Novo risco

Novo CPP é sentença de morte para lei Maria da Penha

Autor

  • Renato Vasconcelos Magalhães

    é vice Presidente do Fórum Nacional de Juízes de Juizados da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher (FONAVID) juiz titular do Juizado da Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher de Mossoró (RN) e doutor em Direito.

16 de julho de 2009, 9h52

Vivemos um momento ímpar de discussão sobre o Projeto de Lei do Senado (PLS 156/09) de um novo Código de Processo Penal. O atual já conta com quase 70 anos e foi elaborado em pleno Estado Novo, fruto de uma concepção autoritária que não se compatibiliza com o sistema de garantias da nova Constituição.

O desejo de reforma não é recente e, já em 2001, uma Comissão de Reforma apresentou ao Ministério da Justiça oito anteprojetos inspirados no Código Modelo de Processo Penal Ibero-Americano. Transformados em Projetos de Lei, foram sendo aprovados ao longo destes anos; três deles, inclusive, no ano passado, alterando significativamente o atual Código. Não obstante as reformas pontuais, considerável parcela de juristas nacionais via a necessidade de um Código de Processo Penal inteiramente novo, que estivesse em sintonia com o regime constitucional inaugurado em 1988.

Reformas parciais, principalmente aquelas realizadas sob regimes políticos-constitucionais tão diferentes, pecam por tentarem adequar princípios inconciliáveis. Aury Lopes, por ocasião das últimas alterações, criticava: “a insuficiência de uma reforma pontual, essencialmente minimalista, ilógica e geradora de inúmeras lacunas e dicotomias internas. Ademais, possui um gravíssimo vício de origem: a ausência de um princípio unificador que impede consistência e coerência sistêmica”[1].

Anseia-se, portanto, por um novo CPP, com matiz epistemológica distinta do atual, que tenha a Constituição Federal como paradigma normativo e as Convenções de Direitos Humanos como vetor principiológico, que, ao mesmo tempo, contemple conquistas materializadas em legislações especiais, fruto de décadas de lutas, de avanços e retrocessos, risos e lágrimas. Parece, no entanto, que estes êxitos sociais não foram respeitados pelo PLS 156/09, pelo menos não no que diz respeito à Lei Maria da Penha (Lei 11.340/06).

Em março de 2008 foi aprovado pelo Plenário do Senado requerimento feito pelo Senador Renato Casagrande propondo uma comissão de juristas para elaboração de um anteprojeto de CPP. A comissão, formada por 7 integrantes (Fabiano Silveira, Antonio Magalhães Gomes, Filho, Eugênio Pacelli de Oliveira, Félix Valois Coelho Júnior, Hamilton Carvalhido, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Sandro Torres Avelar, Antônio Corrêa e Tito Souza do Amaral) teve 180 dias para entregar o anteprojeto, prazo, obviamente, bastante exíguo, que levou, no nosso entender, a alguns equívocos.

Transformado em Projeto de Lei (PLS 156/09), atualmente tramita no Senado, na Comissão Temporária, destinada a examinar o projeto que realiza audiências públicas em vários Estados da Federação. Não temos a menor dúvida de que o projeto é merecedor de inúmeros aplausos, por trazer significativas conquistas no campo processual penal, assegurando garantias individuais que não podem ser confundidas com favores do Estado, como já deixa claro a exposição de motivos, assumindo, por conseguinte, uma declarada feição garantista sem prejuízos de celeridade dos procedimentos e eficácia do Direito Penal.

E é exatamente por assumir este viés democrático, de respeito a um sistema principiológico de garantias, que nos surpreende o tratamento dispensado às mulheres, vítimas de violência de gênero, que conquistaram, repita-se, conquistaram, o direito de não serem discriminadas, humilhadas, agredidas, violentadas. A Lei Maria da Penha (LMP) é o principal marco legislativo na defesa de uma vida sem violência para a mulher. É um basta à permissividade cultural, à apatia governamental, à leniência judicial e, agora, com o projeto do novo CPP, encontra-se em grave risco.

A nossa principal (mas não única) preocupação diz respeito a incorporação, trazida pelo PLS 156/06 das disposições normativas atinentes aos Juizados Especiais Criminais JEC) ao novo CPP. O artigo 677 desse projeto altera a redação do artigo 1º da Lei 9.099/95 (Lei dos Juizados Especiais), que passará a tratar somente de matéria cível, revogando, por tanto, todos dispositivos referentes aos Juizados Especiais Criminais que passarão a integrar o novo Código.


Incorporados ao CPP, no Capítulo IV (Do Procedimento Sumaríssimo), do Titulo II, do Livro II, os dispositivos dos JEC terão pequenas modificações para adequação à nova sistemática processual, principalmente nas formas de conciliação e recomposição civil dos danos, mas obedecerão, em seu conjunto, aos princípios esculpidos pela Lei 9.099/95.

O problema está em que, com a transposição para o interior da nova legislação codificada dos Juizados Especiais Criminais, esvaziar-se-á o artigo 41 da LMP, já que não houve qualquer ressalva no projeto do novo Código, como se deu com a Justiça Militar (artigo 300). Assim, a vedação pela LMP da aplicação da Lei 9.099/95 aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher restará, com as alterações propostas, completamente sem sentido. Um nonsense jurídico. Com o projeto, os procedimentos e institutos que a LMP queria vedar serão transferidos da Lei 9.099/95 para o CPP, esvaziando o conteúdo do artigo 41 citado. A prevalecer o projeto como está, os crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher passarão, novamente, a serem tratados como de menor potencial ofensivo.

Mais de 80% das infrações que tramitam nos JVDFM são apenadas com sanções máximas inferiores a dois anos, porém, nem por isso, podemos catalogá-las como de menor potencial ofensivo. O erro básico da Lei 9.095/95 foi, à falta de um melhor critério, optar pela objetividade da quantificação das penas como corte para categorização de delitos como de menor potencial ofensivo. Sobre o tema, Leda Maria Hermann afirma que “a mensuração da lesividade potencial de um delito pelo quantum da pena fixada resultou num tratamento penal indiferenciado, que aqui pretende qualificar-se de linear, de conflitos de uma diversidade significativa, resultando daí a trivialização no tratamento de situações conflituosas cuja repercussão social é intensa, situações que muitas vezes exigem uma abordagem específica – e especial”[2].

Pautar-se simplesmente pelo quantum da pena como critério diferenciador para a gravidade da infração constitui um discurso falacioso. Todos sabemos que a parametrização do cálculo da pena em face do desvio de conduta não se submete exclusivamente aos critérios de proporcionalidade preconizados pela Constituição. Ao contrario, são seduzidos por argumentos ideológicos de proteção a bens jurídicos tutelados pela classe dominante.

Não é, portanto, sem razão, que permaneceram fora do micro-sistema dos juizados especiais, os crimes de furto simples, furto privilegiado e estelionato, ou seja, crimes patrimoniais sem violência ou grave ameaça à pessoa, enquanto alguns crimes que atentam contra a integridade física foram indistintamente incluídos. A violência de gênero contra a mulher, na modalidade de violência doméstica ou familiar, seja como lesão corporal leve ou ameaça, foi, incluída nos JEC, até a edição da LMP, sem qualquer preocupação com a natureza do conflito ou com os reflexos para a ofendida, numa verdadeira pasteurização criminal.

A estrutura viabilizada para os JEC nunca conseguiu atender à demanda da violência de gênero. Pensados a partir da necessidade de adoção de medidas despenalizadoras para o sistema penal, fosse através da composição civil dos danos, transação ou suspensão condicional do processo, como forma de realização dos princípios de proporcionalidade e intervenção mínima, não se preocuparam com a repercussão destas medidas no âmbito da violência de gênero. Conciliar ou transacionar no campo particular da violência de gênero não é tarefa tão simples como se imagina e como se costuma fazer no campo do direito privado. Envolve uma série de complexos e variáveis matizes sociais, psicológicos, históricos, antropológicos que atuam na base do conflito de gênero e que requerem, na maioria dos casos, um conhecimento especializado para a solução.

Os juízes, carentes de uma formação multidisciplinar, premidos pela exigência de um resultado conciliatório, se vêem obrigados a encontrar uma solução apaziguadora dos problemas gerados no seio de uma relação de gênero, na maioria das vezes, vincada por profundos problemas pessoais, psicológicos, inacessíveis àqueles sem uma formação humana diferenciada.


A alternativa do apoio de uma equipe multidisciplinar não encontra previsão na Lei dos JEC. Os juízes não estão preparados para lidar com essa espécie de demanda, identificando as causas da violência e propondo soluções. Se o juiz não aplica pena, se lhe é atribuída a tarefa de conciliar, então, deve procurar entender o conflito, conhecendo causas e conseqüências. Cláudio do Prado Amaral já nos alertava para a difícil tarefa, para os profissionais especializados e, principalmente, para os magistrados, da identificação dos fatores que levavam à conduta desviante de gênero e, daí, o necessário diagnóstico a uma correta intervenção estatal, ainda que, mediadora de uma conciliação ou transação: “Dessa realidade complexa decorre uma especial dificuldade para a identificação dos fatores – não raro paradoxais – que incidem na identificação do ato externado como vil, fazendo do fato em si uma ocorrência de difícil diagnóstico. Trata-se de uma tarefa já bastante difícil para o profissional de áreas não-jurídicas e dedicadas ao estudo da violência de gênero. Muito mais difícil o é para o profissional de formação exclusivamente jurídica. A dificuldade aumenta ainda mais (e naturalmente), quando o sistema é colocado frente à missão de responder a tais fatos multifacetados com uma ação política.”[3]

Na outra ponta, Letícia Franco expõe a gravidade dos problemas que fizeram parte da justiça consensualizada dos Juizados Especiais para as mulheres vítimas de violência de gênero. Afirma a autora que: “O que se observa, diante do estudo da justiça penal consensuada em face da violência contra a mulher, é que o procedimento criminal destinado aos crimes de menor potencial ofensivo mostra-se socialmente ineficaz, na medida em que, privilegiando uma contraditória celeridade do procedimento, não discute suficientemente o conflito, não oferecendo, às partes deste, solução, ou se reduzindo a acordos impossíveis de execução forçada; ou ainda realizando-se mediante propostas de pena antecipada prioritariamente pecuniária, (inviabilizando a ressocialização do autor do fato), ou não previstas em lei (como o pagamento de cestas básicas, que é a criação judicial), ou, raramente, de penas de prestação social cujo cumprimento é parcamente fiscalizado[4]”.

Ao colacionarmos a citação, é importante deixar claro que não se está optando por uma justiça conflitiva tradicional, lastreada na pena privativa de liberdade, em detrimento da justiça consensuada. Fato é que nenhum dos dois paradigmas tem resolvido o problema de fundo – o conflito que está base da violência. O que queremos enfatizar é que a experiência dos Juizados Especiais Criminais para lidar com a violência doméstica e familiar contra a mulher foi um desastre no Brasil e não pode, sob nenhuma hipótese, ser revigorada.

É preciso, portanto, que nos mobilizemos para impedir que o PLS 156/09 seja aprovado com a presente redação. Trata-se de verdadeira sentença de morte para a Lei Maria da Penha que terá, repita-se, a maior parte do seu conteúdo esvaziado, transferindo para os JEC quase 80% das infrações cometidas com violência doméstica e familiar contra a mulher.


[1] LOPES Jr., Aury. Bom para que(m)? In, Boletim Ibccrim, ano 16, º 188, julho/2008, p. 9.

[2] HERMANN, Leda Maria. Violência Doméstica e Juizados Especiais Criminais: a dor que a lei esqueceu. Campinas: Servanda, 2004, p. 114.

[3] AMARAL, Cláudio do Prado. A Lei nº 9.099/95, a Política Criminal e a Violência Doméstica contra a Mulher. In, REALE JÚNIOR, Miguel e PASCHOAL, Janaína. Mulher e Direito Penal. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007, p. 120.

[4] Idem, pp. 167-168.

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