SEGUNDA LEITURA

O papel dos servidores na administração da Justiça

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

5 de julho de 2009, 11h35

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Os servidores do Poder Judiciário são pouco lembrados quando se fala da administração da Justiça. Mas, discretamente, desempenham um papel essencial na boa prestação jurisdicional. É possível dizer, sem medo de errar, que eles são fundamentais para o bom funcionamento dos serviços. A organização judiciária atribui-lhes nomes diversos. Escrivão, chefe de secretaria, diretor, cartorário, serventuário, escrevente, ajudante, técnico judiciário, analista  judiciário e por aí vai. 

No passado, a hierarquia era rígida e os nomes estranhos. Escrivão da Coroa era um cargo de destaque. Já o Beleguim, agente encarregado de efetuar as prisões, era de hierarquia menor. Oficiais de Justiça gozavam de um prestígio social enorme. Mas, estranho mesmo, eram os chamados Quadrilheiros que, segundo Gabriel Viana, “eram tirados dentre cada 20 moradores do lugar e serviam por três anos. Prestavam juramento perante a Câmara e eram obrigados a informar-se em sua quadrilha si se praticavam furtos e outros crimes” (Organização e distribuição da Justiça no Brasil, Revista do STF, v. XLIX, 1923, p. 9).

Tentemos fixar um perfil desses profissionais nos tempos mais recentes, dividindo em duas fases: antes e depois de 1990. De 1960 até a metade dos anos 1980, era comum os jovens iniciarem sua vida profissional aos 12 ou 13 anos, auxiliando em um cartório. Aí se iniciava a formação prática, que se complementava com a jurídica, mais tarde. Muitos se tornavam juízes, citando, com orgulho, aqueles primeiros anos de trabalho.

Naqueles tempos, raros funcionários de cartório tinham graduação em Direito. Geralmente, só o Escrivão era bacharel. Eram quase todos homens, pessoas simples, de trato cordial e muito dedicadas ao seu serviço. Adoravam quando um advogado lhes pedia uma explicação. Era como a confissão de que a prática era tão ou mais importante do que a teoria.

Os servidores antigos cultivavam o hábito de contar casos forenses. Apreciavam os juízes rigorosos, aqueles que não hesitavam em determinar a prisão de alguém. Sentiam-se parte desse poder. Acompanhavam de longe as suas carreiras e adoravam contar as excentricidades, geralmente enriquecidas com um acréscimo de quem narrava.

Na época, cartorários raramente avançavam nos estudos. Exceção à regra foi Alípio Silveira, funcionário do TJ de SP, homem simples no falar e no vestir, mas autor de dezenas de obras como Hermenêutica Jurídica, 4 volumes, Ed. Leia Livros, e a pioneira Prisão-Albergue e Regime Semi-Aberto, Ed. Brasilivros, 1981.

Da época em que fui promotor (1969-1979), fixei na memória algumas passagens engraçadas. Certa feita, chegando pela manhã ao fórum de uma pequena comarca, escutei a campainha usada pelo juiz, cujo gabinete ficava no andar de cima. Com um toque ele chamava os cartorários que ficavam no térreo. Subi para encontrá-lo e, ao entrar no gabinete, encontrei um jovem funcionário, sentado na cadeira do juiz, pés em cima da mesa, que me disse: “traga-me um copo d´água”. Quando o coitado me reconheceu, ficou pálido e, sem voz, saiu a passos rápidos. A tarde veio ao meu gabinete. Visivelmente nervoso, gaguejava nas explicações. Interrompi, dizendo: “não sei do que você está falando”. Aliviado, o rapaz, ótimo funcionário, saiu agradecido.

Ao ingressar na Justiça Federal (1980), passei a conviver com servidoras, algo até então incomum. E aí tive que reciclar o comportamento. Mais delicadeza no trato, mais atenção aos detalhes, à apresentação da Vara e às comemorações (aniversários, etc.). Críticas só com muita habilidade. Adaptei-me sem dificuldades.

Desta época, lembro-me de um caso pitoresco. Em uma capital do sul do país, um funcionário foi acusado de ter levado a namorada, na tarde de um domingo, para a secretaria da Vara para um namoro bem íntimo. Instaurou-se sindicância. Interrogado, afirmou ao juiz: “Doutor, tudo isso é um terrível engano. Eu estava passeando com minha namorada no centro da cidade e me lembrei do atraso no andamento dos processos. Preocupado com o serviço, fui com ela à Justiça Federal e enquanto eu fazia ofícios urgentes, ela ficou me aguardando na sala de testemunhas”.

Em 1989, tive a percepção de uma grande mudança. Uma senhora bem tratada, arquiteta de formação, apresentou-se como “auxiliar operacional”, o que significava serviços simples, como servir o café. Ali percebi que o tempo dos servidores humildes havia acabado. Aqueles que exerciam atividades mais modestas e assim sustentavam seus filhos começaram a perder espaço. A classe média, através de concursos, começou a ocupar os cargos mais simples do Judiciário. Entristeci-me ao ser testemunha da injusta ordem social brasileira.

A partir dos anos 1990, os concursos públicos para as atividades forenses tornaram-se rigorosos. E cada vez mais disputados. Vencimentos mais atraentes e busca de segurança mudaram o perfil dos candidatos. O nível tornou-se cada vez mais elevado. Hoje em dia, não é raro servidores com títulos acadêmicos. Alguns são mestres e até doutores. Isto fez com que, atualmente, o relacionamento juízes/servidores tenha se tornado mais democrático. A liderança do juiz passou a ser exercida mais no exemplo e na conquista do que na simples hierarquia.

O papel dos funcionários também se transformou. De meros executores de ordens, passaram a auxiliar com projetos de decisões e a ocupar cargos novos e importantíssimos. Especialistas em recursos humanos, informática e em licitações, estatísticos, gestores ambientais, agentes de controle interno e outras tantas atividades essenciais e outrora desconhecidas.

À parte os casos engraçados ― que alegram a vida ― no passado e no presente, conheci servidores exemplares. Diferentes, mas grandes ao seu tempo. Na presidência do TRF-4 (2003-2005) constatei a riqueza humana existente no tribunal. Em meio a dezenas de projetos, com eles festejei todas as vitórias e participei de atividades prazerosas, como a prática de raffting e de cavalgada. Até hoje celebramos a vida em encontros trimestrais.

Do que foi dito, o que importa é registrar que ontem, hoje e sempre, os servidores do Judiciário são essenciais na administração da Justiça. Bem por isso, em 2008, o TRF-4 deu à sua biblioteca o nome de Ivo Barcelos da Silva, servidor exemplar que foi diretor-geral do tribunal. É exemplo a ser seguido. Bons servidores devem ser reconhecidos e homenageados.  

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