Sociedade tolera

STF definirá real princípio da adequação social

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14 de julho de 2009, 8h30

O Código Penal, no artigo 229, criminaliza a conduta de quem mantém casa de prostituição, in verbis: “Manter, por conta própria ou de terceiro, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fim libidinoso, haja, ou não, o intuito de lucro ou mediação direta do proprietário ou gerente — Pena:reclusão, de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, e multa”.

Ocorre que, como é cediço, além da tipicidade formal — aquela que concerne à adequação do fato concreto à letra fria da lei penal incriminadora —, há a busca pela verificação da efetiva e concreta lesão ao bem jurídico. Por conseguinte, a evolução do conceito de tipicidade, ocasiona, também, perquirição, no tocante à pertinência da norma incriminadora ao contexto social.

Assim, a aplicação de sanção penal, em relação à conduta, descrita na pré-aludida norma penal, é alvo de divergência doutrinária e jurisprudencial, que, como será mencionado, neste trabalho, será definida pela Suprema Corte. Realce-se ser inegável que a sociedade evoluiu, sobremaneira, no que se refere ao pudor e à quebra de paradigmas, atinentes à conduta sexual. Noutras palavras, hodiernamente, verifica-se, em geral, um menor nível de censura, relacionado à existência de casas de prostituição.

É importante excepcionar, como bem explicitou o Ministro Arnaldo Esteves Lima, em voto, proferido, no REsp 820406/RS (1), as hipóteses de exploração sexual de crianças e adolescentes (artigo 244-A, do ECA), de rufianismo (artigo 230, do Código Penal) e do favorecimento da prostituição (artigo 228,do CP), em relação as quais “a sociedade expressa total repugnância” (sic).

Em síntese, o senso comum indica que o corpo social, majoritariamente, tolera a existência de casas de prostituição, principalmente, pois, estas se localizam, geralmente, em áreas não residenciais. Adite-se que, muitas vezes, os locais não são destinados, somente, à prostituição, haja vista que se constituem em bares, ou casas de show, voltadas, principalmente, para o “agendamento” de encontros sexuais, o que aumenta o nível de tolerância social.

Destarte, há corrente de entendimento, segundo o qual o princípio da insignificância, ante a ausência de ofensa concreta a bem jurídico relevante, e o princípio da adequação social, consubstanciado na aceitação da sociedade, em relação à citada conduta, afastam a possibilidade de aplicar-se reprimenda criminal àqueles que praticaram o núcleo típico, inscrito no artigo 229, do Código Penal.

O doutrinador Guilherme de Souza Nucci (2) critica a subsistência do referido tipo penal: “(…) o objeto jurídico é formado pela moralidade sexual e os bons costumes. O objeto material é a casa de prostituição ou o lugar destinado a encontros libidinosos. Quanto à persistência desse tipo penal cremos dispensável (…). É preciso não fechar os olhos à realidade, pois a prostituição, queiram alguns setores da sociedade ou não, está presente e atuante (…) Com o nome de motel, casa de massagem, bar ou café para encontros (…) criaram-se subterfúgios para burlar a lei penal. Robora-se a permissividade diante do princípio da legalidade, pois os tribunais pátrios não vem condenando os proprietários desses estabelecimentos (…). Não se critica a jurisprudência; ao contrário, deve-se censurar a lei, persistindo em impingir um comportamento moralmente elevado – ou eleito como tal – à vista coletividade através de sanções penais. (…) Por outro lado, já que a prostituição não é, penalmente, relevante proibida não há razão para o tipo penal do artigo 229 subsistir.”

Traz-se a cotejo, alguns julgados que reconhecem a atipicidade do fato, sob comento:

“EMENTA:  MANUTENÇÃO DE CASA DE PROSTITUIÇAO. ABSOLVIÇÃO MANTIDA. Conduta de manutenção de casa de prostituição, socialmente aceita, sem necessidade de intervenção penal, por força da adequação social da conduta. APELO MINISTERIAL DESPROVIDO”. (Apelação Crime (3) Nº 70024551228, Sexta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Nereu José Giacomolli, Julgado em 26/06/2008).

“EMENTA: CASA DE PROSTITUIÇÃO. FAVORECIMENTO DA PROSTITUIÇÃO. ATIPICIDADE. Os delitos de ‘casa de prostituição’ e de ‘favorecimento da prostituição’, este quando não envolve menores, são condutas atípicas por força da adequação social. À sociedade civil é reconhecida a prerrogativa de descriminalização do tipo penal configurado pelo legislador. A eficácia da norma penal nos casos de casa de prostituição mostra-se prejudicada em razão do anacronismo histórico, ou seja, a manutenção da penalização em nada contribui para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito, e somente resulta num tratamento hipócrita diante da prostituição institucionalizada com rótulos como ‘acompanhantes’, ‘massagistas’, motéis, etc, que, ainda que extremamente publicizada, não sofre qualquer reprimenda do poder estatal, em razão de tal conduta, já há muito, tolerada, com grande sofisticação, e divulgada diariamente pelos meios de comunicação, não é crime, bem assim não será as de origem mais modesta. Recurso improvido”. (Apelação Crime (4) Nº 70023513120, Quinta Câmara Criminal, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Aramis Nassif, Julgado em 07/05/2008)

Outra corrente entende que a leniência das autoridades públicas e a aceitação da sociedade não podem afastar a caracterização do crime, previsto no artigo 229, do CP, porque uma lei penal, somente, é revogada, por outra lei. Nesse sentido, o STJ (5) possui jurisprudência, no sentido de reconhecer a tipicidade da multicitada conduta:

“(…) A eventual tolerância ou indiferença na repressão criminal, bem assim o pretenso desuso não se apresentam, em nosso sistema jurídico-penal, como causa de atipia. O enunciado legal (art. 229 e art. 230) é taxativo e não tolera incrementos jurisprudenciais.” “Os crimes em comento estão gerando grande comoção social, em face da repercussão, existindo uma mobilização nacional de proteção dos menores.” Recurso conhecido e provido”. (REsp 585.750/RS, Rel. Ministro JOSÉ ARNALDO DA FONSECA, QUINTA TURMA, julgado em 10/02/2004, DJ 15/03/2004 p. 295)

“PENAL. RECURSO ESPECIAL. CASA DE PROSTITUIÇÃO. TOLERÂNCIA. ATIVIDADE POLICIAL. TIPICIDADE (ARTIGO 229 DO CP).
I – A eventual tolerância ou a indiferença na repressão criminal, bem assim o pretenso desuso não se apresentam, em nosso sistema jurídico-penal, como causa de atipia (Precedentes).
II – A norma incriminadora não pode ser neutralizada ou ser considerada revogada em decorrência de, v.g., desvirtuada atuação policial (artigo 2º, caput da LICC).
Recurso conhecido e provido”. (REsp 146.360/PR, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 19/10/1999, DJ 08/11/1999 p. 85)

“(…) 1. ABSTRAÇÃO FEITA A MAIORES CONSIDERAÇOES ACERCA DA TIPICIDADE DO DELITO, ACOLHIDA, DE MANEIRA UNIFORME, NAS INSTANCIAS ORDINARIAS, NÃO HA NO CODIGO PENAL BRASILEIRO, EM TEMA DE EXCLUDENTE DA ILICITUDE OU CULPABILIDADE, POSSIBILIDADE DE SE ABSOLVER ALGUEM, EM FACE DA EVENTUAL TOLERANCIA A PRATICA DE UM CRIME, AINDA QUE A CONDUTA QUE ESSE DELITO ENCERRA, A TEOR DO ENTENDIMENTO DE ALGUNS, POSSA, SOB A OTICA SOCIAL, SER TRATADA COM INDIFERENÇA. O ENUNCIADO LEGAL (ART. 22 E 23) E TAXATIVO E NÃO TOLERA INCREMENTOS JURISPRUDENCIAIS.

2. A CASA DE PROSTITUIÇÃO NÃO REALIZA AÇÃO DENTRO DO AMBITO DE NORMALIDADE SOCIAL, AO CONTRARIO DO MOTEL QUE, SEM IMPEDIR A EVENTUAL PRATICA DE MERCADORIA DO SEXO, NÃO TEM COMO FINALIDADE UNICA E ESSENCIAL FAVORECER O LENOCINIO.

3. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO PARA RESTABELECER A SENTENÇA”. (REsp 149.070/DF, Rel. Ministro FERNANDO GONÇALVES, SEXTA TURMA, julgado em 09/06/1998, DJ 29/06/1998 p. 346)

Recentemente, foi impetrado pela Defensoria Pública da União, na Suprema Corte, o Habeas Corpus 99144, que, tem, como escopo, reformar acórdão do STJ, que, por maioria reconheceu, como típica, a manutenção de casa de prostituição. O caso, a que se refere o pré-aludido Habeas Corpus, teve início no Rio Grande Sul, cujo Tribunal manteve a absolvição de três acusados de manter casa de prostituição, em julgado, que possui a seguinte ementa;

“(…) À sociedade civil é reconhecida a prerrogativa de descriminalização do tipo penal configurado pelo legislador. A eficácia da norma penal nos casos de casa de prostituição mostra-se prejudicada m razão do anacronismo histórico, ou seja a manutenção da penalização em nada contribui para o fortalecimento do Estado Democrático de Direito, e somente resulta num tratamento hipócrita diante da prostituição institucionalizada com rótulos como acompanhantes, massagistas, motéis, etc, que, ainda que extremamente publicizada, não sofre qualquer reprimenda do poder estatal, haja vista que tal conduta, já há muito, tolerada, com grande sofisticação, e divulgada diariamente pelos meios de comunicação, não é crime, bem assim não será as de origem mais modesta. Recurso ministerial improvido” (Apelação 70011398344. Rel. Des. Aramis Nassif).

O Ministério Público gaúcho interpôs recurso especial, o qual foi tombado, sob o número 820406, e distribuído para o Ministro Arnaldo Esteves Lima, que votou pela manutenção do entendimento, externado pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul.

Vale trazer à colação trecho do voto vencido do Min. Arnaldo Esteves Lima, in verbis[6]:

“1. As modernas teorias do delito dão relevância ao bem jurídico e a sua ofensa, entendendo a tipicidade penal não apenas em sua tipicidade formal, mas, também, em seu lado material, sendo que este se dividiria em 3 juízos valorativos diversos, a saber: a) desaprovação da conduta – criação ou incremento de riscos proibidos relevantes; b) desaprovação do resultado jurídico – lesão ou perigo de lesão concreto ao bem jurídico tutelado, e c) nexo de imputação ou imputação objetiva do resultado – relação entre o resultado e a criação ou incremento do risco proibido relevante.

2. Em relação à desaprovação do resultado jurídico, ela ocorre quando a ofensa é, ao mesmo tempo, a) real ou concreta – afastando o perigo abstrato, b) trascendental – dirigida a terceiros, c) grave – princípio da insignificância, d) intolerável – não-aceitação social.

3. Assim, dentro dessa concepção, para a configuração da tipicidade penal deve-se levar em conta não só os aspectos formais (conduta, resultado, nexo de causalidade e adequação do fato a lei) mas também os aspectos materiais e normativos.

4. Os princípios da insignificância e o da aceitação social deve ser examinados tanto na conduta quanto no resultado para se concluir por típico o ato praticado.

5. Diversamente das condutas insertas nos arts. 228 (favorecimento da prostituição) e 230 (rufianismo), ambos do Código Penal, e no art. 244-A, do ECA (submeter criança ou adolescente à prostituição ou à exploração sexual), às quais a sociedade expressa, sem sombra de dúvida, total repugnância, o só fato de manter, por conta própria ou de terceiros, casa de prostituição ou lugar destinado a encontros para fins libidinoso, havendo, ou não, intuito de lucro (art. 229, do CP) é, se não totalmente aceito, tolerado pela sociedade.

6. Não há crime quando a desaprovação da conduta e/ou do resultado é tolerado pela sociedade, tornando a figura materialmente atípica, como no caso do art. 229 do CP. (…)”.

Todavia, o Ministro Napoleão Nunes Maia Filho abriu divergência, proferindo voto vencedor, o qual ficou assim ementado:

“(…)1. O art. 229 do CPB tipifica a conduta do recorrido, ora submetida a julgamento, como sendo penalmente ilícita e a eventual leniência social ou mesmo das autoridades públicas e policiais não descriminaliza a conduta delituosa.

2. A Lei Penal só perde sua força sancionadora pelo advento de outra Lei Penal que a revogue; a indiferença social não é excludente da ilicitude ou mesmo da culpabilidade, razão pela qual não pode ela elidir a disposição legal.

3. O MPF manifestou-se pelo provimento do recurso.

4. Recurso provido para, reconhecendo como típica a conduta praticada pelos recorridos, determinar o retorno dos autos ao Juiz de primeiro grau para que analise a acusação, como entender de direito”.

No Supremo Tribunal Federal, o Habeas Corpus 99144 foi distribuído para o Ministro Menezes Direito, que se encontra licenciado por motivo de saúde. Por conseguinte, os autos foram encaminhados para o Ministro Marco Aurélio, com espeque no artigo 38, I, do RISTF.

O Min. Marco Aurélio indeferiu o pedido de liminar, lançando a seguinte fundamentação, in verbis (7): “Observem o sistema pátrio. Encerra o Direito posto. Então, descabe potencializar o que possa transparecer como óptica de grande parte da população para concluir pela insubsistência de tipo penal. A tolerância notada quanto à prostituição não leva a entender-se como derrogado o artigo 229 do Código Penal. Paga-se um preço por se viver em um Estado de Direito e é módico, ou seja, o respeito às regras estabelecidas. Somente assim se faz possível a paz na vida gregária”.

Logo, nesta quadra, o Supremo manteve, ainda que, em cognição não exauriente, o entendimento do STJ, reconhecendo a tipicidade da conduta, consubstanciada na manutenção de casa de prostituição.

O Pretório Excelso decidirá se a norma penal, inscrita no artigo 229, do Código Penal, subsiste, no contexto social hodierno ou se resta inaplicável, ante os princípios da insignificância, intervenção mínima e adequação social. Trata-se de julgamento deveras relevante, haja vista que o Supremo Tribunal Federal haverá de definir se a suposta aceitação social, em relação à determinada conduta, tem o condão, ou, não, de afastar a sua tipicidade.

Assim, o Supremo Tribunal Federal decidirá se a sociedade pode, com base na sua possível tolerância, no que concerne a determinados atos, e na mudança de paradigmas, de cunho moral, afastar a aplicabilidade prática de norma penal incriminadora, excluindo a repressão dos órgãos estatais. Em suma, a Suprema Corte indicará o verdadeiro alcance do princípio da adequação social e sua repercussão no tipo penal.

Referências

1. Disponível em <www.stj.jus.br>. Acesso em: 11 de junho de 2009.
2. Código Penal Comentado – 9. ed. rev., atual e ampl. – São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, os. 913-914.
3. Disponível em <
www.tjrs.jus.br>. Acesso em: 11 de junho de 2009.
4. Idem.
5. Disponível em <
www.stj.jus.br>. Acesso em: 13 de junho de 2009.
6. Disponível em <
www.stj.jus.br>. Acesso em: 13 de junho de 2009.
7. Disponível em <
www.stf.jus.br>. Acesso em: 13 de junho de 2009.

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