, salvo raras exceções, como no caso de impetração de Habeas Corpus, por exemplo (artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei 8.906/94), nosso ordenamento jurídico exige capacidade postulatória para os atos processuais. Tal capacidade, nos termos do artigo 1º, inciso I, da Lei 8.906/94, é privativa do advogado. Assim, trata-se de um dever dos advogados nomeados praticar todos os atos processuais em benefício do assistido, inclusive a interposição dos recursos cabíveis.

Todavia, na prática, não é isso que vem ocorrendo, pois, as pessoas mais pobres, ou seja, aquelas que não têm condições para contratar um advogado particular, apenas em raríssimas hipóteses conseguem exercer a ampla defesa em sua plenitude, apesar da previsão constitucional (artigo 5º, inciso LV), o que viola, flagrantemente, o princípio da isonomia, previsto no artigo 5º, “caput”, da Constituição Federal.

Nesse ponto é imprescindível lembrar, novamente, a lição de Jakobs, quando se refere ao tratamento que deve ser dispensado ao inimigo: “como ele não é um sujeito processual, (…) não pode contar com direitos processuais” (GOMES: 2009). Diante desse quadro, chega-se à seguinte conclusão: no Brasil, o principal direito processual assegurado na Constituição Federal (direito à ampla defesa, como corolário do princípio do devido processo legal), não está sendo observado em sua plenitude, graças à falta de recursos financeiros para contratação de advogados particulares.

Para se evitar injustiças, desculpas são devidas aos bons advogados conveniados, que existem aos montes, pessoas combativas, idealistas, de excelente formação moral e, principalmente, que se preocupam com a situação jurídica dos assistidos. Por outro lado, não há como negar que, após o fenômeno conhecido como “proliferação dos cursos jurídicos”, muitos advogados estão entrando no mercado de trabalho sem nenhuma qualificação técnica, comprometimento, responsabilidade, etc. A preocupação exclusiva desses “operadores do direito”, no mais das vezes, não se refere ao bem-estar de seus clientes, mas diz respeito, apenas, aos honorários a serem arbitrados ao final do processo.

Para aqueles que não estão inscritos nos convênios da Assistência Judiciária, essa questão dos honorários deve ser melhor explicada. No Estado de São Paulo, por exemplo, ao ser proferida uma sentença (absolutória ou condenatória), caso não haja a interposição de recurso, nem pela acusação, nem pela defesa, o advogado nomeado tem direito a 100% (cem por cento) do valor dos honorários advocatícios previstos na tabela da OAB, para aquela determinada ação penal.

Entretanto, se houver a interposição de recurso, o advogado recebe, após a sentença, 70% (setenta por cento) do valor constante na referida tabela. Os outros 30% (trinta por cento) serão pagos somente depois do trânsito em julgado da decisão. Devido a essa situação, muitos advogados deixam de interpor recurso, ficando na expectativa do Ministério Público (ou do querelante) também não o fazê-lo, para, com isso, receber o valor integral dos honorários logo após a sentença.

A título de exemplo, veja-se um caso corriqueiro: uma pessoa está sendo processada pelo crime de estelionato e, durante a instrução criminal, a ocorrência da “torpeza bilateral” se torna manifesta, ou seja, constata-se que a vítima do crime, de uma forma ou de outra, também agiu com má-fé, visando obter alguma vantagem. Nessa hipótese, o advogado, em memoriais, deve requerer ao juiz seja levado em conta o comportamento da vítima, no momento de fixar a pena, com base no artigo 59, “caput”, do Código Penal (3).


Suponha-se que o magistrado, na sentença, nada mencione a respeito do comportamento da vítima. Nesse caso, o advogado deve, primeiramente, opor Embargos de Declaração, com o objetivo de suprir a referida omissão. Caso o juiz mantenha a decisão, o causídico deve interpor recurso de apelação, uma vez que o referido comportamento deveria ter sido observado pelo juiz, quando da fixação da pena-base. E mais, na apelação o advogado já deve abrir um tópico para tratar do “pré-questionamento”, pois, caso o Tribunal de Justiça não acolha a alegação da defesa, estar-se-á negando vigência a uma lei federal, o que autoriza a interposição de um Recurso Especial, nos termos do artigo 105, inciso III, alínea “a”, da Constituição Federal (4).

Na prática, entretanto, o advogado nomeado, para receber mais rapidamente o valor integral a que, em tese faz jus, não interpõe apelação e a sentença de primeiro grau acaba transitando em julgado, o que, evidentemente, acarreta um prejuízo ao assistido. Dessa forma, lembrando que para Jakobs, o inimigo “não é um sujeito processual”, motivo pelo qual “não pode contar com direitos processuais”, e tendo em vista a mencionada violação ao princípio da ampla defesa, ao que parece, em nosso país, a palavra “inimigo” pode, perfeitamente, ser substituída pela palavra “pobre”.

Para finalizar o presente trabalho é importante transcrever a lição de Luiz Flávio Gomes que, de uma forma ou de outra, confirma tudo que foi dito até agora:

“(…) desde 1980, especialmente nos EUA, o sistema penal vem sendo utilizado para encher os presídios. Isso se coaduna com a política econômica neoliberal. Cabe considerar que desde essa época vem se difundindo o fenômeno da privatização dos presídios. Quem constrói ou administra presídios precisa de presos (para assegurar remuneração aos investimentos feitos). Considerando-se a dificuldade de se encarcerar gente das classes mais bem posicionadas, incrementou-se a incidência do sistema penal sobre os excluídos. O Direito Penal da era da globalização caracteriza-se (sobretudo) pela prisionização em massa dos marginalizados.

 

Os velhos inimigos do sistema penal e do estado de polícia (os pobres, marginalizados etc.) constituem sempre um “exército de reserva”: são eles os encarcerados. Nunca haviam cumprido nenhuma função econômica (não são consumidores, não são empregadores, não são geradores de impostos). Mas isso tudo agora está ganhando nova dimensão. A presença massiva de pobres e marginalizados nas cadeias gera a construção de mais presídios privados, mais renda para seus exploradores, movimenta a economia, dá empregos, estabiliza o índice de desempregado etc. Os pobres e marginalizados finalmente passaram a cumprir uma função econômica: a presença deles na cadeia gera dinheiro, gera emprego etc.

 

Como o sistema penal funciona seletivamente (teoria do labelling approach), consegue-se facilmente alimentar os cárceres com esse “exército” de excluídos. Em lugar de ficarem jogados pelas calçadas e ruas, economicamente, tornou-se útil o encarceramento deles. Com isso também se alcança o efeito colateral de se suavizar a feiúra das cidades latino-americanas, cujo ambiente arquitetônico-urbanístico está repleto de esfarrapados e maltrapilhos. Atenua-se o mal-estar que eles “causam” e transmite-se a sensação de “limpeza” e de “segurança”. O movimento “tolerância zero” (que significa tolerância zero contra os marginalizados, pobres etc.) é manifestação fidedigna desse sistema penal seletivo. Optou claramente pelos pobres, eliminando-lhes a liberdade de locomoção. Quem antes não tinha (mesmo) lugar para ir, agora já sabe o seu destino: o cárcere. Pelo menos agora os pobres cumprem uma função socioeconômica! Finalmente a elite político-econômica descobriu uma função para eles” (Gomes, 2009).

Apesar de, no Brasil, os presídios não serem privatizados, a essência da ideia esposada por Luiz Flávio Gomes pode, sem nenhum problema, ser invocada aqui, pois, como se sabe, a imensa maioria da população carcerária é composta por pessoas de baixa renda, as quais não dispõem de recursos financeiros para contratar bons advogados para lutar por seus direitos.

Para concluir o presente trabalho e corroborando os argumentos já expostos é interessante transcrever a declaração feita à Revista Época, pelo Deputado Federal Domingos Dutra (PT-MA), que vistoriou 62 prisões brasileiras, como parte de um levantamento que identificou 9 mil pessoas que terminaram de cumprir pena, mas continuam presas: “Não encontramos nenhum colarinho-branco, só colarinho-preto: muitos jovens, pobres e negros”.

Assim, em resposta à indagação feita no início desse estudo, verifica-se que, infelizmente, a teoria do “Direito Penal do Inimigo” vem ganhando “corpo” em nosso ordenamento jurídico, mesmo que de forma indireta, e cabe a nós, operadores do direito, a missão de reverter esse triste quadro.

Referências
1.
Súmula 523 do STF: “No processo penal, a falta de defesa constitui nulidade absoluta, mas a sua deficiência só o anulará se houver prova de prejuízo para o réu”.
2. Súmula 708 do STF: “É nulo o julgamento da apelação se, após a manifestação nos autos da renúncia do único defensor, o réu não foi previamente intimado para constituir outro”.
3. Artigo 59, caput, do Código Penal: “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime: (…)”.
4. Artigo 105, inciso III, alínea “a” da Constituição Federal: “Compete ao Superior Tribunal de Justiça: (…) julgar, em recurso especial, as causas decididas, em única ou última instância, pelos Tribunais Regionais Federais ou pelos tribunais dos Estados, do Distrito Federal e Territórios, quando a decisão recorrida (…) contrariar tratado ou lei federal, ou negar-lhes vigência.

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    é advogado em São Paulo e professor de Direito Penal, Direito Constitucional, Direito Processual Civil, Direito Empresarial e de Instituições de Direito em três faculdades de Goiás

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