Ou lado B

Normas constitucionais inconstitucionais"

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19 de julho de 2009, 9h00

É bastante conhecida a obra de Otto Bachof que leva o título deste artigo. Desconhecida, de alguma forma, são as motivações históricas que levaram o professor alemão a escrevê-la. Com efeito, nos anos que sucederam a outorga da Lei Fundamental (Grundgesetz) de Bonn (1949), a cultura jurídica alemã produziu um amplo debate sobre as questões que estavam implicadas neste ato.

Essa Carta, produzida sob os auspícios do governo de transição, não poderia ser chamada de Constituição (Verfassung) porque lhe faltava o elemento de legitimação popular: não foi o povo alemão que colocou as regras que nela se apresentavam. Diante disso, a tese de Bachof pode ser enquadrada diante da seguinte pergunta: haveria a possibilidade de dizer que normas constitucionais possam ser inconstitucionais, por contrariar algum tipo de essência jurídica absoluta, ou mesmo o próprio sistema interno do texto constitucional, de modo a permitir uma alteração significativa de seu conteúdo? Quer dizer: tratava-se da (tentativa de) afirmação de um direito para além da própria lei fundamental que permitisse algo como uma “Constituição verdadeiramente alemã”.

Por certo — e todos sabemos disso —, a tese de Bachof não vingou. Ao contrário, o Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht) acabou se tornando o grande responsável pela legitimação da Lei Fundamental num período que ficou conhecido como jurisprudência dos valores (com todas as críticas que a ela devem ser feitas). Há autores que consideram que foi nessa época em que se deu a “perda das certezas jurídicas”, referindo-se ao fato da criação de instrumentos metodológicos que propiciaram a “abertura” da estrita legalidade que sempre imperou em território germânico. Nessa medida, foram criados e redefinidos institutos como as “cláusulas gerais”, os “conceitos jurídicos indeterminados”, “normas em branco” e, evidentemente, os chamados “princípios constitucionais”.

São nestes dois âmbitos de análise que tomamos emprestado o título da obra de Bachof para refletir sobre uma questão que tem tomado força em nossa comunidade jurídica. Trata-se da (tentativa de) regulamentação de uniões homoafetivas via jurisprudência do STF, como se fosse possível fazer um “terceiro turno” no processo constituinte. Com efeito, na teia de argumentos que se apresentam para a efetuação de uma tal medida, estão cruzados os dois modelos teóricos retratados acima. Eles se articulam de dois modos:

a) explicitamente, porque há uma tentativa de instauração de uma verdadeira jurisprudência da valoração, na medida em que se pretende criar uma “abertura de espaços jurídicos” para a criação de algo que depende da regulamentação do poder legislativo;

b) implicitamente, porque a argumentação da Procuradoria Geral da República leva à repristinação da idéia superada de que poderia haver normas constitucionais inconstitucionais, na medida em que o próprio parágrafo 3º do artigo 226 da Constituição Federal seria inconstitucional (sic!) ao declarar que a proteção do Estado se destina a união entre o homem e a mulher, contrariando assim princípios sensíveis da Constituição como é o caso da segurança jurídica e da dignidade da pessoa humana.

O que preocupa neste tipo de pedido de tutela judicial é que ele traz consigo — de modo subterrâneo — uma ideia que tem ganhado terreno e aceitação por parte da dogmática jurídica nacional: a necessidade de se recorrer a “bons ativismos judiciais” para resolver questões que a sociedade em constante evolução acarreta e que os meios políticos de decisão (mormente o legislativo) não conseguem acompanhar. Ora, as experiências históricas que nos foram legadas e que permitem desenvolver um conceito de ativismo judicial não apontam para o “bem” ou para o “mal” das atividades desenvolvidas sob este signo.

Certamente, o que temos de modo substancial sobre o tema são as experiências oriundas dos Estados Unidos e da Alemanha. No contexto norteamericano, como nos lembra Christopher Wolfe, em seu The rise of modern Judicial Review, o ativismo judicial pôde nomear desde as posturas conservadoras que perpetuaram a segregação racial e impediram as transformações econômicas que o new deal de Rooselvet tentava operar na primeira metade do século 20, até as posturas tidas como progressistas ou liberais da Corte de Warren na década de 1960. Na Alemanha, como já afirmamos, a atividade do Tribunal Constitucional Federal, também chegou a ser classificada por alguns autores como ativismo judicial, originando a corrente chamada jurisprudência dos valores (de se ressaltar que é exatamente a jurisprudência da valoração que será duramente criticada por Habermas, que a enquadrará como uma postura do poder judiciário que coloniza o espaço público e impede a tomada de decisões pela via democrática).


Em todos estes casos, o mais correto é dizer que não há como determinar a “bondade” ou a “maldade” de um determinado ativismo judicial. O mais correto é dizer que questões como essa que estamos analisando não devem ser deixadas para serem resolvidas pela “vontade de poder” (Wille zur Macht) do Poder Judiciário. Delegar tais questões ao Judiciário é correr um sério risco: o de fragilizar a produção democrática do direito, cerne da democracia. Ou vamos admitir que o direito — produzido democraticamente — possa vir a ser corrigido por argumentações teleológicas-fáticas-e/ou-morais?

Vejamos, resumidamente, como a questão está colocada nos termos da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 178. Tal medida foi interposta no dia 02 de julho de 2009 pela Procuradoria Geral da República, mediante representação do Grupo de Trabalho de Direitos Sexuais e Reprodutivos da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão, objetivando o reconhecimento de união estável entre pessoas do mesmo sexo e a garantia dos mesmos direitos dos companheiros heterossexuais. De plano, salta aos olhos a seguinte questão: a efetivação de uma tal medida importa(ria) transformar o Tribunal em um órgão com poderes permanentes de alteração da Constituição, estando a afirmar uma espécie caduca de mutação constitucional (Verfassungswandlung) que funcionaria, na verdade, como um verdadeiro processo de alteração formal da Constituição (Verfassungsänderung), reservado ao espaço do Poder Constituinte derivado pela via do processo de emenda constitucional.

Portanto, voltamos ao problema fundamental da questão que passa ao largo das discussões jurídicas empreendidas nessa seara. Ou seja, que tipo de democracia queremos? Não se trata de ser contra ou a favor da proteção dos direitos pessoais e patrimoniais dos homossexuais. Aliás, se for para enveredar por esse tipo de discussão, advertimos desde já que somos absolutamente a favor da regulamentação de tais direitos, desde que efetuados pela via correta, que é a do processo legislativo previsto pela Constituição Federal.

O risco que exsurge desse tipo de ação é que uma intervenção desta monta do Poder Judiciário no seio da sociedade produz graves efeitos colaterais. Quer dizer: há problemas que simplesmente não podem ser resolvidos pela via de uma ideia errônea de ativismo judicial. O Judiciário não pode substituir o legislador.

Explicamos. Em um regime democrático, como bem afirma Ronald Dworkin, em seu A Virtude Soberana, é preciso fazer uma distinção entre preferências pessoais e questões de foro de princípio. O judiciário pode intervir, e deve, sempre que estiver em jogo uma questão de princípio. Mas não cabe a este poder exarar decisões que manifestem preferências pessoais de seus membros ou de uma parcela da sociedade. Isso por um motivo bastante simples: a democracia é algo muito importante para ficar à mercê do gosto pessoal dos representantes do Poder Judiciário. Se assim fosse, os próprios interesses dos homossexuais estariam em risco, posto que a regulamentação das relações entre pessoas do mesmo sexo dependeria da “opinião” e da “vontade” daquele que julga a causa.

Imaginemos: se a questão é analisada por um ministro favorável ao movimentos das minorias e da regulamentação de tais relações, sua decisão seria no sentido da procedência; por outro lado, um ministro conservador e alheio a essa “mutação dos costumes” julgaria improcedente o pedido. E é isso que, num caso como esse, não pode acontecer. A decisão a ser tomada em tais casos precisa ser levada à cabo no espaço político, e não no jurisdicional, justamente para evitar que sua resolução fique à mercê das opiniões pessoais dos ministros da Corte Constitucional. Ou seja, a decisão deve ser construída no contexto de uma sociedade dialogal, em que o Poder Judiciário tem sua função que não consiste em legislar. Em suma, uma questão como essa, justamente pela importância da qual está revestida, não pode ser resolvida por determinação de um Tribunal. É necessário que haja uma discussão mais ampla, que envolva todos os seguimentos da sociedade, cujo locus adequado encontra-se demarcado nos meios democráticos de decisão.


De todo modo, há uma perigosa tendência no interior da comunidade jurídica de recorrer aos tribunais para sanar eventuais omissões do legislador, pugnando por um verdadeiro exercício de uma tardia jurisprudência dos valores pelo Supremo Tribunal Federal (ou pelos demais tribunais da República). Basta notar que a atual ADPF foi distribuída por dependência a ADPF 132, que já havia sido ajuizada pelo Governador do Estado do Rio de Janeiro. As razões de ambas estão fundadas em uma alegada violação de princípios constitucionais (lesão a direito) e nas frequentes denegações de direitos aos homossexuais. Tudo isso porque a união entre pessoas do mesmo sexo é uma “realidade fática inegável”, fruto do processo de “liberalização dos costumes”, já reconhecida em outros países, sendo que a ausência de tratamento “com mesmo respeito e consideração” em relação às uniões estáveis entre pessoas de sexos diferentes representa um “menosprezo à identidade e à dignidade” dos homossexuais. Trata-se da assunção de um sociologismo com roupagens jurídicas, mais do que argumentos que tratem de valores éticos e sua regulação jurídica. A ação menciona, ainda, a violação aos seguintes princípios constitucionais: 1) da dignidade da pessoa humana, 2) da igualdade, 3) da vedação de discriminações odiosas, 4) da liberdade e 5) da proteção da segurança jurídica.

Não deixa de ser instigante o fato de se mencionar o princípio da segurança jurídica como argumento autorizador da medida ajuizada pela Procuradoria Geral da República, uma vez que a procedência da ação poderia gerar uma instabilidade institucional pela fissura provocada no texto da Constituição através de um protagonismo da Corte Constitucional. Em outras palavras, a (in)segurança jurídica mostra-se ofendida, não por deixar sem regulamentação legal a convivência entre pessoas do mesmo sexo, mas sim no momento em que a Corte altera, a pretexto de um “esquecimento do constituinte” (sic) ou de uma “descoberta valorativa” (sic), ou, ainda, do saneamento (incorreto) de uma “inconstitucionalidade da própria Constituição” (sic), o texto da Constituição como se Poder constituinte fosse, gerando um tipo de mal-estar institucional gravíssimo.

Importante salientar, ainda, que a própria utilização da ADPF como mecanismo apto a sanar a “omissão do legislador” é equivocado. Isso porque, em casos de omissão, o manejo adequado dos mecanismos de jurisdição constitucional aponta para a propositura de um Mandado de Injunção (artigo 5º, LXXI da Constituição Federal). Ora, o Mandado de Injunção é ação de efeitos concretos que manteria o equilíbrio institucional entre os poderes da república, enquanto que a ADPF, pela sistemática dos efeitos da decisão, faz com que o judiciário haja como se legislador fosse, criando efetivamente, uma regra geral e abstrata. Sem contar que, neste caso, a atuação do judiciário não atingiria simplesmente a atuação do legislador ordinário, mas provocaria um rompimento com a própria ordem constitucional, alterando formalmente o texto do parágrafo 3º do artigo 226. De todo modo, mesmo o mandamus injuntivo não teria espaço constitucional, pelo simples fato de que o texto constitucional aponta para o contrário da pretensão. Ou seja, não é possível superar o limite do texto: levemos o texto (constitucional) a sério.

E note-se que a questão do reconhecimento da união estável entre pessoas do mesmo sexo já vinha sendo discutida judicialmente, existindo decisões de primeira e segunda instâncias sobre o assunto. Também nestes casos houve um nítido excesso do poder judiciário no sentido de romper com o texto da Constituição. Isso é um sintoma daquilo que aqui estamos chamando de “repristinação da jurisprudência dos valores”. Ora, a despeito do texto da Constituição propiciar um tecido normativo “fechado” demais, setores do direito pensam que é preciso “abrir” esse sentido da normatividade constitucional com um uso aleatório e descompromissado dos princípios constitucionais. Princípios estes invocados a partir de uma espécie de “anemia significativa”, na qual a grande revolução operada pelo neoconstitucionalismo — os princípios representam a inserção do mundo prático no direito — acaba por ser obnubilada por algo que se pode denominar panprincipiologismo. (cf. Lenio Streck, Verdade e Consenso, 3ª. Edição- Lumen Juris, 2009).


O seguin­te acór­dão, ori­gi­ná­rio do TJ-RS — com fun­da­men­ta­ção simi­lar a ­outras deci­sões oriun­das do Tribunal Regional Federal da 4ª Região —, bem demons­tra essa espé­cie de retor­no (tar­dio) a uma juris­pru­dên­cia de valo­res. Com efei­to, enquan­to a Constituição do Brasil esta­be­le­ce que “para efei­to da pro­te­ção do Estado, é reco­nhe­ci­da a união está­vel entre o homem e a ­mulher como enti­da­de fami­liar, deven­do a lei faci­li­tar sua con­ver­são em casa­men­to” (artigo 226, parágrafo 3º), o Tribunal gaú­cho “col­ma­tou” uma “omis­são do cons­ti­tuin­te” (sic), ver­bis:

“União está­vel homoa­fe­ti­va. Direito suces­só­rio. Analogia. Incontrovertida a con­vi­vên­cia dura­dou­ra entre par­cei­ros do mesmo sexo, impo­si­ti­vo que seja reco­nhe­ci­da a exis­tên­cia de uma união está­vel, asse­gu­ran­do ao com­pa­nhei­ro sobre­vi­ven­te a tota­li­da­de do acer­vo here­di­tá­rio, afas­ta­da a decla­ra­ção de vacân­cia da heran­ça. A omis­são do cons­ti­tuin­te e do legis­la­dor em reco­nhe­cer efei­tos jurí­di­cos às ­uniões homoa­fe­ti­vas impõe que a Justiça col­ma­te a lacu­na legal fazen­do o uso da ana­lo­gia. O elo afe­ti­vo que iden­ti­fi­ca as enti­da­des fami­lia­res impõe seja feita ana­lo­gia com a união está­vel, que se encon­tra devi­da­men­te regu­la­men­ta­da” (Revista de Jurisprudência do TJ-RS, n. 230, pp. 110 e segs.).

Antes de tudo, apenas registremos: é a Constituição (que não pode ser inconstitucional) que diz “união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento”…! O que a lei deve facilitar é a conversão em casamento dessa relação entre homem e mulher…! É por isso que, em um Estado Democrático de Direito, mesmo que sejamos todos a favor de uma causa, é necessário esperar pelo legislador…! Aliás, como bem diz Dworkin, não deve importar ao direito o que os juízes pensam sobre o direito, sobre a política, futebol, etc.

Aplicar o direito quer dizer “fazer interpretação com base em argumentos de princípio”, e não “por argumentos pessoais”, etc. Portanto, quando se pergunta ao judiciário sobre alguma coisa, este não pode responder com argumentos pessoais, políticos, morais, etc. Em uma democracia não se quer saber o que o juiz pensa sobre determinada fenômeno; o que ser quer saber é como se pode alcançar uma resposta a partir do direito. E, definitivamente, o direito não é, e não pode ser, aquilo que o judiciário “diz que é”!

Reafirmando o que já foi mencionado acima: não cabe ao Poder Judiciário “col­ma­tar lacu­nas” (sic) do cons­ti­tuin­te (nem ori­gi­ná­rio e nem deri­va­do). Ao per­mi­tir deci­sões desse jaez, estar-se-á incen­ti­van­do a que o Judiciário “crie” uma Constituição “para­le­la” (uma verdadeira “Constituição do B”), esta­be­le­cen­do, a par­tir da sub­je­ti­vi­dade dos juízes, aqui­lo que “inde­vi­da­men­te” – a cri­té­rio do intér­pre­te – não cons­tou no pacto cons­ti­tuin­te. O constituinte não resolveu? “Chame-se o Judiciário….” Ou “criemos um princípio”, que “valerá” mais do que a Constituição.

Ora, é necessário ter coragem para dizer algumas coisas, mesmo que possam parecer “antipáticas” aos olhos da comunidade jurídica. A reso­lu­ção das que­re­las rela­ti­vas às ­uniões homoa­fe­ti­vas deve ser feita — enquan­to não for emen­da­da a Constituição ou ela­bo­ra­da lei ordi­ná­ria (a exem­plo do que ocor­reu na Espanha) — no âmbi­to do direi­to das obri­ga­ções, e não a par­tir do direi­to suces­só­rio ou do direi­to de famí­lia. Há limi­tes her­me­nêu­ti­cos para que o Judiciário se trans­for­me em legis­la­dor.


Veja-se que um dos argu­men­tos uti­li­za­dos — ao menos no plano retó­ri­co para jus­ti­fi­car as refe­ri­das deci­sões — é o de que o Judi­ciá­rio deve asse­gu­rar a união está­vel (por­tan­to, equi­pa­ra­ção ao casa­men­to) de ­casais homos­se­xuais por­que o Legislativo não pre­ten­de, a curto prazo, por não dis­por de “con­di­ções polí­ti­cas” para tal, ela­bo­rar legis­la­ção a res­pei­to. Mas, convenhamos, é exa­ta­men­te esse argu­men­to que se con­tra­põe à pró­pria tese: em uma demo­cra­cia repre­sen­ta­ti­va, cabe ao Legislativo ela­bo­rar as leis (ou emen­das cons­ti­tu­cio­nais). O fato de o Judiciário – via jus­ti­ça cons­ti­tu­cio­nal – efe­tuar “cor­re­ções” à legis­la­ção (fil­tra­gem her­me­nêu­ti­co-cons­ti­tu­cio­nal e con­tro­le stric­to sensu de cons­ti­tu­cio­na­li­da­de) não sig­ni­fi­ca que possa, nos casos em que a pró­pria Constituição apon­ta para outra dire­ção, cons­truir deci­sões “legi­fe­ran­tes”.

Dito de outro modo: a Constituição reco­nhe­ce união está­vel entre homem e mulher, mas isso não sig­ni­fi­ca que, por não proi­bir que essa união está­vel possa ser feita entre pes­soas do mesmo sexo, a pró­pria Constituição possa ser “col­ma­ta­da”, com um argu­men­to kel­se­nia­no do tipo “o que não é proi­bi­do é per­mi­ti­do” (sic!). Fosse assim e inú­me­ras não proi­bi­ções pode­riam ser trans­for­ma­das em per­mis­sões: p.ex., a Constituição de 1988 tam­bém não proí­be ação dire­ta de incons­ti­tu­cio­na­li­da­de de leis muni­ci­pais face à Constituição Federal (o artigo 102, I, “a”, refe­re ape­nas a pos­si­bi­li­da­de de argui­ção que trate de leis fede­rais e esta­duais). E nem por isso torna-se pos­sí­vel falar em ADIn con­tra lei muni­ci­pal em sede de STF. Veja-se: em nome do “princípio democrático” ou da “república”, os muní­ci­pes espalhados pelos quatro cantos do Brasil pode­riam ale­gar que “a Constituição ori­gi­ná­ria vio­lou o prin­cí­pio da iso­no­mia e que a falta de um meca­nis­mo desse qui­la­te viola direi­tos fun­da­men­tais”, etc.

Ora, nada disso pode ser “col­ma­ta­do” por um ato volun­ta­ris­ta do Judi­ciá­rio (veja-se que a ADPF aca­bou resol­ven­do o pro­ble­ma – por lei –, ao admi­tir-se o sin­di­ca­men­to de leis muni­ci­pais em face da Constituição sem­pre que não hou­ver outro modo de solu­cio­nar a que­re­la; mas, insis­ta-se: foi por via legis­la­ti­va a alte­ra­ção do esta­do da arte). E o que dizer da “discriminação” entre homem e mulher para os casos de aposentadoria? Se homens e mulheres devem ser iguais, por que as mulheres se aposentam mais cedo? Não seria o caso de ingressar com uma ADPF para substituir a expressão homens e mulheres por “indivíduos”? E assim por diante…!

Ainda para exem­pli­fi­car: a legis­la­ção civil trata ape­nas da alte­ra­ção do pre­no­me. Isso não sig­ni­fi­ca, entre­tan­to, a par­tir da máxi­ma “o que não é proi­bi­do é per­mi­ti­do”, que o Judi­ciá­rio possa deter­mi­nar a alte­ra­ção do ape­li­do de famí­lia, na hipó­te­se de ­alguém se sen­tir humi­lha­do pelo sobre­no­me que car­re­ga, ale­gan­do, v.g., o prin­cí­pio da dig­ni­da­de da pes­soa huma­na. E, registre-se: o princípio da dignidade da pessoa humana não pode ser panacéia para todos os males, mormente de “omissões” (sic) do constituinte: o direito possui um mínimo de objetividade, que é o texto. E em se tratando do texto da Constituição, assume maior relevância a máxima de que “devemos levar o texto a sério”. Sem texto não há normas; não há normas sem textos.


Em sín­te­se: não há um lado “b” da Constituição a ser “des­co­ber­to” axio­lo­gi­ca­men­te, como se “por debaixo do texto da Constituição existissem valores a serem desvelados pela cognição do intérprete”. A res­pos­ta adequada para o caso da união está­vel (homoa­fe­ti­va) depen­de de alte­ra­ção legal-cons­ti­tu­cio­nal. Veja-se, v.g., o caso espa­nhol, em que o pro­ble­ma foi resol­vi­do median­te a edi­ção de lei. Na terra de Cervantes, o Poder Judiciário não se sentiu autorizado a “colmatar” a “inconstitucionalidade da Constituição”.

E não se diga, como foi acontecer quando se defende a Constituição e a preservação dos mecanismos democráticos de sua alteração contra as preferências individuais — que isso seria uma espécie de “interpretação literal” da Constituição, ou “interpretação restritiva” ou, ainda, uma espécie de interpretativismo. Nestes casos, parece claro que há uma articulação equivocada do conceito de interpretativismo. Como é cediço, interpretativistas são as posturas teóricas que defendem uma interpretação originalista da Constituição. Na medida em que tais teorias surgem nos Estados Unidos, trata-se de um originalismo com relação à Constituição norte-americana.

Sendo mais claro, há uma disputa histórica entre os teóricos norte-americanos — pelo menos desde o clássico artigo de Thomas Grey, que, pela primeira vez, estabeleceu e classificou desse modo a diferença metodológica em relação à interpretação da Constituição (cf. Thomas C. Grey. “Do We Have un Unwritten Constitution?” In: Stanford Law Review, n. 27, 1975, pp. 703 e segs.) — sobre como deve ser encarada, metodicamente, a interpretação da Constituição. Segundo Grey, duas são as posições que se contrapõem: o interpretativismo e o não-interpretativismo. O interpretativismo relaciona-se à postura origininalista segundo a qual os limites de liberdade de conformação do legislador devem se dar nos limites do texto escrito; ou seja, basta a grafia constitucional para que os limites ao processo político sejam determinados e instaurados. Já as posturas não-interpretativistas postulam uma espécie de política constitucional, aproximando-se das ideias defendidas pelo realismo jurídico.

Ora, por certo que, ao defendermos a possibilidade e a necessidade de respostas corretas em direito (cf. Lenio Streck, Verdade e Consenso, op.cit, “respostas adequadas à Constituição”), não é possível nos rotular como interpretativistas (originalistas). Isso por um motivo simples: quando afirmamos tal tese — de que a resposta adequada à Constituição, no caso vertente, passa pelos meios democráticos de decisão (o que, por exemplo, Habermas diria disso?) —, temos por pressuposto que a dicotomia interpretacionismo/não-interpretacionismo está, de há muito, superada e os problemas daí decorrentes já tenham sido sanados. Isto porque, quando em Law’s Empire Ronald Dworkin enfrenta o aguilhão semântico e o problema do pragmatismo, há uma inevitável superação das teses clássicas sobre a interpretação da Constituição Americana.

Ou seja, o problema da resposta adequada à Constituição e não a um conjunto de valores (sic) que ninguém sabe bem o que é, não se resume à identificação da sentença judicial com o texto da lei ou da Constituição. Se pensássemos assim, estaríamos ainda presos aos dilemas das posturas semânticas. Quando se fala nesse assunto há uma série de acontecimentos que atravessam o direito que ultrapassam o mero problema da “literalidade do texto”.

Por isso, é preciso evitar a seguinte confusão: quando asseveramos que os limites semânticos do texto devem ser respeitados (minimamente), como no caso do problema envolvendo a união de pessoas do mesmo sexo, não se pode concluir de nossa abordagem um inexplicável viés de contenção judicial em benefício de uma estrita exegese, de acordo com a literalidade da norma. Longe disso! Não é possível imaginar que estamos aqui a pregar uma modalidade de laissez-faire hermenêutico. É preciso insistir: dizer que o sentido não está à disposição do intérprete é diferente de dizer que há uma “exegese de estrita literalidade”.


Como nota final – e que isso fique bem claro – voltamos a lembrar os leitores que não somos contrários à regulamentação da união homoafetiva. Desde já, colocamo-nos à disposição para a discussão no plano da elaboração legislativa (por lei ou por emenda constitucional). Entendemos, tal qual entende a Procuradoria Geral da República, que a regulamentação é necessária para proteção dos direitos pessoais e patrimoniais dos homossexuais que vivem como consortes. Porém, pelos motivos amplamente expostos acima, estamos convictos que não é através do exercício de um ativismo judicial que essa regulamentação deve ser levada a efeito. Em nome do direito não podemos fragilizar o direito. Não se pode confundir a jurisdição constitucional, absolutamente necessária para concretizar direitos previstos na Constituição, com um apelo indevido à jurisdição para que atue nas hipóteses que não estão previstas na Constituição (aliás, no caso, a Constituição aponta para outro sentido).

Numa palavra: temos uma Constituição que é o Alfa e o Ômega da ordem jurídica democrática. Uma Constituição dirigente e compromissória. Viver em uma democracia tem seus custos. Neste caso um custo básico: os pré-compromissos constitucionais só podem ser liberados por aqueles que a própria Constituição determina (o poder constituinte derivado). Se tudo o que não está previsto na Constituição pode ser “realizado” pelo Poder Judiciário, não precisaríamos sequer ter feito a Constituição: o Judiciário faria melhor (ou o Ministério Público!) A propósito: se a tese da referida ADPF vingar, há uma série de reivindicações que devem desde já ser encaminhadas ao Poder Judiciário (e que possuem amplo apoio popular…!). Precisamos enumerá-las?

Numa palavra final: propugnando sempre pela preservação do grau de autonomia atingido pelo direito e na democracia, pensamos que melhor mesmo é confiar na Constituição e na forma que ela mesma impõe para a sua alteração e à formulação de leis. Afinal, duzentos anos de constitucionalismo deveria nos ensinar o preço da regra contramajoritária. Ulisses no comando do seu barco sabia do perigo do canto das sereias…! Ah, os fatos sociais…; o velho positivismo fático. Ah, as maiorias… Mas, como saber a sua vontade, se não pela via do parlamento? Ou isso, ou entreguemos tudo às demandas judiciais! E não nos queixemos depois do “excesso de judicialização” ou de “ativismos”…!

Referências

[1] Doutor em Direito pela UFSC; Pós-Doutor em Direito Constitucional pela Universidade de Lisboa; Professor Universitário.
[2] Livre Docente pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-RJ); Professor Universitário.
[3] Mestre em Direito Público pela Unisinos; Doutorando em Direito Público pela Unisinos; Bolsista do CNPq; Professor Universitário.

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