Ataque às prerrogativas

Algemas nos punhos dos outros é refresco!

Autor

  • Ticiano Figueiredo

    é advogado criminalista sócio do escritório Figueiredo & Mesquita Advogados especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra e sócio fundador do Instituto de Garantias Penais.

9 de julho de 2009, 7h49

Cansados de assistir inertes às reiteráveis violações às garantias do advogado e de acusados, no exercício do direito de defesa, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado convocou, no dia 2 de julho deste ano, audiência pública para debater o Projeto de Lei 83/08, que criminaliza a violação de qualquer uma das prerrogativas estabelecida no artigo 7° da Lei 8.906/94.

Todavia, o que se viu foi uma verdadeira convenção de juízes, promotores e delegados contra a aprovação do referido projeto.

Não faltaram comentários demonstrando, de maneira veemente, a insatisfação daquelas autoridades de estarem ali discutindo a possibilidade de se aprovar um projeto de lei daquele tipo. Alguns desses comentários, dada a importância de seus autores, foram destacados e — diante da ausência indesculpável de um membro da Ordem dos Advogados do Brasil — este artigo ousa comentá-los (ou questioná-los), a fim de se externar o sentimento há tempos encravado no peito de grande parte dos advogados criminalistas.

Um membro do Ministério Público invocou o artigo 6° do Estatuto dos Advogados para lembrar que “não há hierarquia nem subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público”.

Sua Excelência tem toda razão! Mas, uma pergunta — dentre as várias existentes — que permanece sem resposta é por que o Ministério Público senta à direita do magistrado nas audiências e ambos ficam acima do advogado? Ou por que o Ministério Público pode ter acesso a todas as provas — mormente aquelas decorrentes de medidas cautelares — e o advogado, mesmo com procuração, tem que ter o pedido deferido pelo magistrado.

Além disso, por que o Ministério Público pode ter acesso quando bem entender, e pelo tempo que julgar necessário, a todo tipo de processo, enquanto o advogado só pode ter acesso a processos em que tenha procuração, quando o Juiz conceder e pelo prazo por ele estabelecido?

Por que promotores e magistrados podem circular livremente pelos Tribunais, no horário que for preciso, enquanto os advogados só podem circular em horário de expediente, a todo o momento se identificando com a carteira profissional, sem falar no famigerado raio-x? Por que os advogados suam para serem recebidos pelos magistrados para explicar alguma particularidade de um determinado caso, enquanto as portas do Judiciário estão sempre abertas para o Parquet?

Não são todos hierarquicamente iguais e sem subordinação?

Por sua vez, um delegado da Polícia Federal afirmou que “o Direito Penal tem que ser usado para trazer paz social e, nesse caso, só traz conflitos”. A autoridade policial criticou ainda a postura de uma “minoria de advogados” que “no afã de exercer seus direitos, não compreendem as necessidades dos outros profissionais”.

Sem dúvida, o Direito Penal tem que ser utilizado como a ultima ratio do legislador, na busca pela paz social. Mas se se chegou a este ponto, de ter de criminalizar a violação das prerrogativas do advogado, é porque a mera menção destas garantias na lei federal já não se mostra mais suficiente.

Será que os delegados entendem a necessidade que o advogado tem de falar com o seu cliente no momento em que este foi preso, em local reservado, antes de ser levado para prestar depoimento perante a autoridade policial? Será que é compreensível que o advogado tem necessidade de visitar o seu cliente, independente da hora e do local onde ele estiver preso e que este contato deve ser pessoal e com toda a privacidade que o exercício do múnus público exige para a espécie?

Será que eles não compreendem a necessidade que os advogados têm de fazer outras coisas, de cuidarem de seus outros processos e não podem ficar três, quatro, cinco horas esperando para falar com seu cliente que está preso? Será que alguém entende que o advogado também tem necessidade de conviver com sua família e não pode ficar até as duas horas da manhã, dentro do presídio, esperando cumprir o alvará de soltura de seu cliente, de uma decisão que saiu às duas da tarde?

Será que a autoridade policial entende a necessidade que o advogado tem de ter acesso a todas as provas e documentos que embasaram as investigações contra o seu cliente e que constam do inquérito? Será que eles compreendem que o advogado tem necessidade de trabalhar e tudo o que ele quer é ter a certeza de que terá a suas prerrogativas respeitadas?

Pelo que se tem observado no dia a dia, aparentemente a respostas para essas perguntas é “não”…

Já em outro momento da audiência pública, um magistrado sugeriu que mais poderes deveriam ser dados aos juízes e não aos advogados, eis que “quem milita no Judiciário sabe que o mais difícil é cumprir as decisões judiciais. O juiz não tem mecanismos para fazer valer sua decisão de forma coercitiva”.

Data maxima venia, dar mais poderes ao juiz seria aprofundar ainda mais o abismo que existe entre a toga e o advogado. Ao contrário do que afirmar Sua Excelência, o juiz tem inúmeras formas de fazer cumprir sua decisão, inclusive expedindo mandado de prisão. Já o advogado, muitas vezes, luta desarmado para fazer cumprir uma liminar concedida.

O cenário, na verdade, é de um desfecho às avessas da luta entre Davi e Golias, sendo que neste caso Davi, com um graveto, enfrenta um gigante modernamente equipado. Pergunte a um advogado como ele se sente ao entrar em qualquer cartório do Fórum e deparar com uma placa ostensiva relembrando-o do “poder” concedido ao funcionário público pelo artigo 331 do Código Penal.

Outro comentário que chamou atenção, feito por um magistrado, foi o de que seria necessário mais “civilização” no debate de novas leis penais. Com toda razão! É preciso lembrar sempre que o Direito Penal tem caráter fragmentário, ou seja, só pode ser acionado naqueles casos em que outros ramos do direito falharam ou se mostram insuficientes para coibir determinadas condutas contrárias à paz social.

Deveria ter sido debatida a Lei Seca com um cidadão que passou anos de sua vida estudando e foi pego em uma blitz após tomar uma taça de vinho com sua namorada.

Da mesma forma, deveria ser debatido com um usuário de droga o artigo 44 da Lei 11.343/06 — que veda a concessão de liberdade provisória — depois que ele foi pego fumando um cigarro de maconha e acabou acusado de tráfico de entorpecentes, só vindo a ser libertado da cadeia após seis meses, quando finalmente absolveram-no.

Pergunte a um indivíduo, que foi absolvido, como é ser preso, exposto às câmeras e “humilhado em praça pública”, durante uma das megapirotécnicas operações policiais.

São perguntas que mereceriam ser feitas e suas respostas deveriam ser ouvidas…

Por fim, algumas autoridades argumentaram nessa audiência pública que já existem as corregedorias, os conselhos e a Lei de Abuso de Autoridade e que não há necessidade de só a classe dos advogados ter direito a uma lei sobre suas prerrogativas.

Com todo respeito, há sim! Porque os conselhos, as corregedorias e a Lei de Abuso de Autoridade não tem sido suficiente para coibir as flagrantes e reiteradas violações que vem acontecendo ao Estado Democrático de Direito. Se fossem, não estaria sendo necessário ter esta discussão no Congresso Nacional.

Se médicos, engenheiros e arquitetos não estão lutando para ter uma lei que preserve as suas prerrogativas é porque elas não estão sendo violadas, como vem acontecendo com os advogados.

Na verdade, infelizmente, o que se viu nessa audiência pública da Comissão de Constituição e Justiça do Senado foi uma declaração, ou melhor, uma confissão expressa de que as prerrogativas dos advogados estão sim sendo violadas e, pior, assim querem que permaneça sendo!

Não há outra justificativa para tantos magistrados, promotores e delegados terem se reunido para protestarem contra o PL 83/08. É triste, mas este é um retrato do que vem acontecendo em alguns tribunais, delegacias e demais órgãos de persecução.

A nós, advogados, resta apenas aplaudir a atitude do Congresso Nacional de convocar a referida audiência pública e torcer para que os senadores e demais parlamentares não se curvem diante da pressão e prestigiem, ao final, a todos os cidadãos e o Estado de Direito, com a aprovação do referido projeto de lei!

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  • Brave

    é advogado Criminalista membro do escritório Advocacia Toledo; Especialista em Direito Penal Econômico pela Universidade de Coimbra; Sócio Fundador do Instituto de Garantias Penais

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