Lei da Anistia

Brasil deve decidir sobre vítimas da ditadura

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8 de julho de 2009, 8h02

Os debates na sociedade brasileira, mesmo aqueles na esfera jurídica, a respeito da Lei de Anistia (Lei 6.883/1979) e seus efeitos têm desconsiderado o rico panorama da normativa internacional a respeito do tema, consolidado na doutrina e na jurisprudência de mecanismos convencionais e extra-convencionais.

Contudo, algumas circunstâncias atuais permitem afirmar que o debate necessariamente deverá enfrentar a questão da responsabilidade internacional do Estado, no contexto do Direito Internacional dos Direitos Humanos, e da responsabilidade individual penal, iluminada pelos desenvolvimentos do Direito Internacional Penal.

Em “O justo ou a essência da justiça”, Paul Ricoeur faz considerações que relacionam a responsabilidade — no uso jurídico clássico, de obrigação de reparar ou de sofrer a pena, derivada do juízo de imputação — com a anistia — sendo esta uma espécie de reabilitação, que ocorre pelo apagamento do crime e das penas. Esse apagamento deriva da interdição de toda ação na Justiça e, logo, da perseguição dos criminosos e da evocação dos fatos por si mesmos sob a sua qualificação criminal. Trata-se de uma anistia institucional, que convida a fazer como se o acontecimento não tivesse tido lugar[i].

Contudo, é relevante para o Direito a retomada de situações históricas; ou para que as que não foram totalmente resolvidas o sejam, ou para que, ao se resgatar o passado, não se corra o risco de repeti-lo. Essas preocupações retomam o fundamento principal do Direito que é a busca da justiça. Essa busca é acentuada em ramos do Direito que trazem em si hierarquias de valores, como no caso dos Direitos Humanos, fundados na dignidade humana e que têm como fim uma mudança cultural que permita a sua efetivação plena.

Como afirma Ricoeur, a anistia não procede da instância jurídica, mas da política, em especial do Legislativo, mesmo que em relação aos fatos a condução da operação seja monopolizada pelo Executivo. Neste espírito, a Lei de Anistia foi interpretada de modo a “apagar” os crimes cometidos por agentes do Estado. Em decorrência desta interpretação pode ser considerada como uma lei de auto-anistia, ou seja, expedida por e em favor de quem exerce a autoridade. Apesar de as anistias (e as auto-anistias) serem temas internos é importante que se observe a coerência com o Direito Internacional, em função do Direito Internacional dos Direitos Humanos e do estabelecimento de padrões de condutas para os Estados.

Neste particular, deve-se destacar, conforme denominou o juiz Sérgio García Ramírez (voto razonado a la sentencia de la Corte IDH en el caso La Cantuta), o “critério interamericano a respeito das auto-anistias”, desenvolvido a partir da jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).

O caso Barrios Altos vs. Peru (2001)[ii] é o marco interamericano a respeito da consideração dos efeitos das chamadas leis de auto-anistia. A CIDH, nesta ocasião, reconheceu a responsabilidade internacional do Estado por violação à sua obrigação de respeitar os direitos humanos e seu dever de adotar disposição de direito interno necessária a tornar efetivos os direitos e liberdades previstos da Convenção Americana de Direitos Humanos (CADH), respectivamente nos artigo 1.1. e artigo 2.

Nos parágrafos 41-44 da sentença, a CIDH considerou que são inadmissíveis as disposições de anistia, de prescrição e o estabelecimento de excludente de responsabilidade que pretendam impedir a investigação e a sanção dos responsáveis pelas violações graves de direitos humanos, tais como a tortura, execuções sumárias, arbitrárias e extrajudiciais e os desaparecimentos forçados. Tais disposições conduzem à falta de defesa das vítimas e a perpetuação da impunidade, na medida em que não permitem a identificação dos indivíduos responsáveis pelas violações dos direitos humanos por impedirem a investigação e o acesso à justiça. Ademais impedem que vítimas e familiares conheçam a verdade, consigam a imputação dos atos sofridos aos responsáveis e sua sanção, e recebam a reparação correspondente.


Neste caso histórico, a CIDH reconheceu a manifesta incompatibilidade entre as leis de auto-anistia e a CADH, afirmando que essas leis carecem de efeitos jurídicos e não podem continuar a representar um obstáculo para a investigação dos fatos, identificação e sanção dos responsáveis. A legalidade das leis de anistia no Direito interno não afastam sua condição de ilícito internacional, por manifesta incompatibilidade com o Direito Internacional dos Direitos Humanos, acarretando a impunidade e a injustiça.

No caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile (2006)[iii], a CIDH reiterou muitas de suas considerações feitas em Barrios Altos. De modo mais específico no parágrafo 105 e seguintes, abordou a impossibilidade de anistia a crimes de lesa humanidade, lembrando as resoluções da Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) 2583 (XXIV), de 1969, e 3074 (XXVIII), de 1973, assim como jurisprudências de tribunais penais internacionais (Nuremberg, Tóquio, Ruanda e Ex-Iugoslávia). Deste modo, a CIDH reconhece que os crimes contra a humanidade incluem a comissão de atos desumanos, tais como o assassinato, cometidos em um contexto de ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil, e trazem consigo a responsabilidade penal individual.

De acordo com as referidas resoluções da ONU, os crimes contra a humanidade, onde quer que ocorram e qualquer que seja a data em que foram cometidos, serão objeto de um investigação, e as pessoas contra as quais existam provas de culpabilidade na comissão de tais crimes serão buscadas, detidas, processadas e, no caso de serem declaradas culpadas, sancionadas. Os Estados não devem adotar medidas legislativas ou quaisquer outras que possam violar as obrigações internacionais que contraíram a respeito da identificação, detenção, extradição e sanção dos culpáveis de crimes contra a humanidade.

De modo expresso, a CIDH estabeleceu que a adoção e aplicação de leis que outorgam anistia por crimes contra a humanidade impedem o cumprimento das obrigações supra mencionadas. Ademais, reconheceu que a proibição de cometer crimes de lesa humanidade é uma norma de ius cogens[iv](ou seja normas imperativas de Direito Internacional), e sua violação é obrigatoriamente penalizada.

No caso La Cantuta vs. Peru (2006)[v], a CIDH considerou que diante da natureza e gravidade dos fatos, e se tratando de um contexto de violação sistemática de direitos humanos, a necessidade de erradicar a impunidade se apresenta perante a comunidade internacional como um dever de cooperação interestatal. O acesso à Justiça constitui norma imperativa de Direito Internacional e, como tal, gera obrigações erga omnes para os Estados de adotar as medidas que sejam necessárias para não deixar as violações impunes, seja exercendo sua jurisdição para aplicar seu Direito interno e o Direito Internacional para julgar e sancionar os responsáveis por violações desta índole, seja colaborando com outros Estados que o façam ou procurem fazer, por exemplo, mediante extradição.

Em face da jurisprudência da CIDH, é importante que o Brasil atente para o fato de que a responsabilidade internacional do Estado pode residir em qualquer ato ou omissão de quaisquer poderes ou agentes do Estado, seja do Legislativo, do Judiciário ou do Executivo. Logo, caso o Judiciário atribua efeitos à Lei de Anistia que impeçam o cumprimento das obrigações do Estado de garantir o acesso à Justiça como acima mencionado, o Brasil responderá perante o Sistema Interamericano de Direitos Humanos (SIDH)[vi].

Em 27 de outubro de 2008, durante a 133ª sessão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ocorreu uma audiência em que o governo brasileiro deu explicações perante à mesma, em Washington, a respeito da Lei de Anistia, seus reflexos e consequências. O pedido foi motivado pela organização não-governamental CEJIL (sigla em inglês para Centro pela Justiça e o Direito Internacional), para quem o Brasil interpreta "equivocadamente" a lei, pois permitiu a anistia de quem torturou durante o regime militar (1964-1985).


O peticionário, procurador Marlon Weichert, defendeu que a referida interpretação afronta a jurisprudência de cortes internacionais, e que os ilícitos, ocorridos durante a ditadura brasileira, configuraram graves violações de direitos humanos cometidas por agentes do Estado, num padrão sistemático e generalizado de perseguição contra parcela da população civil, caracterizando-se como crimes contra a humanidade, os quais são imprescritíveis[vii].

A audiência pública não teve caráter deliberativo ou condenatório e, sim, de uma primeira discussão informativa. Todavia, fica aberta a possibilidade de que o SIDH receba interpelações específicas solicitando a condenação do Brasil, caso o país não consiga demonstrar efetivamente que os três poderes do Estado (Legislativo, Executivo e Judiciário) em suas respectivas competências estão respeitando os compromissos internacionais.

Neste contexto, alguns desenvolvimentos em âmbito nacional serão cruciais para o início ou não de um processo contra o Brasil no âmbito interamericano, na medida em que, na sua maioria, estão em jogo a consideração de dois impedimentos para a persecução penal dos crimes cometidos durante a ditadura — a anistia e a prescrição —, os quais já foram utilizados pelo Poder Judiciário para impedir investigações no passado. Como exemplo, com base na referida interpretação errônea da Lei de Anistia, podem ser citados o caso do arquivamento do inquérito para apurar as circunstâncias do homicídio de Vladimir Herzog (STJ, 1993) e o caso do Rio-Centro, em que foi declarada extinta a punibilidade do fato delituoso (STM, 1988).

O Ministério Público Federal (MPF), por considerar que há semelhança da situação brasileira com aquela analisada no Caso Almonacid Arellano vs. Chile, iniciou em 2007 a apresentação de pedidos de investigações e processos penais junto aos órgãos competentes do próprio Ministério Público. Desses pedidos, dois foram arquivados com fundamento na prescrição, a saber: o pedido de reabertura do caso Vladimir Herzog (TJSP, HC 131.798-3) e de apuração da morte de Luiz José da Cunha (Processo 2008.81.61.012372-1, 1 Vara Criminal Federal da 1ª Subseção Judiciária do Estado de São Paulo).

O MPF propôs também uma Ação Civil Pública (Processo 2008.61.00.011414-5, 8 Vara Civil de São Paulo) requerendo a declaração de responsabilidade civil pessoal de dois ex-comandantes do exército — Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel — responsáveis pelo funcionamento do DOI/Codi de São Paulo. O Estado foi arrolado como réu nesta ação, por sua omissão em contribuir com a verdade, e na sua impugnação defendeu os interesses dos ex-torturadores e requereu a extinção do processo sob alegação de prescrição, anistia e, ainda, de que o Direito brasileiro não reconhece a figura dos crimes contra a humanidade. Justamente neste caso, verifica-se o parecer da Advocacia-Geral da União (AGU)[viii] que considerou perdoados os crimes de tortura, e se tornou objeto de polêmica, em face das manifestações divergentes em sede ministerial.

O Ministério da Justiça e a Secretaria Especial de Direitos Humanos defendem que a Lei da Anistia não abrange os agentes do Estado que cometeram tortura durante o regime militar brasileiro (1964-1985). Afirmam, ainda, que o crime é imprescritível, citando tratados assinados pelo Brasil com outros países e a jurisprudência de cortes internacionais. Já o Ministério da Defesa e a AGU argumentam que a anistia brasileira foi de "mão dupla", ou seja, "ampla, geral e irrestrita", o que perdoaria os crimes cometidos pelos agentes da repressão. Até mesmo o Presidente do STF declarou que a responsabilização dos crimes da ditadura é um tema que precisa ser encerrado.

Além das iniciativas do MPF, cumpre ressaltar as ações propostas por famílias de vítimas e pelas próprias vítimas do regime ditatorial. Assim, pode-se mencionar a ação declaratória proposta pela família Merlino contra Carlos Alberto Ustra (Processo 583.00.2007.241711, 42 Vara Civil, distribuída em 22/10/2007); e (ii) a ação declaratória ajuizada pela família Almeida Teles contra Carlos Alberto Brilhante Ustra (Processo 583.00.2005.202853, 23ª Vara Civil, distribuída em 01/12/2005), em que se requer que seja declarado que existe entre as partes relação jurídica de responsabilidade civil, nascida da prática de tortura, geradora de danos morais.


Nesta última ação, o juiz decidiu que: a) a tortura, mesmo em período de exceção constitucional e de atentados contra a segurança do Estado, era inadmissível, à luz do Direito Internacional, vinculante para o país; b) na época dos fatos, o ordenamento jurídico nacional, pela Lei 4.898/65, previa a responsabilidade pessoal, não afastada pelo artigo 107 da Constituição Federal então em vigor, de quem exercia cargo, emprego ou função pública, inclusive de natureza militar, por atos que implicassem atentado à incolumidade física do individuo e a submissão de pessoa sob sua guarda ou custodia a vexame ou a constrangimento não autorizado em lei; c) a Lei da Anistia não atinge direitos de particulares, que possam ser exercidos na esfera civil; d) tortura, ato ilícito absoluto, faz nascer, entre seu autor e a vítima, uma relação jurídica de responsabilidade civil, pela incidência da Carta da ONU de 1945, do artigo 5 da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948, do artigo 159 do Código Civil de 1916 e da Lei 4.898/65; e) a ação declaratória é meio processual adequado para declarar a existência da relação jurídica de responsabilidade civil; f) dada a imprescritibilidade da ação voltada à indenização por violação de direitos humanos fundamentais, é impertinente argumentar com falta de interesse processual por decurso do prazo prescricional para a ação condenatória.

Em face do cenário descrito, o Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) propôs uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental “Incidental” (ADPF-153[ix]) questionando o parágrafo 1º do artigo 1º da Lei de Anistia, portanto, a caracterização de crimes conexos dada aos crimes de qualquer natureza, relacionados com crimes políticos ou praticados por motivação política. Na exordial, descreveu-se a existência de séria controvérsia constitucional a respeito de lei federal anterior à Constituição, a partir das diversas opiniões verificadas no âmbito da sociedade e das autoridades brasileiras.

O Conselho Federal da OAB defende que é irrefutável que não poderia haver, e não houve, conexão entre os crimes políticos, cometidos pelos opositores do regime militar, e os crimes comuns contra eles praticados pelos agentes da repressão e seus mandantes no governo. A conexão só pode ser reconhecida, nas hipóteses de crimes políticos e crimes comuns perpetrados pela mesma pessoa (concurso material ou formal) ou por várias pessoas em co-autoria. Assim, a anistia abrange apenas os autores de crimes políticos ou contra a segurança nacional e, eventualmente, crimes comuns a eles ligados pela comunhão de objetivos.

Entre os preceitos fundamentais violados pela interpretação questionada da Lei de Anistia, o Conselho Federal da OAB arrolou: a isonomia em matéria de segurança; a não ocultação da verdade; os princípios democrático e republicano; a dignidade da pessoa humana e do povo brasileiro. Assim, requereu a procedência do pedido de mérito para que o STF dê a Lei de Anistia uma interpretação conforme à Constituição, de modo a declarar, à luz dos seus preceitos fundamentais, que a anistia concedida pela citada lei aos crimes políticos ou conexos não se estende aos crimes comuns praticados pelos agentes da repressão contra opositores políticos, durante o regime militar (1964-1985).

Até o momento, a Advocacia do Senado se pronunciou alegando inépcia da inicial por impossibilidade lógica e jurídica do pedido, ausência de interesse de agir e afastando os argumentos de mérito apresentados na inicial pelo Conselho Federal da OAB. Aguarda-se a juntada do parecer do Advogado Geral da União aos autos do processo.

Conforme mencionado ao tratar dos “critérios interamericanos”, uma das obrigações dos Estados é cooperar com os demais Estados na investigação, no ajuizamento e na sanção daqueles que cometeram crimes contra a humanidade. Desta forma, é fundamental ainda mencionar o julgamento pelo STF do pedido de extradição (EXT/974[x]), formulado pelo governo da República Argentina em relação ao nacional uruguaio envolvido com a prática de desaparecimento forçado na Operação Condor em território argentino, em 1976.


O Ministro Eros Grau, que anteriormente havia votado pelo indeferimento do pedido, pediu vista do processo em outubro de 2008. Ele é relator da ADPF-153, e explicou que quer examinar o pedido de extradição juntamente com o teor dessa ADPF, por considerá-los conexos. Assim, antes que o julgamento fosse suspenso por um pedido de vista, passou-se de 4 votos a 1 pelo indeferimento da extradição, a 5 votos a 2 pelo deferimento parcial, não obstante as razões dos votos estejam longe de se fundamentar no Direito Internacional. A respeito deste caso, deve-se notar que a vítima de Cordero anunciou em outubro de 2008 que levará o Brasil à CIDH caso o STF não defira a extradição (La República Uruguay, 30 de octubre de 2008).

A confluência entre o Direito Internacional dos Direitos Humanos e o Direito Internacional Penal é, portanto inegável. Além das obrigações dos Estados derivadas dos compromissos assumidos no âmbito internacional, o Direito Internacional Penal desenvolveu-se e o individuo se tornou também pessoa responsável internacionalmente pela comissão de crimes. Assim, não só o Brasil pratica um ilícito internacional ao não julgar devidamente os crimes de tortura e crimes contra a humanidade cometidos em território brasileiro, mas também os criminosos podem ser julgados por outros Estados, a partir do princípio da justiça internacional. Este poderá ser o caso de iniciativas que se despontam na Itália (investigações a respeito dos seqüestros dos ítalos-argentinos Horacio Domingo Campigia e Lorenzo Ismael Viñas, considerados desaparecidos políticos), na França (investigações a respeito de Jean Henry Raya), e na Espanha (investigação a respeito de Miguel Sabat Nuet).

O tema da anistia aos torturadores manter-se-á, portanto, na pauta nacional e internacional neste ano de 2009 em razão da interação entre o Direito Internacional e o Direito interno. Atrelado ao debate, a sociedade brasileira percebeu nos últimos anos, uma efervescência de seminários e publicações a respeito do direito à memória e à justiça. No âmago da discussão residem a internacionalização dos direitos humanos e os consequentes compromissos assumidos pelo Estado brasileiro perante o Direito Internacional.

Em 2009, a sociedade brasileira deve resolver se permitirá que as pessoas que sofreram graves violações de direitos humanos no período ditatorial busquem a responsabilidade daqueles que as cometeram[xi]. Para a Justiça, reconhecê-los como “heróis” em nada afasta o descumprimento de normas internacionais. O correto é, pois, reconhecê-los como “vítimas” de assassinatos, torturas, desaparecimentos forçados, violência sexual e outros atos desumanos, e garantir a suas famílias e às pessoas que sobreviveram o acesso à Justiça e a responsabilização daqueles que cometeram os crimes que os vitimaram. Caso contrário, o Brasil se tornará responsável internacionalmente por agir de modo contrário ao Direito Internacional.

Tal contrariedade decorre não somente da vasta gama de normas internacionais acerca da proteção da pessoa humana e da responsabilidade internacional do Estado acima mencionados, mas também da busca de equílibrio entre os valores de justiça e de paz pelo Direito Internacional.

Verifica-se que, em alguns casos, o Direito Internacional não se manifestou profundamente acerca da proibição da anistia total, sobretudo, em face dos sistemas de Justiça transicional em que comissões de verdade, comissões de paz e anistias foram criadas (como na África do Sul). Contudo, traçar paralelos com o caso brasileiro não parece adequado porque, no Direito Internacional, verifica-se uma dialética constante entre os valores de justiça e de paz, pois apesar de o ideal ser o equilíbrio entre este dois valores, muitas vezes nas situações práticas concessões são necessárias, a fim de ser obter uma solução para as crises.

Na maior parte dos casos — quando há concurso entre os valores — verifica-se que a preocupação com a paz tem tido a primazia, justificando-se tal postura ao se dizer que a manutenção dela seria um pré-requisito para a obtenção de justiça. Assim, os sistemas de Justiça transicional poderiam ser vistos como a prevalência do valor paz sobre o valor Justiça quando sociedades estão saindo de conflitos ou crises, mas, no momento em que a paz é estável, dever-se-ia buscar o valor Justiça e efetivar os valores mais fundamentais do sistema internacional, o que implica trazer à justiça pessoas que violaram gravemente os direitos que emanam da dignidade humana, quaisquer que tenham sido os posicionamentos ideológicos que as levaram a agir assim. Até porque os direitos humanos implicam uma ética de meios e, assim, a escolha do meio a ser utilizado para atingir a um fim (por mais louvável que seja este) deve ser uma escolha ética e que respeite o ser humano.


A total proteção da dignidade humana e dos direitos que dela decorrem é um dos pilares de um Estado Democrático de Direito, como o Brasil, que deve não somente agir de forma congruente a seus fundamentos internos[xii] mas também respeitando suas obrigaçoes internacionais.


[i] RICOEUR, Paul. O justo ou a essência da justiça. Trad. Vasco Casimiro. Instituto Piaget: Lisboa, 1995, p. 35-44, 175-182.

[ii] CIDH. Caso Barrios Altos vs. Perú. Fondo. Sentencia de 14 de marzo de 2001. Serie C, n. 75. E, Interpretación de la sentencia de fondo, 3 de septiembre de 2001. Serie C, n. 83.

[iii] CIDH. Caso Almonacid Arellano y otros vs. Chile. Excepciones preliminares, fondo, reparaciones y costas. Sentencia de 26 de septiembre de 2006. Serie C, n. 154.

[iv] Norma imperativa do Direito Internacional, hierarquicamente superior a qualquer outra que não apresente as mesmas características, de acordo com o artigo 53 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados.

[v] CIDH. Caso La Cantuta vs. Perú. Fondo, reparaciones y costas. Sentencia de 29 de noviembre de 2006. Serie C, n. 162.

[vi] Cumpre destacar, que o Brasil pode ser também responsabilizado internacionalmente em outras instâncias, como, por exemplo, com base na Convenção contra a Tortura e outros Tratamentos ou Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes que impõe a obrigada de levar à justiça torturadores.

[vii] As falas dos peticionários, Procurador Marlon Weichert (Ministério Público Federal) e advogada do CEJIL, e do representante do Estado brasileiro, Sr. Paulo Abrãao Pires Jr., podem ser consultadas em http://www.cidh.org/Audiencias/select.aspx

[viii] O parecer da AGU foi anexado ao processo que corre na Justiça de São Paulo, a pedido do Ministério Público, que pede a responsabilização dos militares reformados Carlos Alberto Brilhante Ustra e Audir Santos Maciel, que comandaram o DOI-Codi, em São Paulo, na década de 1970, por desaparecimento, morte e tortura de 64 pessoas, como também a publicidade a documentos do período.

[ix] Processo STF: ADPF/153 – Arquição de Descumprimento de Preceito Fundamental. Min. Rel. Eros Grau. Argte.: Conselho Federal da OAB. Adv.: Fábio Konder Comparato e outro(a)(s), Rafael Barbosa de Castilho. Argdo.: Presidente da República. Adv. Advogado-Geral da União. Argdo.: Congresso Nacional. Protocolado em 21/10/2008.

[x] STF: EXT/974. Min. Rel.: Marco Aurélio. Reqte.: Governo da República da Argentina. Extdo.: Manoel Cordeiro Piacentini ou Manuel Cordero Piacentini ou Manuel Cordero. Distribuido em 22/03/2005. Ver Informativos do STF n. 519 e 526 (Extradição: Desqualificação do crime de sequestro e morte presumida).

[xi] Em 12 de agosto de 2008, o Presidente Sr. Lula da Silva discursou: “Nós precisamos tratar um pouco melhor nossos mortos […] Toda vez que nós falamos dos estudantes que morreram, dos operários que morreram, nós falamos xingando alguém que os matou, quando na verdade esse martírio nunca vai acabar se a gente não […] a transformar os nossos mortos em heróis e não em vítimas”.

[xii] A dignidade humana é consagrada no inciso III do artigo 1º da Constituição Federal como um dos fundamentos do Estado Brasileiro.

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