Contribuições sem destino

"MPs e contribuições são fantasmas da tributação"

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19 de julho de 2009, 8h56

Spacca
Hamilton Dias de Souza - Spacca

Criado para alimentar as administrações públicas de forma equilibrada e racional, o sistema tributário brasileiro hoje é um grande prato de panquecas amontoadas umas sobre as outras. Desde a Constituição de 1988, medidas provisórias e leis vêm aumentando o número de demandas fiscais para os contribuintes. Como a obesa máquina estatal aumenta seu apetite a cada ano, a refeição tende a ficar cada vez maior. A fome compulsiva do poder público é o motivo dos seguidos recordes de arrecadação e da alta carga de tributos que a atividade econômica brasileira tem de sustentar.

“A gastança se deve à facilidade com que os recursos são arrecadados”, diz um dos estudiosos do Direito Tributário mais citados em decisões judiciais e petições em todo o país. Em entrevista concedida à Consultor Jurídico, o advogado e professor Hamilton Dias de Souza fala por que pagar tributos é hoje uma prática tão controversa e questionada na Justiça, e por que contribuintes e fiscais ficam perdidos no labirinto de normas e leis tributárias.

O advogado acumula vitórias retumbantes no Supremo. Foi a partir de um caso sob seu patrocínio que a corte editou a Súmula 570, reconhecendo a não-incidência do ICM sobre importações de bens de capital feitas antes da Emenda Constitucional 23/83. A súmula foi aprovada em 1976.

Segundo o professor, a razão de tanta cobrança é que os governos se acostumaram a gastar, e a gastar mal. Os contribuintes brasileiros pagam o mesmo que os europeus pelos serviços públicos. No Brasil, a mordida do fisco equivale a até 40% do Produto Interno Bruto, número próximo do que pagam noruegueses, dinamarqueses e suecos, que chega a 44% do PIB. Com uma diferença. Os europeus contam com educação, saúde e segurança de qualidade sem pagar nada a mais por isso. Já os concorrentes comerciais do Brasil são mais afáveis com seus contribuintes. Os governos de China, México, Chile e Argentina nunca sufocam a atividade econômica em mais de 20% do PIB.

O Judiciário, que é quem deveria puxar as rédeas desse apetite convulsivo, também tem culpa no cartório. De acordo com Hamilton de Souza, o Supremo Tribunal Federal foi conivente com o fisco ao admitir a instituição de inúmeras contribuições que deveriam incidir apenas sobre determinados grupos, mas pesam sobre todas as empresas. “O Executivo percebeu que o mapa da mina para aumentar suas arrecadações é criar novos impostos rotulados de contribuições”, diz. A manobra, que recebeu o aval do Supremo, consiste em dar uma finalidade para cada tipo de arrecadação. Assim, o novo tributo pode ser considerado contribuição e incidir sobre a mesma base que já sofre a cobrança dos impostos de caráter geral. Entraram por esta brecha, além da famigerada CPMF já extinta, a Cofins, a CSLL e a Cide, entre outras contribuições.

Números de um estudo comparativo feito pela Federação do Comércio do Estado de São Paulo e pela comissão da Reforma Tributária criada no Congresso Nacional — das quais o professor faz parte —, mostram que a carga tributária, antes das contribuições, girava em torno de 26%. Depois das contribuições, saltou para 37%. E apesar de a Constituição ter sido generosa para com estados e municípios em relação à cobrança de tributos, esse aumento foi praticamente todo para a União, já que as alíquotas regionais têm sido estáveis, segundo o professor.

Além do Conselho Jurídico da FCESP e da comissão de reforma tributária do Congresso, Dias de Souza também é membro do Instituto dos Advogados de São Paulo, da Academia Paulista de Direito, da Academia Brasileira de Direito Tributário, do Conselho Consultivo do Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial e da Academia Internacional de Direito e Economia. Ex-professor de Direito Tributário da USP, o advogado tem dois livros e mais de 60 artigos e teses publicados.

Leia abaixo trechos da entrevista, que teve a participação das jornalistas Aline Pinheiro e Fabiana Schiavon.

ConJur — Como pagar tributos no Brasil se tornou tão complexo?
Hamilton Dias de Souza —
O sistema tributário pode ser concebido de uma forma racional. Há outros sistemas que são construídos ao longo do tempo, com o aperfeiçoamento de conceitos. Esses sistemas são chamados de históricos. Nosso sistema atual teve uma origem racional, com a Constituição de 1988. Quando há uma alteração, uma nova Constituição, você inaugura uma ordem jurídica, criando um sistema tributário. Antes da Constituição de 88, nós tínhamos um sistema tributário racional criado pela Emenda Constitucional 18 de 1965. Esse foi seguramente um dos melhores modelos entre os modelos racionais. Foi fruto da obra de pessoas extraordinárias como Rubens Gomes de Souza, da Febraban [Federação Brasileira de Bancos]. Mas, como tudo no Brasil, depois da Constituição de 1967 veio a Emenda 1, de 1969, e outras emendas que se seguiram.

ConJur — As emendas não servem para aperfeiçoar o texto original?
Hamilton Dias de Souza —
Essas emendas, que são muitas vezes editadas por razões episódicas e não estruturais, acabaram deformando o sistema. Vai-se criando tributos. Funciona como panquecas. Coloca-se uma sobre a outra, mas não tira nenhuma. Os novos tributos vão se colocando em cima dos antigos, o que desnatura completamente o sistema.

ConJur — Como se combate essa sobreposição?
Hamilton Dias de Souza —
Eu diria que é mais ou menos razoável num país com tantas transformações como o Brasil que, ao longo do tempo, o sistema sofra deformações. Sem fazer crítica ao passado, que isso não interessa mais, na Constituição de 88, a ideia era racionalizar o sistema, criar uma estrutura nova com bases puramente racionais e não históricas. E, evidentemente, a Constituição de 88 criou uma série de alterações fundamentais no que já existia. Porém, a partir daí, as deformações impostas à ideia original foram extraordinárias. A culpa não é do Executivo e do Legislativo apenas. O Supremo Tribunal Federal teve uma grande responsabilidade nas deformações causadas ao sistema.

ConJur — Por quê?
Hamilton Dias de Souza —
Um sistema organizado num país federativo tem, em primeiro lugar, de preservar a federação. É por isso que existem cláusulas pétreas, que não podem ser alteradas em substância. E é por essa razão que o sistema tributário é a base do federalismo. Ele atribui fontes próprias de recursos à União, aos estados e aos municípios. Não existe federalismo com o “chapéu na mão”.

ConJur — Como a estrutura deveria funcionar?
Hamilton Dias de Souza —
Nosso federalismo tem forte origem no modelo americano e, portanto, os modelos europeus não servem muito para nós. O modelo americano é bastante claro. A estrutura da disseminação constitucional de rendas atribui competências privativas da União, dos estados e dos municípios, de forma que todos os fatos econômicos, de forma exaustiva, são atribuídos aos três, permitindo que, politicamente, cada um crie os tributos que bem quiser sob sua competência. As pluritributações e micropluritributações podem existir quando previstas na Constituição. Não previstas, a ideia desse sistema é que isso não deva ocorrer.

ConJur — O que deformou o sistema?
Hamilton Dias de Souza —
O problema da Constituição de 1988 foi que ela consagrou em seu texto a figura das contribuições, que são as maiores responsáveis pela deformidade do sistema tributário. São tributos diferentes dos impostos. Impostos são instituídos sobre todos aqueles que têm condições econômicas para contribuir. As contribuições, por outro lado, só podem ser cobradas de um determinado grupo atingido pelas atividades desenvolvidas pelo estado. Por exemplo, uma contribuição de intervenção do domínio econômico sobre o açúcar afeta o mercado de açúcar, e só terá contribuintes relacionados com o produto. No passado, as contribuições obedeciam a um desenho teórico. Hoje em dia, o Executivo percebeu que o mapa da mina para aumentar suas arrecadações é criar novos impostos rotulados de contribuições.      

ConJur — Como funciona na prática?
Hamilton Dias de Souza —
Basta que o tributo rotulado de contribuição seja cobrado de quem não pertence ao grupo atingido pela atuação estatal. A contribuição para o salário-educação, as contribuições de intervenção do domínio econômico ou as contribuições do petróleo tiveram destinações para atividades estatais muito amplas, gerais. Ninguém tem dúvida de que a malha viária é um problema sério, mas não se resolve esse problema com a criação de uma contribuição de intervenção do domínio econômico. E não é só pelo fato de existir petróleo que se tem prejuízo nessa malha viária. Isso é uma questão geral. E todas as questões gerais têm que ser atendidas com impostos e não com contribuições.

ConJur — De que maneira o fisco ganha com isso?
Hamilton Dias de Souza —
A criação dessas contribuições tem duas vantagens extraordinárias para o poder público. Em primeiro lugar, por meio da contribuição é possível cobrar um tributo que incida sobre um fato econômico de competência de estados e municípios. Então, se o tributo incidisse sobre a circulação de riquezas e a prestação de serviços, ele teria a mesma base do ICMS, por exemplo, numa pluritributação econômica. O PIS e a Cofins também incidem sobre uma mesma base. Quando se promove a circulação de uma mercadoria ou a prestação de um serviço, o contribuinte paga imposto de renda, contribuição social sobre o lucro, PIS, Cofins, ICMS, IPI e, às vezes, paga contribuições previdenciárias. Algumas das tributações econômicas seriam admitidas pelo sistema constitucional, mas muitas delas foram criadas exatamente pelo conceito apurado de contribuição. Não foi respeitada a distinção entre o sujeito passivo da contribuição e o grupo atingido pela atividade estatal.      

ConJur — As contribuições sociais também fazem parte dessa lista?
Hamilton Dias de Souza
— As contribuições sociais com essa finalidade são impropriamente chamadas de contribuições. São tributos diferenciados, impostos especiais. Sempre propus a alteração do sistema para que elas fossem corretamente rotuladas. Quem são os contribuintes das contribuições para a seguridade? Todos. O princípio da solidariedade faz com que todos sejam contribuintes. E se todos são contribuintes, isso afasta a ideia de grupo. E, sem a ideia de grupo, nós não temos contribuições, nós temos impostos. Então, são impostos com destinação específica. No caso das contribuições não destinadas à seguridade social, essa possibilidade de instituir contribuições sem que o sujeito passivo seja parte do grupo destinatário da finalidade estatal, fez com que o Executivo, sobretudo por meio de medidas provisórias, ficasse à vontade para criar verdadeiros impostos que só têm uma característica diferente dos demais: a destinação específica.

ConJur — Da forma correta, como ficaria?
Hamilton Dias de Souza —
Todos os princípios gerais aplicados aos impostos seriam também aplicados a esses impostos com destinação específica. Um exemplo são as imunidades, previstas no artigo 50 da Constituição. O STF entendeu que as contribuições são diferentes de impostos, sem dizer por quê. Entendeu-se também que as limitações dos impostos não se aplicam às contribuições. Ter a destinação específica é próprio das contribuições, mas isso não significa que só por ter destinação específica se trate de uma contribuição. É por isso que, quanto à seguridade social, essas contribuições são, na verdade, impostos com destinação especial. Isso implodiu a lógica do sistema, porque houve a possibilidade de criar, por exemplo, contribuição sobre royalties. Todos que participam da atividade econômica são obrigados a pagar royalties. Não há nenhuma atividade estatal específica voltada a um determinado grupo, que seriam os sujeitos passivos da contribuição.

ConJur — Isso só acontece aqui?
Hamilton Dias de Souza —
No conselho jurídico da FCESP [Federação do Comércio do Estado de São Paulo] e na comissão de reforma tributária, dos quais faço parte, pedi que fosse feito um estudo econômico. Posso dizer que a carga tributária, antes das contribuições, girava em torno de 26%. Depois das contribuições, saltou para 37%. E não é uma tributação que pulou de 26% para 37% para ser dividida entre União, estados e municípios. O crescimento da tributação da União foi exponencial. O curioso disso é que a Constituição de 88 mostrou certa generosidade ao atribuir maior competência e maiores receitas a estados e municípios, na teoria. Na prática, ocorreu o contrário, por causa das contribuições.

ConJur — As medidas provisórias também têm alguma parcela desta culpa?
Hamilton Dias de Souza —
São dois os fantasmas da tributação: as medidas provisórias e as contribuições. É um conjunto extraordinário. O Executivo federal pode criar o que bem entender mesmo invadindo competências locais.

ConJur — Qual o limite para o aumento da carga?
Hamilton Dias de Souza —
Eu repito aqui uma frase que o Everardo Maciel [secretário da Receita Federal entre 1995 e 2001] tem dito sistematicamente: “Não existe receita tributária excessiva, porque isso é um problema teórico, nosso problema é a despesa”. O nosso grande problema é que a despesa pública cresceu e tem de ser atendida de alguma forma. Se houver despesa, tem de ter receita. Tem de funcionar assim para que haja superávit primário. Alguém que sente na cadeira de secretário da Receita Federal ou de ministro da Fazenda, é obrigado a pensar dessa forma. Ele precisa arrecadar de qualquer jeito para poder cobrir a despesa. Não dá para chegar no fim do mês e não ter como pagar as contas. São necessários instrumentos que gerem dinheiro fácil.

ConJur — Esse quadro é irreversível?
Hamilton Dias de Souza —
Nossa carga tributária varia de 38% e 40% do PIB [Produto Interno Bruto]. A carga tributária dos países equivalentes ao Brasil e que competem conosco, como a China, o México, a Argentina e o Chile, não ultrapassa 20% do PIB. Quando comparamos com o Brasil países com carga tributária similar, como é caso dos países nórdicos, que têm cargas tributária que chegam a 44% do PIB, vemos que a contrapartida dada aos contribuintes é extraordinária. A Europa é um continente socializado. Eles não têm tantos problemas com segurança, a população não precisa pagar escola, os velhos têm amparo, e os problemas de saúde são atendidos pelo Estado a contento. No Brasil, a gastança se deve à facilidade com que os recursos são arrecadados, e esse dinheiro é mal gasto. Aquilo que é arrecadado dificilmente chega à finalidade para o qual é determinado. E os detentores do poder sempre vão forçar até o limite.

ConJur — Quais os pontos em comum entre a reforma tributária ideal e a possível?
Hamilton Dias de Souza —
Reforma tributária não significa alterar os conceitos sedimentados e fazer tudo outra vez. Toda vez que vem uma nova Constituição, há uma enorme judicialização do direito. Vai tudo para o Judiciário. Até que depois de muitos anos os conceitos são sedimentados. Então, em primeiro lugar, só se muda por necessidade. As modificações devem incluir, por exemplo, um novo desenho do perfil das contribuições, das taxas e dos preços públicos. Os preços públicos também têm o produto de sua arrecadação destinado a uma determinada finalidade, mas o dinheiro vai para o caixa único do Tesouro, e lá fica contingenciado. Deve haver um mecanismo que garanta que o dinheiro arrecadado vá para o destino determinado.

ConJur — Como acabar com a guerra fiscal?
Hamilton Dias de Souza —
Fala-se que a guerra fiscal vai acabar se resolvermos o problema do destino. Mas como fiscalizar o destino num país em que cada estado tem um aparelho fiscalizador? E como fica o estado que vende a 15 ou a 20 outros estados, como fazer a fiscalização? Esses estados vão fazer a fiscalização no estado de origem ou o estado de origem vai fazer a fiscalização? Também fala-se muito em federalizar o ICMS, mas como ficaria a autonomia de cada estado? É muito difícil tirar o ICMS politicamente dos estados e afirmar que continuamos a ser uma federação. Uma emenda constitucional nesse sentido pode até levar a uma inconstitucionalidade por ferir uma cláusula pétrea.

ConJur — Há quem defenda a guerra fiscal como forma de se estimular concorrência, como o ministro Delfim Neto. Isso funciona?
Hamilton Dias de Souza —
Não se deve tirar receitas de outros estados sem provocar nenhum desenvolvimento, nenhum pólo industrial. Por outro lado, há outras formas de guerra fiscal benéfica, por meio de incentivos condicionados, que eu chamaria de bilaterais. Pólos industriais extraordinários foram criados no Brasil só por isso. É o caso da indústria automobilística em Minas Gerais, na Bahia, ou em Goiás, locais em que é difícil encontrar mão-de-obra qualificada. Desenvolver mão-de-obra qualificada custa muito caro, já que não há infraestrutura nem no estado, nem no município. Também não há universidades, não há um bom índice de desenvolvimento intelectual e cultural. Com a indústria, porém, vêm engenheiros, advogados, arquitetos e profissionais de toda ordem. As universidades começam a crescer de uma forma muito grande. Há atração de mão-de-obra qualificada para esses lugares e um novo pólo se forma. Isso é de interesse público evidente. Deve-se ter isenções condicionadas, bilaterais, que obriguem as empresas beneficiadas a fazerem investimentos em locais onde há falta de interesse público. Aí o que existe é o bem público.

ConJur — A criação de um imposto único resolveria parte do problema?
Hamilton Dias de Souza —
Há 200 anos atrás pensou-se em criar um imposto único sobre a terra, sobre a grande propriedade. Mas imagine que uma pessoa fique montada sobre um patrimônio improdutivo. Já o cidadão que produz, que faz o dinheiro girar, paga. O imposto único não funciona. Como ficariam impostos sobre a importação e a exportação? Imposto não é simplesmente um mecanismo arrecadatório, mas um indutor de condutas.

ConJur — Como o senhor avalia a participação do Judiciário nesse contexto?
Hamilton Dias de Souza —
A participação do Judiciário na deformação do sistema foi a de tomar uma postura muito conservadora. Nas primeiras análises dos casos concretos que surgiram após a Constituição de 1988, o STF acabou por dar uma interpretação simplista às contribuições ao dizer: “se tem destinação tal, então é contribuição”. A solução mais simples do mundo é criar um determinado tributo e atrelá-lo a uma finalidade. Só que mesmo tendo uma finalidade, o dinheiro das contribuições vai para um caixa único administrado pelo Ministério da Fazenda. Lá fica contingenciado e não vai para onde foi destinado.

ConJur — Como isso acontece?
Hamilton Dias de Souza —
O contigenciamento é um absurdo consagrado no Brasil. Funciona da seguinte forma: determinado órgão tem uma rubrica e um dinheiro virtual, que ele pode usar. Mas esse dinheiro fica no caixa do Tesouro, que o usa sem dar nenhuma importância ao órgão titular. Se o Supremo Tribunal Federal tivesse mostrado rigor teórico em matéria de contribuições, a situação seria outra. Não houve discussão teórica, doutrinária ou correlata sobre o que distingue imposto de contribuição.

ConJur — O Supremo tem sido cauteloso em relação a decisões que afetem o fisco, mas nem tanto quando quem perde é o contribuinte, como no julgamento da incidência da Cofins sobre receitas de profissionais liberais. Qual a sua avaliação, tendo em vista casos importantes que ainda dependem de julgamento?
Hamilton Dias de Souza —
O ministro Celso de Mello apontou, em uma decisão, uma coisa simples e verdadeira, que é o estatuto do contribuinte, o conjunto de direitos e garantias que tem o cidadão que contribui. Isso está no artigo 5º da Constituição, que trata de direitos e garantias individuais, e também no Capítulo IV do Código Tributário. As questões sobre segurança jurídica também são matéria do artigo 5º da Constituição. Não são direitos e garantias do Estado. São direitos e garantias do cidadão contra o Estado. Como quem tem poder tende a abusar dele, a Constituição dividiu o poder. Essa é uma das ideias fundamentais da Constituição. A modulação dos efeitos das decisões do Supremo deveria existir para garantir a segurança do cidadão. Mas, de uma forma conservadora, o que o Supremo tem feito é garantir os interesses do Estado. A modulação de efeitos está mal compreendida. Um país que não dá direitos e garantias ao cidadão contra o Estado não tem Constituição. 

ConJur — No caso da Cofins, havia uma súmula do Superior Tribunal de Justiça dizendo que a cobrança contra profissionais liberais era indevida, dando certa segurança aos contribuintes. Ao dar uma decisão que inverteu o resultado, o Supremo não deveria ter modulado seus efeitos?
Hamilton Dias de Souza —
Sem dúvida. A segurança jurídica é voltada para o cidadão e inúmeros escritórios de advocacia deixaram de pagar a Cofins por todo esse tempo. Muitos sequer fizeram reserva de valor.

ConJur — Na sua opinião, os argumentos do Supremo foram razoáveis?
Hamilton Dias de Souza —
A função do STF e do STJ talvez não seja ainda muito clara. A lei complementar é superior à lei ordinária, sempre. Tanto uma como outra são de competência do STJ. Entretanto, se houver um conflito entre as duas, no sentido de saber se a lei complementar atendeu aos seus requisitos, isso é matéria constitucional e, portanto, do STF. Quem diz como é o processo legislativo é a Constituição. No caso das sociedades de profissionais, havia uma lei complementar que dava isenção. Veio uma lei ordinária e revogou a isenção. O STJ, numa análise não constitucional, disse que uma lei ordinária não poderia revogar uma lei complementar. Porém, no recurso interposto no Supremo, alegou-se que a lei complementar tinha características de lei ordinária. No entanto, foi aprovada na forma de lei complementar, com a maioria dos membros das duas casas do Congresso. Mas só é lei complementar aquela expressamente requerida pela Constituição para cuidar de determinadas matérias. Como para esse assunto não havia a necessidade de lei complementar, esta lei rotulada de complementar era inconstitucional.

ConJur — O Supremo corrigiu um erro, então?
Hamilton Dias de Souza —
Sim, porque o fato de haver uma maioria governista no Congresso poderia dar o poder de engessar a legislatura posterior. Isso sim implodiria o sistema legislativo.

ConJur — O Judiciário é conservador?
Hamilton Dias de Souza —
O que sempre se viu foi a primeira instância e os tribunais regionais mais abertos, enquanto os tribunais superiores eram mais conservadores. Mas hoje há uma enorme dificuldade para se obter liminares, diante de um sem número de questões fiscais que, sem liminar, não é possível discutir, como no caso dos tributos indiretos. Os juízes de primeira instância estão muito conservadores. Eles reagiram ao período em que houve um excesso de liberalismo, com a chamada “indústria de liminares”. Na época do bloqueio dos cruzados novos, milhares de escritórios de advocacia, do dia para a noite, copiavam e ajuizavam petições na Justiça. Eles aprenderam isso e passaram a copiar petições também de matéria tributária. Esses escritórios começaram a assediar contribuintes devedores com métodos extremamente agressivos. Houve uma judicialização do sistema tributário na prática, inclusive com juízes que davam liminares sem pé nem cabeça, criando problemas gravíssimos de concorrência.

ConJur — Houve, então, uma virada?
Hamilton Dias de Souza —
Essa judicialização provocou um aparelhamento da máquina burocrática do Estado, em que a Procuradoria da Fazenda Nacional teve seus quadros, seguramente, aprimorados. A Advocacia-Geral da União também foi mais atuante, sobretudo a partir da gestão de Gilmar Mendes. Ele, fazendo seu papel, foi um advogado-geral feroz contra os contribuintes na defesa do Estado. A partir daí, o Estado passou a tomar medidas arbitrárias. As medidas provisórias eram editadas exatamente para vir no sentido contrário às decisões judiciais. Quando o Judiciário decidia alguma coisa contra o fisco, vinha uma medida provisória que devolvia o direito ao fisco. Era um processo Legislativo às avessas.

ConJur — Isso intimidou o Judiciário?
Hamilton Dias de Souza —
Muitos juízes hoje hesitam em tomar uma atitude imparcial, porque, ao julgar a favor do fisco, não haverá represália nenhuma, nem do Ministério Público, nem da imprensa. Já ao julgar a favor do contribuinte, o juiz fica sob uma certa suspeita, dependendo das circunstâncias, principalmente aqueles que almejam uma nomeação. Os tribunais superiores têm tomado uma atitude muito mais isenta. O Supremo Tribunal Federal de hoje não se compara com o de dez anos atrás.     

ConJur — Quais as diferenças?
Hamilton Dias de Souza —
O ministro Moreira Alves [nomeado em 1975 e aposentado em 2003] era um homem genial, com uma cultura gigantesca, mas era um conservador. A corte foi dominada por ele de forma extraordinária por mais de 20 anos. Já hoje, os ministros que são sistematicamente a favor do fisco são poucos.

ConJur — Quem não concorda com as autuações fiscais está fadado a discutir por anos na Justiça?
Hamilton Dias de Souza —
Há uma grande confusão por parte da administração tributária entre interesse público e interesse da Fazenda Pública. O dever da administração pública é cuidar do interesse público, que consiste no respeito às leis e à Constituição. Esse é o interesse público primário. O interesse da Fazenda é um interesse secundário, que não se confunde com interesse público. Se um funcionário público autua uma empresa com fiscalismo exagerado ou um  delegado fiscal julga com viés exacerbado, fazendo injustiças, eles contrariam o interesse público. Precisamos ter tribunais administrativos mais rápidos e isentos. Hoje, esses órgãos são muito lentos. Há vários casos que levam até dez anos para ter fim. Se um contribuinte, mesmo tendo razão, perde no tribunal administrativo, é obrigado a aguardar a execução e ter os bens penhorados, ou tem de correr à Justiça e depositar a garantia do valor discutido. E lá se vão mais dez anos no Judiciário.

ConJur — O Supremo deve decidir sobre os limites do fisco em quebrar o sigilo bancário dos contribuintes. Qual é a sua perspectiva?
Hamilton Dias de Souza —
A partir da Lei Complementar 105, de 2001, o fisco tem feito o que bem entende em matéria de sigilo fiscal. Mas a Constituição garante, no artigo 5º, inciso 10, o direito à privacidade, ao sigilo das comunicações e ao sigilo de dados. A pergunta que divide opiniões é se a visibilidade das nossas contas bancárias, de gastos com cartão de crédito, a da movimentação financeira em geral nos expõe. Mas com base em um extrato bancário, é possível saber os lugares que uma pessoa frequenta, por exemplo. Isso implica invasão de privacidade. Só o Poder Judiciário pode autorizar o acesso.

ConJur — A concessão de mais um parcelamento de longo prazo pelo governo federal, o chamado “Refis da Crise”, ajuda ou atrapalha?
Hamilton Dias de Souza —
A anistia está sendo dada de maneira indiscriminada. O cidadão que pagou imposto até o final do ano passado, em comparação com outro que maliciosamente não pagou, deve estar profundamente arrependido. Se quem não pagou quitar tudo à vista, tem de cara uma vantagem matemática. As reduções e a possibilidade de pagar em até 15 anos são injustas. Essas anistias têm saído para manter o superávit primário e por necessidade de caixa. Portanto, o interesse episódico do Ministério da Fazenda e do governo se sobrepõem ao interesse público.

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