Sistema de repressão

Juízes apontam fracasso da política antidrogas

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15 de julho de 2009, 17h58

Em um encontro na cidade do Porto, em Portugal, juízes brasileiros, argentinos, portugueses, espanhóis e italianos concluíram que a política antidrogas de seus países tem sido um fracasso ao utilizar o sistema penal para reprimir o consumo e o tráfico. O encontro, que aconteceu no início de julho, deu origem à Declaração do Porto (leia no final do texto).

Os juízes são claros: as políticas públicas não conseguiram fazer com que houvesse uma diminuição no consumo de drogas e tampouco o sistema penal obteve sucesso na condenação de organizações criminosas. Eles também criticam a legislação sobre o tema e o foco da política antidrogas. Ou seja, em vez de ser tratado como questão de saúde, o consumo de drogas é visto como caso de Polícia.

“A falta de políticas públicas em matéria preventiva por parte dos diversos governos de distinto sinal político é inversamente proporcional ao crescimento da propaganda de mão dura ou de campanhas de lei e ordem, as quais, confrontadas com a realidade, demonstram ser meras ilusões”, dizem os juízes no documento.

Eles também constatam que as leis que tratam do assunto são deficientes e seguem orientações internacionais sem levar em conta as peculiaridades do país. “Não é possível tratar de um problema de saúde pública, descontextualizando-o, redefinindo-o como mero caso penal”, disse o juiz de Direito Rubens Casara, que participou do encontro em Portugal.

Na declaração, os juízes também apontam para o dado de que a maior parte dos casos que chegam ao Judiciário envolve pequenos crimes. “Da informação de diversos estudos empíricos realizados, resulta que chegam maioritariamente ao sistema penal os casos menores e insignificantes, o que provocou a sobrelotação do sistema penitenciário, e gerou um imenso e desnecessário desgaste do sistema judicial”, diz o texto, traduzido pelo juiz português Eduardo Maia Costa.

Rubens Casara cita dados do livro do delegado Orlando Zaccone, que revelam que no final dos anos 90, cerca de 60% da população carcerária do estado do Rio de Janeiro era composta por condenados por crime de tráfico de drogas. Segundo ele, os presos, que superlotam as penitenciárias no Brasil são, em grande parte, "traficantes-usuários" e pessoas que praticam o chamado "tráfico de subsistência".

Nessa terça-feira (14/7), a Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado debateu, em audiência pública, a política do Brasil sobre drogas. Segundo a Agência Senado, a professora Luciana Boiteaux, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, que participou da audiência, disse que os juízes brasileiros estão aplicando penas de prisão mais duras a jovens tidos como pequenos traficantes de drogas, mesmo quando eles não têm antecedentes e não integram organizações criminosas.

“São pessoas que ainda podem ser resgatadas, mas nesses casos a legislação impede a aplicação de penas alternativas e os juízes ainda optam por penas mais duras, que acabam reforçando a inserção dos envolvidos no mundo da criminalidade. Eles saem do sistema prisional em situação muito pior do que quando entraram”, afirma.

Já a secretária-adjunta da Secretária Nacional Antidrogas (Senad), Paulina Duarte, afirmou que as ações do governo envolvem o setor público e a sociedade em três linhas de ações: prevenção, ações policiais para reprimir o tráfico e medidas para o tratamento dos usuários. Segundo ela, uma das preocupações é estruturar a limitada rede de serviços para a recuperação de usuários de drogas.

Leia a Declaração do Porto

DECLARAÇÃO DE MAGISTRADOS LATINOS SOBRE POLÍTICAS PÚBLICAS EM MATÉRIA DE DROGAS E DIREITOS HUMANOS

DECLARAÇÃO DO PORTO DE 2009-07-10

1. As políticas públicas em matéria de drogas demonstraram ser um rotundo fracasso, já que não conseguiram atingir os fins pretendidos de diminuição do consumo de substâncias estupefacientes, nem chegaram a condenar as grandes organizações criminosas.

As Nações Unidas, no documento oficial do corrente ano – Relatório Anual sobre Drogas, UNDOC 2009 – afirmaram claramente que “não deve sacrificar-se a saúde pública à segurança pública”, devendo, sim, favorecer-se “o acesso universal ao tratamento da toxicodependência”, como “um dos melhores meios para reduzir o mercado ilegal de drogas”.

Também reconheceu que a repressão excessiva gerou um mercado ilícito de proporções macroeconómicas desconhecidas que se serve da violência e favoreceu a corrupção de sectores do aparelho estatal.

2. A transnacionalização dos fenómenos criminosos determinou a importação e imposição de figuras penais, provocando uma colonização legislativa que não teve em conta as particularidades da criminalidade de cada país.

3. A cooperação penal internacional representa uma das partes mais frágeis do direito penal, onde abundam instrumentos internacionais bilaterais e multilaterais, que revelam fragilidade material em geral, e que devem ser melhorados num enquadramento generalizado, para poderem cumprir os fins para que foram concebidos.

4. Enquanto os tribunais estão saturados de pequenos crimes, escapam-lhes os mais graves, que envolvem não só crimes de tráfico e de lavagem de dinheiro, mas ainda de corrupção cometidos por funcionários estatais.

5. Frente à observação do fenómeno anterior, constata-se que o Estado se demite de intervir nos espaços próprios de controlo estatal, como o controlo e fiscalização de precursores químicos, o mercado de medicamentos, o sistema institucional, o sistema financeiro, como também do estabelecimento e cumprimento de políticas preventivas, educativas ou de implementação de penas alternativas.

6. Da informação de diversos estudos empíricos realizados, resulta que chegam maioritariamente ao sistema penal os casos menores e insignificantes, o que provocou a sobrelotação do sistema penitenciário, e gerou um imenso e desnecessário desgaste do sistema judicial.

7. A legislação em matéria de drogas contende com os princípios da legalidade da lei penal, e ainda com os princípios pro homine, da ofensividade e da proporcionalidade, todos consagrados pelos Tratados de Direitos Humanos, de que os nossos países são signatários.

8. A legislação em matéria de drogas é uma legislação de emergência e, como tal, carece de um bem jurídico certo e determinado a proteger, possui técnica legislativa deficiente, uma proliferação excessiva de verbos, entre outros problemas técnicos que foram assinalados pela mais reconhecida doutrina.

9. A pretendida solução de um problema social complexo por meio do sistema penal viola o direito de acesso à saúde, o qual só é realizável, como assinalou o Comité do Pacto Internacional de Direitos Económicos, Sociais e Culturais se os membros da população tiverem nas mãos bens e serviços que lhes garantam direitos mínimos, de forma que se deve reservar o sistema repressivo para os casos graves.

10. Deve acentuar-se e aprofundar-se o papel do direito no desenvolvimento da tutela dos direitos individuais ponderando de forma positiva a redução da violência étnica e urbana, e favorecendo a harmonia multicultural.

11. Perante o conflito entre diversos bens jurídicos, deve dar-se sempre prevalência ao direito que conceda maior protecção à dignidade humana, à saúde, à vida, em detrimento do direito à segurança, na sua acepção reducionista.

12. A falta de políticas públicas em matéria preventiva por parte dos diversos governos de distinto sinal político é inversamente proporcional ao crescimento da propaganda de mão dura ou de campanhas de lei e ordem, as quais, confrontadas com a realidade, demonstram ser meras ilusões.

13. A proibição do consumo por meio da repressão da detenção de estupefacientes marginaliza os consumidores de drogas e condiciona o seu contacto com as instituições de saúde e outros organismos de assistência social, já que os identifica com a polícia, privando-os de receber informação sobre como evitar o consumo problemático e proteger a sua saúde.

14. É necessário substituir o conceito de redução de danos, para que não se limite a um conceito meramente assistencial, antes inclua a redução da violência que os departamentos estatais produzem sobre a população, por acção ou omissão, o que deve implicar uma mudança de paradigma.

15. O consumidor de drogas deve gozar de um efectivo direito à saúde. Quanto ao tratamento voluntário a seguir, são invioláveis o seu direito à informação, o direito ao conhecimento do diagnóstico, e também a confidencialidade dos dados pessoais. Os tratamentos a efectuar não devem prolongar-se excessivamente no tempo, devendo aplicar-se os meios e os fármacos adequados à problemática de cada pessoa. O internamento deverá ser sempre a última medida a aplicar, apenas quando nenhuma outra possa ser efectuada.

16. A imposição de um tratamento compulsivo, quer como medida de segurança, quer como pena alternativa, não só viola o princípio da autonomia individual, como constitui uma ferramenta ineficaz para cuidar dos consumidores de drogas, pois as estatísticas mostram que este tipo de intervenções não conseguiram impedir o incremento de recidivas. Daí a necessidade de conceder aos consumidores um amplo leque de alternativas em matéria de tratamento.

Porto, 3 de Julho de 2009

Martin Vázquez Acuña (Argentina)

Mónica Cuñarro (Argentina)

José Henrique Rodrigues Torres (Brasil)

Rubens Roberto Casara (Brasil)

Clara Penín Alegre (Espanha)

Pablo Ruz Gutiérrez (Espanha)

Luigi Marini (Itália)

Renato Finocchi Ghersi (Itália)

António Cluny (Portugal)

Eduardo Maia Costa (Portugal)

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