Memória democrática

Grupo de Goffredo agiu antes no impeachment de Collor

Autor

5 de julho de 2009, 10h41

Em nosso último encontro, há alguns meses, o professor, com seu humor indefectível, já me esperava sentado à grande mesa de seu escritório. Ao final da conversa, brincou: “Agora vou dirigir meu Fusquinha”. Não entendi. “Sim, agora uso meu Fusquinha para me locomover.” E pediu-me para ajudá-lo a pegar seu andador, postado a alguns metros. Ainda arrematou: “Vou de metrô”. Referia-se ao elevador, que o transportava do 12º andar (residência) para o 13º (escritório), no edifício na Avenida São Luiz, no centro de São Paulo. Nos últimos anos, o jurista Goffredo da Silva Telles Jr., que morreu na semana passada aos 94 anos, não costumava sair do prédio em que vivia e trabalhava. Mesmo que fosse para receber as inúmeras homenagens que lhe eram prestadas por escolas, associações e entidades de todo o gênero. 

Mestre Goffredo não era homem de queixumes. Mas vivia incomodado com um fato omitido dos livros recentes sobre o período da ditadura militar (1964-1985): a Carta aos Brasileiros, um manifesto-aula que pregava o fim do regime de exceção, escrito e lido por Goffredo nas Arcadas do Largo de São Francisco em agosto de 1977. A Carta foi um marco para o início do processo de abertura política, que anos depois redundaria na volta dos exilados, na eleição para governadores, na campanha das Diretas Já e na elaboração de uma nova Constituição. Quando o documento completaria 30 anos, em 2007, tive o privilégio de organizar uma
pesquisa, com depoimentos de juristas, historiadores e jornalistas, para debater sua importância histórica e atualidade. (Clique aqui para comprar o livro Estado de Direito Já!)

A vida pública de Goffredo começou aos 17 anos, quando ele se alistou como soldado da Revolução Constitucionalista. No ano seguinte, entrou no curso de  Direito na Faculdade do Largo de São Francisco. Ainda estudante, descrente da polarização capitalismo contra comunismo, alinhou-se com o integralismo. Depois se aproximou do campo progressista. Deputado constituinte em 1946, destacou-se pela defesa da Amazônia. Inicialmente, apoiou o golpe de 1964 e redigiu uma proposta de Constituição, com teor corporativista. Em junho de 1968, quando os estudantes reivindicavam mudanças no ensino e o fim da ditadura, ministrou aulas abertas no pátio das Arcadas. Depois do AI-5, postou-se firme na oposição. Com a Carta aos Brasileiros, tornou-se uma referência de probidade e luta pela ética na política.

Em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição, mestre Goffredo liderou a fundação do Círculo das Quartas-feiras, formado por um grupo de estudantes que passou a se encontrar semanalmente em torno dele. Era um núcleo informal de debates jurídicos e literários, que se reuniu por vários anos, com destacada atuação política. Foi sua a iniciativa de impetrar o primeiro mandado de segurança coletivo da história brasileira, em nome de servidores estaduais em greve. Também foi o Círculo que iniciou os primeiros movimentos pelo impeachment do presidente Collor de Mello, logo que seu governo decretou medidas flagrantemente inconstitucionais, como o confisco da poupança.

Goffredo era um narrador de histórias deliciosas. Lembrava que descendia diretamente de João Ramalho, o desbravador português que se tornou marido da índia Bartira e ajudou a fundar e a defender São Paulo de Piratininga. Também falava de seu convívio fraterno, na infância, com alguns dos expoentes da cultura brasileira, como Villa-Lobos (que lhe ensinou a fabricar e empinar pipas) e Tarsila do Amaral (que lhe deu aulas de pintura).

Goffredo tornou-se um símbolo de honradez, de luta pelos direitos humanos, pela liberdade, pela democracia, pela justiça. Talvez tenha sido o professor mais admirado da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco durante todo o século XX. Quem teve o prazer de conhecê-lo, encontrou sempre um homem afável. Das talvez centenas de encontros e conversas telefônicas que tivemos, sempre tive a sensação de ser maior do que eu era. Senti-me engrandecido, gratificado, renascido.

[Artigo publicado originalmente na revista Época, de 6/7/2009]

Autores

  • Brave

    é formado em direito pela USP e em história pela PUC-SP, editor e historiador, é autor, entre outras obras, de "Advocacia Pública - Apontamentos sobre a História da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo".

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!