Autonomia dos estados

Texto da Reforma tributária fere princípio federativo

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11 de julho de 2009, 4h14

O crescimento econômico mundial — a despeito da crise vivida nos últimos meses — elevou o Brasil, através das empresas transnacionais aqui constituídas e do próprio governo, à condição de personagem direto e atuante nos mercados internacionais, de modo que a regulamentação das atividades internas deve, tanto quanto possível, se mostrar compatível com as exigências do mundo globalizado.

Sendo assim, a reforma da atividade tributante no país é de imprescindível realização. A tributação atingiu níveis de impraticabilidade impensáveis em uma economia sedizente em ascensão e com metas de crescimento nada modestas. A irracionalidade da legislação, dos sistemas de cobrança, dos meios de fiscalização, aliada a um escandaloso rol de deveres instrumentais assolam o empresariado, fazendo-o trabalhar mais de cinco meses tão-somente para o adimplemento das obrigações tributárias.

Por certo que as condições atuais da economia exigem, em contrapartida à ampliação dos mercados produtores e consumidores e à rapidez e intensidade das negociações, a simplificação da instituição, cobrança, pagamento e fiscalização de tributos. A simplificação é vetor primordial dos sistemas tributários modernos. No entanto, em nome da desburocratização não se pode distorcer partes do sistema jurídico de há muito consolidadas e autoproclamadas imutáveis.

Pois bem. Apresentada ao Congresso pelo governo federal em fevereiro de 2008, a Proposta de Emenda Constitucional que altera o Sistema Tributário Nacional, vulgarmente conhecida como Reforma Tributária, é mais uma tentativa de racionalização da tributação no Brasil, com os declarados objetivos precípuos de “simplificar o sistema tributário nacional, avançar no processo de desoneração tributária e eliminar distorções que prejudicam o crescimento da economia brasileira e a competitividade de nossas empresas, principalmente no que diz respeito à chamada ‘guerra fiscal’ entre os Estados”.[1]

Contudo, de uma análise mais detida do texto da proposta infere-se que com muita dificuldade as principais metas traçadas e exaustivamente anunciadas serão atingidas, se a tanto chegarem. E isto se dá por singelas, porém definitivas, razões.

A primeira delas é o contexto normativo decorrente das disposições constitucionais em vigor, algumas das quais, dentre outras características, são vinculantes e impassíveis de alteração. Some-se a isso a conjuntura sócioeconômica e o fabuloso histórico político nacional e teremos a composição perfeita para o “Carnaval Tributário” previsto por Becker.

Um único exemplo basta para elucidar esta situação. A pretexto de simplificação e de eliminação da chamada “guerra fiscal”, propõe-se a criação de um “novo ICMS” que contemplaria uma “competência conjunta, sendo mitigada a competência individual de cada estado para normatização do tributo”. O imposto seria instituído por uma lei complementar nacional e não mais por 27 legislações das ordens jurídicas parciais. E mais: seria criado um “novo Confaz”, destinado à regulamentação unitária do novo imposto.

A criatividade do Executivo federal não para por aí. A fim de “estabelecer segurança para os Estados na transição” para o novo modelo de tributação pelo ICMS, o governo propôs a instituição de um Fundo de Equalização de Receitas (FER), a ser regulamentado por lei complementar, e financiado por uma vinculação de recursos oriundos da arrecadação do IPI. O fundo visa a garantir “eventuais” perdas dos estados nas suas arrecadações e seria implementado paulatinamente.

Tal descalabro (tido por “peculiaridade” pelo Ministério da Fazenda), resumido nas palavras acima, revela-se insubsistente diante da manifesta violação ao federalismo, forma de Estado pela qual optou o legislador constituinte de 1988 e em relação à qual se exige a manutenção e a indissolubilidade. O princípio federativo é, portanto, alçado à condição de fundamento do Estado, passando de decisão constitucional formadora a uma das razões (também constitucional) de ser deste mesmo Estado, de maneira que a mera intenção de alterar a forma de Estado é natimorta.


Ora, a Constituição Federal proclama, na complexa estrutura política que dá configuração ao modelo federal de Estado, a coexistência de comunidades jurídicas responsáveis pela pluralização de ordens normativas próprias que se distribuem segundo critérios de discriminação material de competências, fixadas pelo texto constitucional. O relacionamento entre os componentes da federação encontra fundamento na Constituição da República, que representa, no contexto político-institucional do Estado brasileiro, a expressão formal do pacto federal e a “repartição de competências reflete uma das mais expressivas características do Estado federal”.[2]

Tem a federação, destarte, como uma de suas facetas a atribuição de competências, isto é, parcela do princípio federativo é composta por “regras definidoras de competência que, ao seu turno, asseguram a autonomia dos entes federados”. Sob tal contexto, é de se indagar se uma reforma constitucional pode alterar regras de competência e, em caso afirmativo, qual a extensão desta alteração. Mais: até que ponto uma reforma constitucional pode interferir na autonomia política, legislativa, econômica e financeira das ordens jurídicas parciais.

A ação reformadora da Constituição de 1988 encontra respaldo em seu artigo 60, e a mudança formal só será considerada legítima quando adotado o procedimento previsto e com os limites dali decorrentes.

Diante desse quadro, a alteração constitucional — principalmente aquela atinente à distribuição de competências — pode ser uma via de promoção e otimização dos valores consagrados na Carta Republicana de 1988, tendo em vista pretensa remodelação dos fatores sociais, políticos e/ou econômicos.

Não se está imune, entretanto, ao reformismo casuísta, no qual frequentemente se define o problema pela ferramenta, quando na verdade é o inverso que a lógica exige: primeiramente descobre-se o problema, seus elementos e variantes para, em momento ulterior, escolher e valer-se das ferramentas.

Para tanto, é premente a adoção de critérios intersubjetivamente controláveis, aliados a padrões discursivos e argumentativos, a fim de assegurar a formação de uma unidade na avaliação das reais necessidades de uma modificação constitucional e, principalmente, da extensão e forma de sua execução.

Ora bem, da ordem jurídica constam escolhas e a elas deve ser destinada a atenção do intérprete, o qual se volta para a Constituição Federal e verifica quais as opções desta. A escolha constitucional é a escolha relevante, deve ser respeitada e, fundamentalmente, realizada. Demais disso, referidas escolhas geram uma expectativa de que sejam consolidadas e aplicadas ao longo do tempo, assegurando relações jurídicas e os termos destas. Assim, o regime de competências, real concretização do pacto federativo, não pode ser alterado substancialmente pela introdução de novas regras que modifiquem aquele estado inicial a ponto de comprometer a funcionalidade da federação.

Nesse sentido, o conteúdo normativo do princípio federativo encerra a “proibição de o Poder Legislativo criar um estado superveniente de distribuição de competências que relativize ou mesmo torne inoperante a federação enquanto forma de Estado”. O legislador, depois de tomar decisões fundamentais, é obrigado a executá-las de modo coerente e sem contradição (dever de coerência sistemática). Tendo o legislador adotado um sistema legislativo inicial harmônico, não pode dele se afastar, salvo em casos extremos e mediante uma justificativa condizente. Ora, não se afigura coerente que o legislador, de um lado, alegue que possui ampla liberdade de configuração dos elementos necessários à realização da federação e que, de outro, não queria se vincular ao exercício concreto dessa mesma liberdade.[3]

Não é demais lembrar que a arrecadação de tributos se presta, precipuamente, a garantir os recursos financeiros (meios) indispensáveis ao gerenciamento da máquina pública e à manutenção das atividades estatais (fins imediatos). Dessarte, o meio e os fins imediatos são vias diretas de concretização da autonomia das pessoas políticas federadas, característica elementar da federação e fim mediato do provimento de fundos através da atividade tributante.


Um estado-membro, por exemplo, só poderá administrar na medida de sua independência se dispuser de recursos para tanto; da mesma forma, sua tomada de decisões está atrelada à existência de verbas que garantam sua atuação regular e a continuidade de seus investimentos. Em suma, “um dos alicerces da autonomia político-administrativa é a autonomia financeira”.

Desta feita, um intento de reforma tributária que diminua ou mesmo elimine da Constituição preceitos que assegurem a posição autônoma dos membros da federação é de ser visto como “tendente a abolir a forma federativa de Estado” e, portanto, inconstitucional. O respeito à ordem constitucional é imperativo e não pode sucumbir a pretexto de se adequar a tributação a uma suposta nova ordem econômica. Se é necessário que se proceda a uma reforma tributária — e assim entendemos ser —, que esta se dê em consonância com os fundamentos do Estado brasileiro e não ao arrepio de normas formadoras da ordem jurídica pátria.

A voracidade arrecadatória dos órgãos fazendários, subservientes à intenção de gerar receitas a qualquer custo para uma máquina esclerosada e corrupta que não para de crescer e gastar, emperra o pleno e cabal desenvolvimento de setores vitais da economia como, por exemplo, o produtivo.

Pior: a pesada carga tributária, representante de mais de 36% do Produto Interno Bruto e sustentada por seguidos recordes e mais recordes de arrecadação na esfera federal — a despeito das alardeadas “renúncias fiscais” do governo —, não é traduzida em bens e serviços de qualidade para o contribuinte, revelando o mau e indevido uso do dinheiro público.

A importância de uma reforma tributária é evidente. No entanto, sacrificar a ordem constitucional vigente não é o caminho certo para sua conclusão. O que se tem visto atualmente é a fundamentação de anseios reformistas de maneira oblíqua e desprovida de base legal.

É cediço que está em curso um processo de crescimento sustentável, caracterizado por um novo ciclo de crescimento econômico, talvez mais vigoroso e equilibrado e manifestamente carente de políticas fiscais que garantam a redução consistente da dívida pública, pela inflação baixa e estável, pela solidez das contas externas e, principalmente, pela racionalização do sistema tributário.

Esses ideais constituem retórica que não afasta, de maneira alguma, princípios e regras dispostos no texto constitucional, o qual, por ser fundamento de validade de todas as normas do Estado brasileiro — inclusive aquelas que venham a reformar a CF/88 — merece o devido respeito.

Desta forma, criar novos gravames e redistribuir competências sob os pretensos propósitos de eliminar obstáculos para uma produção mais eficiente e menos custosa, reduzir e simplificar a carga fiscal, estimular a formalização, via de regra não permite o desenvolvimento mais equilibrado da federação e não melhora a qualidade das relações federativas.

Ao contrário, desfigura o cerne da tributação sem, contudo, atacar o que deve ser atacado: a complexidade, a cumulatividade, o aumento do custo dos investimentos, a guerra fiscal, a oneração distorcida dos setores da economia e outras tantas mazelas da atividade tributante no país.

Se se pretende aprimorar a relação federativa, o primeiro passo é respeitar as garantias de autonomia presentes na Carta Republicana, não podendo ser afastadas, por exemplo, prerrogativas legislativas afetas aos entes da federação, destinações dos produtos de suas próprias arrecadações, assim como seus interesses fiscais não podem ficar a cargo de órgãos fracionários de efetividade duvidosa.

Redistribuir competências, nos moldes pretendidos pela proposta do Governo, significa interferir em um dos elementos conceituais da federação, qual seja a parcela de autonomia de cada partícipe. Assim, “no momento em que é transferida parte da capacidade legislativa de municípios e/ou estados-membros para a União ou, ainda, quando são deslocadas para o governo central competências tributárias para que este depois promova as correspondentes repartições, está-se a mitigar a consecução de um dos focos mais elevados da forma federativa de Estado, sacrificando a autonomia em prol da unidade central”.

Neste passo, pugna-se por uma reforma tributária atrelada às normas constantes da Constituição Federal, as quais representam as opções vinculantes do legislador constituinte e que exigem a permanência de um conteúdo mínimo das relações estatais, sob pena de desvirtuamento da ordem constitucional criada. A tributação no Brasil deveras exige uma reformulação, mas não se chegará à racionalidade abrindo-se a porta para a irracionalidade.

Luiz Eduardo Abarno da Costa, Especialista em Direito Tributário, advogado, sócio da Magadan & Abarno da Costa Advogados Associados.


[1] Cf. Exposição de Motivos nº 00016/MF, Brasília, Ministério da Fazenda, 26 de fevereiro de 2008, disponível em http://www.fazenda.gov.br/portugues/documentos/2008/fevereiro/EM-16-2008-Reforma-Tributaria.pdf.

[2] STF, voto do relator, Min. Celso de Melo, na ADI 2.995, DJ de 28-9-07.

[3] ÁVILA, Humberto. Teoria da Igualdade Tributária. São Paulo, Malheiros, 2008, pp. 121-123.

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