Mestre em Direito

Protógenes diz que ensinou como pedir impeachment

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21 de janeiro de 2009, 21h03

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Caros Amigos - Decembro - por ReproduçãoAntes de entrar para a Polícia Federal em 1998, o delegado Protógenes Queiroz teve uma carreira de sucesso como advogado. Uma de suas vitórias foi em 1992 quando conseguiu o impeachment do então prefeito de São Gonçalo (RJ), Aires Abdala. Na época, ele era procurador-geral do município.

Segundo o delegado, o advogado Evandro Lins e Silva [1912-2002], que patrocinou o processo de impeachment do ex-presidente Fernando Collor, inspirou-se neste caso para conseguir que a votação no Congresso fosse aberta. Para a estrela da Operação Satiagraha, a lei que regula o impeachment foi uma criação “da ditadura militar”.  Na verdade, a Lei 1.079, do impeachment, é de 1950, durante o governo do general Eurico Gaspar Dutra, no breve hiato democrático entre o fim da ditadura Vargas e o início da ditadura militar pós 1964.

“O doutor Evandro Lins e Silva, no impeachment do Collor, o que fez? Adotou. O processo já estava consolidado. O prefeito tinha que ir pra rua. Aí, no processo do Collor houve a mesma coisa. Perante o Supremo Tribunal Federal consolidou o processo. Percebeu-se que o mais democrático era o voto aberto.”

As revelações do delegado Protógenes Pinheiro Queiroz, que entrou para o hall da fama ao liderar a Operação Satiagraha, fazem parte de longa entrevista concedida à revista Caros Amigos de dezembro. Participou da entrevista uma equipe com tarimbados jornalistas da revista: Mylton Severiano, Marcos Zibordi, Camila Martins, Fernando Lavieri, Palmério Dória, Wagner Nabuco, Renato Pompeu, Bruno Versolato e Amancio Chiodi. Sentindo-se muito à vontade, o inimigo número 1 do banqueiro Daniel Dantas e cavaleiro andante da luta contra a corrupção no Brasil falou de seus grandes feitos desde a infância, passando pela advocacia privada e, evidentemente, como super-delegado da Polícia Federal.

Como advogado, Protógenes garante ter tido grande desempenho. Durante um tempo, ele diz que foi advogado da comunidade francesa do Rio de Janeiro. Chegava a ganhar de US$ 30 mil a US$ 50 mil por mês. “Tem momentos que você cuida da sua vida, tem momentos que você olha e vê que falta muito a construir. Não adianta construir pra si, senão você vai viver numa ilha”, diz o ex-advogado para justificar a entrada na Polícia Federal. "Abandonei a burguesia e fui ser funcionário público".

Em um processo de R$ 60 milhões contra a construtora Queiroz Galvão e o Estado do Rio referente à construção do Metrô do Rio, Protógenes diz que ganhou na primeira e segunda instância. Segundo ele, a ação está no Superior Tribunal de Justiça. A ConJur encontrou no acompanhamento processual processos no STJ patrocinados pelo advogado Protógenes Pinheiro Queiroz, mas nenhum com a Queiroz Galvão.

Protógenes não cita na entrevista entre as suas vitórias como advogado o processo em que atuou em causa própria. Reprovado nos exames físico e psicotécnico para o concurso da PF, o delegado só conseguiu tomar posse graças a uma decisão da Justiça Federal do Rio.

A advocacia e a administração devem ainda ao delegado o conceito de know your client (conheça seu cliente) aplicado hoje no mundo dos negócios. “Por que surgiu o ‘conheça o seu cliente’? Porque o Protógenes começou a prender gerente, diretor, e a discutir, ‘não leve a mal, mas vocês estão sendo indiciados porque, como é que, em sã consciência, aceitam abrir conta de um pipoqueiro com 10 reais e no dia seguinte aceitam 100.000 sem falar ‘você vendeu muita pipoca, hein?’, e não aceito dizer que precisa cumprir metas’. Mas chega um momento que o volume de dinheiro era tão grande, que o gerente passou a entrar no esquema”, afirmou o delegado, revelando que se refere a si mesmo na terceira pessoa quando escreve e fala.

No momento em que o banqueiro Daniel Dantas, preso na Operação Satiagraha, foi libertado pela segunda vez por força de Habeas Corpus concedido pelo ministro Gilmar Mendes, Protógenes diz que teve vontade de prendê-lo pela terceira vez. “Quase que o prendi. Tinha um fato para poder prendê-lo, mas iria criar uma crise. Já tinha manifestação em frente ao Supremo Tribunal Federal, membros dos três poderes um acusando o outro, determinado grupo político querendo criar uma nova situação, um passo atrás”, diz o delegado, esquecendo que só juiz pode mandar prender ou mandar soltar. Delegado cumpre a ordem.


O advogado-delegado mostra que é adepto da teoria do filósofo nazista Carl Schmitt. Para ele, depende apenas do povo para que Dantas fique preso. “No Judiciário ele sai no dia seguinte”, diz.

Leia a entrevista à revista Caros Amigos:

ENTREVISTAÇA / PROTÓGENES QUEIROZ

ENTREVISTADORES: Mylton Severiano, Marcos Zibordi, Camila Martins, Fernando Lavieri, Palmério Dória, Wagner Nabuco, Renato Pompeu, Bruno Versolato e Amancio Chiodi.

Fotos Amancio Chiodi

O delegado Protógenes Queiroz nos deu uma entrevista de seis horas, de 14h30 a 20h30, e saiu lamentando que faltou contar mais coisas, por exemplo a máfia russa e o magnata Boris Berezovsky. Por meia hora, ainda conversou conosco enquanto esperava o taxi. Discorreu que Daniel Dantas, o banqueiro, pode mandar muito, mas é apenas um “braço” de algo mais poderoso – quem sabe o Citigroup? Gravado mesmo, contou histórias arrepiantes. Algumas frases dele ao acaso colhidas dão idéia: “É muita picaretagem!” “A mentira perdura pouco, a verdade é eterna.” “Você vai investigando, vai dar nas construtoras, na concorrência pública, e nos políticos.” E sobre um dos casos cabulosos que investigou ficou este diálogo bastante sugestivo:

PROTÓGENES — QUEREM ESSA HISTÓRIA?

TODOS — SIM!

PROTÓGENES — VOCÊS NÃO VÃO DORMIR DIREITO.

Mylton Severiano — Vamos começar esquentando as turbinas. Onde nasceu, a infância, os pais.

Sou filho de branco com preto. Nasci em 20 de maio de 1959, em Salvador. Meu pai era da Marinha de Guerra, ex-combatente da Primeira Guerra Mundial. Aos meus três meses, foi para o Rio, participar de uma intervenção. Era o almirante Protógenes Guimarães. Por isso meu nome. Minha mãe embarcou num avião da FAB, eu e meus outros nove irmãos. Primeiro fui morar num bairro de Niterói, Barreto, num sobrado de frente pra praia.

Mylton Severiano — Você estudou em Niterói?

Isso. Tinha uma igreja do Barreto, a gente tinha que assistir a missa, participar das festas. Eu gostava, era criança, tem que estudar, ir para a igreja, brincadeira de rua.

Marcos Zibordi — A família era como?

Minha mãe era de descendência africana, escravos, meu pai de portugueses, espanhóis, branco de olhos azuis, uma semelhança com aquele artista, Paul Newman. Meu pai é abandonado pela esposa, e minha mãe contratada para cuidar dos filhos. Aí ele se apaixona. Ela estava com quinze anos, e era muito bonita. Meus irmãos por parte de pai chamavam minha mãe de mãe e a mãe deles pelo nome, devido à relação materna bem forte. A família do meu pai tinha fazenda no interior da Bahia. Meu bisavô era padre: Antônio Pinheiro de Queiroz. Fundou uma cidade, Conceição de Oliveira dos Campinhos.

Marcos Zibordi — Estudou em escola particular?

Não. Meu não gostava. Escola pública era melhor. No primário fui aluno razoável. No ginásio, você já começa a ser um pouco peralta. Sempre fui ativo. Meu pai era militar, lembremos, imaginava que o país poderia entrar em guerra e você teria que sobreviver sozinho. A gente tinha que plantar guandu, aipim, e colher. Eu adorava colher aipim, puxar a raiz, era divertidíssimo. Não gostava do guandu, aquela vagem machucava a mão. Minha mãe, semi-analfabeta, mas de um coração muito forte, era ligada a ajudar as pessoas, e meu pai mandava até fazer roupa. Sei sentar numa máquina e fazer um short, uma camisa. Em casa a gente ajudava a mãe a cortar roupas, pregar botão, fazer bainha. Você chegava ralado, minha mãe: “vai pra máquina cerzir, essa roupa tá boa ainda”. E também uma coisa peculiar de meu pai: ser bem informado. Antes do jantar, ele colocava o rádio sobre a mesa, tínhamos que ouvir a Ave Maria, a Voz do Brasil e depois o Repórter Esso. A voz do homem tá na minha memória até hoje.

Mylton Severiano — Heron Domingues.

Exatamente, depois é que íamos fazer a ceia, e no dia seguinte tínhamos que ler os jornais. Para ter o hábito. Eu lembro, tinha sete, oito aninhos, ir no jornaleiro e trazer aquele saco de jornais. E se precisava de dinheiro para um cinema, tinha que vender saco, garrafa. Deliberadamente meu pai não dava mesada, não. E passa a infância, vou para um colégio público, em 1970. Tinha dez, onze aninhos. O que mais me despertou foi eletrônica e eletricidade.


Mylton Severiano — Você foi da UNE?

Fui delegado da UNE, em 1980.

Mylton Severiano — E foi para o Direito deliberadamente?

Sim.

Mylton Severiano — Mas tinha despertado para a política, esquerda, direita?

Não, eu tinha consciência do que era certo, errado, meu pai era um crítico do regime.

Camila Martins — Estava na ditadura militar?

Ele homem do regime, mas crítico. Dizia que depois de Castelo Branco [chefe do primeiro governo militar, 1964-1966] não existia um governo militar que prestasse, que estavam cometendo muito excesso.

Mylton Severiano — E você pendeu para que lado?

No colégio, jogava futebol escondido, meu pai dizia que era coisa de vagabundo.

Fernando Lavieri — Jogava bem?

Bem. Meu apelido no Niteroiense era Ferretão: magro, comprido. Um meio-campo avançado. E no colégio Hélder Câmara me desperta a atenção um professor de geografia chamado Milton, usava bolsa de couro, barbichinha. Um contestador. Falei “o canal é esse, área humana”. Montamos um minigrêmio. E, numa feira de ciências, a professora Marlene ficou orgulhosa, era a empreendedora, chamou autoridades, inauguração de novas salas, e destinou uma para o nosso trabalho. De madrugada, pichamos o muro: Terrorismo é ditadura que mata e tortura. Já causou um estrago danado. Aí tá lá o senador Saturnino Braga, o prefeito, comandante do Exército, da Polícia Militar, Marinha. E chega na nossa sala, trancada. Quando ela pediu para abrir, era uma sala de tortura. Tinha pau-de-arara com boneco, boneco com fio na cabeça. A professora “ah, meu Deus! Desculpe! Fecha tudo isso aí”. E minha turma espalhando jornalzinho, o Alerta Geral.

Marcos Zibordi — O que estava escrito?

Pedíamos eleição direta, perguntávamos por que presidente general, pedíamos a melhoria do ensino, que tinha que ser público. E todo o mundo se mandou, a polícia atrás. Chegou a professora Marlene, meu pai falou “menino, você tá louco, os professores vão ser presos, cadê o jornal que você fez?”. Deu quase expulsão.

Mylton Severiano — Você tinha 17 anos?

É, 1976.

Marcos Zibordi É nessa idade que começam esses comunistas…

Exatamente. Vou estudar na Faculdade Brasileira de Ciências Jurídicas, particular. Meu pai acreditando que tava fazendo engenharia. Tinha uma intervenção no diretório, comecei a contestar. Ouvi colegas dizer “você vai encontrar espaço para discutir no Centro Acadêmico da Nacional”.

Mylton Severiano — O Cândido Oliveira?

É, eu atravessava a Praça da República, ia conversar, comia no bandejão. E teve o congresso da UNE em Cabo Frio.

Fernando Lavieri — Seu pai sabia?

Meu pai, quando descobriu que eu tava fazendo Direito, corta a mensalidade. Tinha o crédito educativo, fui pra Caixa Econômica fazer, com minha mãe.

Marcos Zibordi — Por que ele não queria?

Dizia que advogado não presta. É, igual Lênin. Advogado, nem do partido, e ele era advogado. Mas entendi que dentro da advocacia ia contribuir mais que na área tecnológica. Estagiei na Defensoria Pública três anos. Saía dez, onze da noite. Ficava penalizado, as pessoas com senha, estavam sendo despejadas. E tenho contato com movimentos sociais, associação de moradores, começa a se formar um movimento social. As pessoas se organizando pra reivindicar. Conheço o pessoal da Contag [Confederação de Trabalhadores na Agricultura], para advogar para a Via Campesina, Sindicato dos Operários Navais, esse caminho até 1987, advogando para associações, partidos, PDT, PT…

Camila Martins — Chegou a se filiar?

Nunca quis, era me rotular. Eu tinha envolvimento com outros partidos, e uma formação forte dentro do Partido Comunista Brasileiro. Em 1982, o grupo da clandestinidade a que eu pertencia eram todos velhos comunistas, Hércules Correa, que faleceu há pouco. Obrigatoriamente você tinha que ler O Capital, de Karl Marx. E engraçado: hoje, com essa crise, onde é que os capitalistas estão lendo fundamentos para corrigir o erro? Está sendo obrigatória a leitura de Marx, Engels, Hegel. As corporações estão recomendando que seus diretores leiam.


Mylton Severiano — Vamos para sua ida para a Polícia Federal.

É. O encontro. Recebo convite para ser procurador-geral de São Gonçalo. Em 1992 me deparo com um pedido para ajudar num processo de impeachment de um prefeito, Aires Abdala. Falei para o vereador “vamos pegar fatos de repercussão nacional pra ecoar”. Peguei desvio de merenda escolar e remédios. Tinha criança desnutrida, e ele desviando. Botava pra vender em supermercado dele.

Mylton Severiano — Além de corrupção, cruel.

Beira o genocídio. Bebês morriam por falta de leite materno, que poderia ser suprido com leite que o governo dava. Ingressamos com processo, e deu resultado. Era o cacique político da região. E durante o processo foram muitas pressões. Ameaças, tentativas de corrupção. Eu sabia que poderia sofrer uma decepção.

Fernando Lavieri — Você temia problemas na votação?

Sim, a vida política é promíscua. O próprio processo eleitoral. Você chega a um eleitor, “o que você vai me dar?” Não pensa no coletivo. Parti para um jogo arriscado. A lei que regula o impeachment dizia que a votação é secreta. Era do regime militar. Falei “terá que ser aberta, quem for a favor do ladrão do dinheiro público vai prestar conta”. E o povo gritando “ladrão, ladrão”. Os advogados dele sorriram dizendo que estava contrariando a lei. Protestaram. E o povo aplaudindo.

Palmério Dória — E você foi responsabilizado?

Não. Ganhei. E o doutor Evandro Lins e Silva, no impeachment do Collor, o que fez? Adotou. O processo já estava consolidado. O prefeito tinha que ir pra rua. Aí, no processo do Collor houve a mesma coisa. Perante o Supremo Tribunal Federal consolidou o processo. Percebeu-se que o mais democrático era o voto aberto.

Palmério Dória — E você não é candidato?

Não. Eu não era, por que seria agora? Entendi que era mais útil à sociedade trabalhando de outra forma, cassando um prefeito, investigando corrupção. Em dez anos dentro da Polícia Federal veja o que produzi pra sociedade. Aí me desencanto. Atentam contra minha vida, sou agredido, iam me seqüestrar, passo trinta dias escondido. “Vou é ser advogado e largar esse cargo.” Fui advogado, advogando para a colônia francesa, no Rio. E participo de uma concorrência pública representando duas empresas. A Constituição não permitia que empresa estrangeira participasse a não ser como parceira de empresa nacional. A empresa que representei fez parceria com uma construtora. Ganhamos o processo para fazer a extensão do metrô Botafogo a Copacabana. E fomos surpreendidos por um ato de corrupção da Queiroz Galvão. Ela coloca um dormente que quebra a cada período. O que íamos colocar era de qualidade excepcional. E mais barato. Meus clientes falaram “estamos indo embora, não vamos investir nenhum centavo mais, é um país de ladrão, entre com uma ação indenizatória contra essa construtora”. Fiquei decepcionado.

Wagner Nabuco — A ação está em andamento?

Ganhei em primeira instância, em segunda, está no STJ [Superior Tribunal de Justiça]. É uma ação de mais de 60 milhões.

Mylton Severiano — Contra a Queiroz Galvão?

Sim, e o Estado do Rio.

Palmério Dória — Você vai ficar riquíssimo?

Nessa época comprei um Gol zero. E o carro para a poucos metros, em frente a uma agência do Banco do Brasil. Vi um cartaz de concurso pra Polícia Federal. Delegado, agente, perito. Falei “hum… o caminho é esse”. Passei, escondido da sócia, não ia entender como eu ia largar uma carteira que ganhava de 30 a 50 mil dólares por mês, pra viver de salário de funcionário público. Tem momentos que você cuida da sua vida, tem momentos que você olha e vê que falta muito a construir. Não adianta construir pra si, senão você vai viver numa ilha.

Palmério Dória — Era uma Policia Federal comprometida com…

Era uma guarda pretoriana do regime militar.

Mylton Severiano — Você acha que apuraram seu passado?

Acredito que sim. E fui chamado em 1998. Abandono as delícias da burguesia e vamos ser funcionário público. Aí vou pro Acre.


Mylton Severiano — Que situação você viu lá?

Autoridades ligadas ao narcotráfico. Rio Branco tinha 980 pontos de distribuição de cocaína. Uma coisa assustadora. Polícia Militar, civil, Ministério Público, Justiça estadual, prefeitura, governador, Assembléia, Câmara Municipal. Um juiz com ponto de drogas, desembargador viciado.

Mylton Severiano — Em que ano?

1999. José Roberto Santoro era o procurador que me auxiliava. Abro inquérito por lavagem de dinheiro para o narcotráfico, quebra de sigilo bancário, governador, prefeito, ex-governador, Fernandinho Beira Mar que tinha ligação com o narcotráfico, com a narcoguerrilha colombiana, as Farc, o Hildebrando Pascoal [ex-deputado federal, o “homem da motosserra”: mandou cortar em pedaços um desafeto]. Aí o Santoro dá um parecer paralisando a investigação, dizendo que não poderia investigar [Hildebrando] por lavagem de dinheiro, tinha que comprovar que era narcotraficante. Não dei bola. Fizemos a prisão preventiva por grupo de extermínio. A primeira condenação foi por lavagem de dinheiro. Fechei a investigação em cima do Hildebrando e dos 40 que estavam com ele. Eu disse “doutor Santoro, o tempo é o senhor da razão”. Ele disse que eu estava vendo muito filme.

Palmério Dória — E o Fernandinho Beira Mar?

Onde foi preso? Na selva colombiana, 1999. Saio com a missão concluída. Vou pra Brasília. E tinha um ofício para me apresentar em Foz do Iguaçu. Investigar lavagem de dinheiro, evasão de divisas no Cone Sul. Batizei de Operação Macuco [o “caso Banestado” – Banco do Estado do Paraná]. Macuco é típico da região, quem achar um ovo azul do macuco tem vida longa. Se todo o mundo procura e não está vendo, vamos ver se a gente enxerga. Foi um trabalho complexo, todo o mercado financeiro envolvido, internacional também, até o Banco Central do Paraguai. E o nosso.

Palmério Dória — O maior vazador de grana do Brasil.

A maior lavanderia se instalou ali, e com apoio político. Começamos a escanear todo aquele processo, identificando os atores.

Wagner Nabuco — O Gustavo Franco mudou a norma e permitiu que os bancos fizessem lavagem, não?

Tenho receio quando se muda uma lei do sistema financeiro. As leis, feitas pelos banqueiros, são para beneficiar a si próprios. Como agora. A norma estabelecia regras para a conta CC5. É conta de não-residente, de estrangeiro no Brasil. Em linguagem fácil: estrangeiro vem portando 100.000 dólares e quer comprar alguma coisa. Quer ter uma vida social aqui, e pega esses 100.000 e registra. Se investe numa carrocinha de pipoca, o dinheiro gerado ele vai depositar nessa conta CC5, que permite a ele voltar com esses recursos ganhos. Ela foi feita, na concepção reconhecida mundialmente, pra trazer investimentos pro país. Não pagava imposto.

Mylton Severiano — E como é que os bandidos do colarinho branco usam?

No caso Banestado, o esquema é montado com banqueiros do Brasil, pra tirar dinheiro daqui. Se pegar os recursos que ingressaram e os que saíram, vai ver, saiu mais dinheiro do que entrou.

Wagner Nabuco — Eles precisavam de uma empresa-fantasma.

Ou montava uma empresa-laranja, ou eram estrangeiros-laranja. Até mesmo brasileiro que se permitia dizer que vendeu algum bem pro estrangeiro e depositava na conta desse estrangeiro que não existia. Simples. O sujeito abria poupança com 10 reais. No dia seguinte, chegava com 100.000. E o gerente aceitava. E sucessivamente. Transferia para a CC5, dizendo que tinha vendido algum bem para aquela “empresa” estrangeira. Eles usavam pessoas humildes, empregada doméstica, desempregado, ambulante. Por que surgiu o “conheça o seu cliente”? Porque o Protógenes começou a prender gerente, diretor, e a discutir, “não leve a mal, mas vocês estão sendo indiciados porque, como é que, em sã consciência, aceitam abrir conta de um pipoqueiro com 10 reais e no dia seguinte aceitam 100.000 sem falar ‘você vendeu muita pipoca, hein?’, e não aceito dizer que precisa cumprir metas”. Mas chega um momento que o volume de dinheiro era tão grande, que o gerente passou a entrar no esquema. Quando passa a cumprir hora extra, chegar mais cedo, sair mais tarde, virar a noite, já foi tragado pelo sistema e já recebe pra abrir conta laranja. O lavador de dinheiro já não tinha preocupação, “ô, meu amigo, abre mil contas pra mim aí”.


Wagner Nabuco — E aí já estava abrindo conta com CPF falso.

Tinha de tudo. Mais de 100 bilhões de dólares saiu. Tinha um ex-diretor do Banco Central paraguaio que consegui o mandado de prisão. Saturnino Ramirez. Movimentou 1 bilhão e 400 milhões de dólares num ano e meio. Identifiquei caixa dois, dinheiro de narcotráfico. O grande volume foi de desvio de recurso público, o que me deixou chateado. Aí pegamos os políticos. Sim, Maluf estava lá. Daniel Dantas.

Wagner Nabuco Não entra só político.

Tem OAS, Mendes Junior, Odebrecht, a Queiroz Galvão. Todas as grandes construtoras. Você vai investigando, vai dar nas construtoras e na concorrência pública. E nos políticos.

Mylton Severiano Em Foz do Iguaçu quem foi preso?

Muitos. Passei quase dois anos lá. O primeiro ano foi difícil, começo a cercar os tubarões. Indiciei o sobrinho do Jorge Bornhausen, Alberto Dalcanalle Neto, em 174 inquéritos, vou para Curitiba, muita pressão. Fiz inspeção no banco dele, Araucária, logo o Banco Central fechou o banco. O presidente do Banco Central era o Armínio Fraga, “doutor Protógenes, estamos preocupados”, falei “quer arrumar um instrumento para me ajudar, fecha as contas CC5, o senhor acaba com a evasão de divisa, lavagem de dinheiro, estou enxugando gelo”. Qual era a resposta? “Se a gente fizer isso, cai todo o mundo aqui, não dá, faz parte do sistema.” Convidei colegas a ir embora ou se danar comigo, “vou passar urucum no rosto”.

Mylton Severiano — O que significa passar urucum no rosto?

Vou guerrear, com instrumentos que a lei me permite, falei “vamos pegar um caso de reflexo internacional”. Começamos a investigar um garoto chamado Victor Hugo Nunes, bonito, classe média. Transportava dinheiro do Paraguai e depositava na CC5. Sobrinho de uma senadora do Paraguai. Um dia, transportando 3 milhões e uns quebradinhos, de motocicleta, atravessou pro Brasil, na avenida Kennedy a gente “blum!”. Arrancamos a mochila, cheio de cheque. Engraçado que tinha um disquete já com a compensação do banco. A coisa estava tão sofisticada que, além dos 3 milhões, tinha mais alguns já compensados, colocava no computador e transferia: aquele dinheiro já tava em outro lugar. Que acontece quando prende alguém importante? Gritou imprensa, embaixadora, Parlamento, presidente do Paraguai. Na semana seguinte fecharam as contas CC5. Aí, manter preso o garoto. Tinha o juiz, eu disse “doutor Emerson, ele tem direito a fiança“, e foi a mais alta arbitrada no país. Pedi um milhão. O Emerson falou “você é louco, eu sou juiz novinho”, falei “também sou novo, se a gente não fizer isso não vamos acabar com a lavagem de dinheiro, estão sangrando o país, aperta a caneta aí”. Ele colocou 500 mil reais. A estratégia era saber quem ia pagar. Sabia que era alguma autoridade. O garoto foi solto, cheque de quem? Presidente do Banestado. Reinhold Stephanes.

Mylton Severiano Atual ministro da agricultura.

Aí comprovei que estava no esquema. Pra se livrarem do problema maior fecham as contas CC5. Permaneci um tempo, porque tentaram, um banqueiro, uns doleiros, me comprar, ofereceram 5 milhões de dólares, e viram que não tinha chance, aí fizeram um plano pra me executar. Minha esposa grávida teve que ir embora, eu andava com quatro colegas fazendo a segurança.

Palmério Dória — E o caso do Law Kim Chong?

O chinês era poderoso e tinha ligações na Polícia Federal, provavelmente algo ligado a financiamento de campanha, ligações na sociedade paulista. Um mafioso você vai pegar naquela situação mais simples. A complexa é onde ele está preparado. Qual seria a espinha dorsal dele? Contrabando e pirataria, talvez atividades municipais. Aqui, vou bater nele e voltar. Passo cinco anos investigando e busquei a via mais frágil, a corrupção.

Mylton Severiano — E como se deu?

Estamos com a CPI da Pirataria, o presidente é o deputado Luiz Antônio Medeiros, e me procura, “o Law quer me pagar 2 milhões de dólares pra deixá-lo fora da CPI”. Passei ao plano de pegá-lo naquilo que ele seria frágil, pagamento de propina. O deputado passa a fazer uma ação controlada (é acompanhada pelo Ministério Público e pelo juiz), com um assessor, o Fernando, policial rodoviário, e o Fernando fica com medo. Falei “deputado, não vou perder esse trabalho, haverá um prejuízo grande pra sociedade”, “qual a saída?”, “precisa arrumar outro”, “quem?”, “o senhor”, “eu?”,”sim, você não foi do Partido Comunista? Não foi exilado na Rússia? Tem todos os requisitos pra uma operação de infiltração”, “eu topo”. Firmeza. Falei “o Law não confia em ninguém, chega um momento que tem que estar presente com o dono do negócio, e o senhor é o dono”.


Mylton Severiano — O Medeiros não ficou nervoso?

Ele foi muito frio. Corajoso. É produzido um encontro em Araraquara. E o deputado, embora nervoso, sai muito bem. O chinês é um iceberg. Entrou, logo tira o paletó, o que sugestiona “não tenho gravador, nada”. O deputado, “não vou tirar meu paletó, ou confia ou pode ir embora”. E cheio de equipamento por baixo.

Mylton Severiano — É uma casa térrea…

Um hotel. Esse vídeo é fantástico. Um diálogo sugestionado por nós. O Law marca pra entregar o valor num ninho nosso, São Paulo. Você pensa “vai marcar um local de confiança e depois mudar”. É um misto de probabilidades, oportunidades, sorte. Ele indicou o shopping Center Norte, seria uma carnificina a prisão dele, poderia ter reação. Os guarda-costas dele eram policiais militares, falei “o lugar provável que ele vai trocar, Medeiros, vai ser seu escritório”. O local onde ele mais confiaria, “sou o corruptor, vou marcar na casa do corrupto, se for preso levo ele”. Chega no shopping, entrega o dinheiro para o intermediário, o telefone toca e o Medeiros ouve “não vai ser mais no shopping, vai ser no seu escritório”. Saímos batendo carro, chegamos minutos depois do intermediário chegar com o dinheiro. O Law já em fuga. Veio um grupo executar a prisão, uma parte do Rio, uma parte de Florianópolis. Ele é preso entre onze horas e meio-dia. Tava na garagem da rua 25 de Março pra pegar o carro.

Mylton Severiano O encontro pra dar dinheiro pro deputado foi que hora?

Meio-dia. Nós tínhamos um informante em frente daquela loja de pedra dele, Brasil Stone, e ligou, “tá atrás da pilastra no estacionamento”, e chegam os nossos, seis, e ele tinha quinze seguranças, sacaram as armas, e ele pergunta “vocês são policiais de São Paulo?”, “não, diretoria de inteligência de Brasília”, “logo percebi”. Engraçado, mas é triste, ele não aceitaria traição. A única condenação dele foi por corrupção.

Palmério Dória — A do Maluf talvez seja a prisão mais emblemática, você pega o político.

Tem uma história pesada, a sociedade paulistana se identifica com o modo político, o “rouba mais faz”. O Ministério Público vai à Polícia Federal em 2001 procurar o delegado que vem de Foz do Iguaçu, “temos um expediente aqui e queremos o delegado Protógenes”. Foi produzido um volume de informações, uma sala de documentos. Pedimos quebra de sigilo bancário internacional. Demorou uns três anos, chegou em 2004. Um marco, nenhum paraíso fiscal manda informação. A Suíça foi a primeira. O marco foi o 11 de setembro de 2001, os atentados. Há uma nova ordem financeira internacional. Ele tem dupla cidadania, brasileiro e libanês. E a cada ano vivia oito ou nove meses no Oriente Médio. Um mês em Paris. E quando chegaram os documentos no início do governo Lula, o Márcio Thomaz Bastos [ministro da Justiça] cria um departamento chamado DRCI [Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Jurídica Internacional]. Os documentos vieram bagunçados. Fora de ordem, faltando. Quer dizer, um departamento que era para facilitar a recuperação de recursos ilícitos, dificulta. Antes tínhamos contato direto com as autoridades internacionais, hoje vai ter contato com esse departamento. Já entrei em choque. Só tive uma reunião com esse departamento. O diretor hoje advoga para um dos escritórios que advoga para o Daniel Dantas. O dono foi procurador da Fazenda, Madruga; e tinha uma procuradora também, chamada Vani. Na primeira reunião queriam ditar regras e normas na investigação do Maluf. Eu disse “vocês recepcionaram documentos e bagunçaram, vou apurar responsabilidades”. Esse departamento foi criado para dificultar. Comecei a traçar estratégias para prender o Maluf. Descobri o doleiro, Vivaldo Alves. Mexia no fio do telefone dele, mulher, filho, de mais doleiros, “se tiver uma relação de confiança com o Maluf, a primeira pessoa com quem vai gritar é com o patrão”. Não deu outra.


Palmério Dória — Grampo?

Exatamente. O Flávio Maluf foi quem começou a cair, telefone de uma empresa, se não me engano de alimentação. E o Maluf cai justamente na corrupção. Propina ao doleiro, para mentir na investigação. Só que no grampo também cai a juíza que determina o grampo. Na interceptação, dizia-se “fala com aquela senhora, da segunda vara”, e no dia seguinte tinha um despacho dela obstruindo o trabalho. Falei com o procurador, “vou prender essa mulher”, e ele, com temor, fala para ela. E me disse. Quando ele falou para ela, ela fala para o Maluf. Quer dizer, para o advogado do Maluf, o José Roberto Batocchio. Ela chama o Batocchio no gabinete, à noite. Batocchio sai de lá às dez da noite. No dia seguinte vai à superintendência, pedindo medida cautelar, “quero vistas da interceptação que o senhor está fazendo contra meu cliente”. Olhei para ele, “sinto não poder”. “O senhor vai cumprir sim.” “Não vou! Fale para o seu patrão, e para a doutora Silvia, sua amiga particular, que ela venha ao meu gabinete me obrigar a cumprir essa ordem judicial.” “Vou representar contra o senhor, o senhor é louco.” “Represente muito bem. Se não, vou representar contra o senhor também. Agora, minha representação o Brasil vai conhecer.” Ele saiu louco da vida. E trato de fechar a operação. Já tinha vazado. Mandei o relatório para ela, pedi a prisão preventiva do Maluf e do Celso Pitta. Ela ficou nervosa.

Mylton Severiano — Tinha que ser com ela.

Ela pega uma cópia do relatório e entrega para o Batocchio. E o Batocchio chama jornalistas. A Lilian Christofoletti, da Folha de São Paulo, e Fausto Macedo, do Estadão, salvo engano. Dois de confiança, para divulgar. Mandei recado para o procurador, “fale com a doutora Silvia, ela tem que decretar a prisão do Maluf, senão vou prendê-la, o nome da senhora está no grampo”. Foi uma agonia para que ela decretasse a prisão. Ela decreta. E sai de férias.

Mylton Severiano — Decretou de todos que você pediu?

Não. Ela não decreta a do Pitta. Só do Maluf e do filho. Falei “um dia vou buscá-lo”.

Wagner Nabuco — Mas por que, em geral, o furo é da Globo?

O furo só reconheço se for bom pra sociedade. A Thais Oyama, da Veja, teve um furo que furou meus olhos. Foi a máfia do apito. Ela destruiu um trabalho. E o que mais doeu foi que me disse “sua investigação vai ser matéria de capa e vender 150 mil revistas”. “Thais, descobrimos corrupção, tem jogadores envolvidos, árbitro, dirigente. Tenho consolidada a fraude na arbitragem, não tenho a fraude nos atletas e nos dirigentes.” “Não interessa! Já está fechado.” Quando é na sexta já está na internet. Os bandidos fugiram. Não se pode fazer isso.

Palmério Dória — Estamos prontos para falar da Satiagraha? Como ela sai do mensalão e vira o que virou?

A origem não é mensalão, é Operação Chacal. A investigação da Parmalat, envolvida em fraude na Itália e no Brasil. Lavagem de dinheiro, evasão de divisas. Investigação presidida pelo delegado Elpídio Nogueira. Ele monta uma estação de trabalho em São Paulo, em 2003, 2004. O Elpídio entra em parafuso, vai para tratamento. E o doutor Paulo [Lacerda, ex-chefe da PF] decidiu ficar em cima da Kroll, junto com a Parmalat, a que a Kroll prestava serviço. E descobre que a Kroll é uma empresa americana de espionagem. Uma estação privada da CIA aqui. Esse volume de dados vai para a diretoria de inteligência, e descobrimos que a Kroll seria também um braço de espionagem que servia ao grupo Opportunity, à BrasilTelecom. E nasce uma operação para investigar a Kroll. A Operação Chacal.

Marcos Zibordi — Daí sai o HD do Oppotunity, na verdade cinco.

Não. É um. Ele depois é copiado. Na Chacal, vem junto o grupo Opportunity do Daniel Dantas. Ele usa a Kroll para espionar adversários dele.

Wagner Nabuco — Gente do governo?

Sim. Gushiken, ministro da Comunicação, o ex-chefe da Casa Civil José Dirceu, presidentes de banco, Fundos de Pensão, Banco Central, Banco do Brasil, ministros… Pra que possa ter um dossiê de todas essas pessoas. Quando a Chacal chegou no Opportunity é que apreende um HD. Estava ligado ao desktop ligado ao banco. Tipo 160 gigas de memória. O juiz determina a apreensão, e quando chega a Brasília já tem um grupo de advogados com decisão judicial para lacrar. O Ministério Público recorre e vai ao TRF [Tribunal Regional Federal] e me parece que o TRF determina que se abra o HD. Aí o Opportunity vai ao STF [Supremo Tribunal Federal] e o STF determina que se lacre.


Palmério Dória Ellen Gracie?

Ministra Ellen Gracie. Uma decisão oportunista. O que é que pode ter um HD que a Justiça não possa conhecer, a polícia? E fica uns dois anos parada a investigação. Aí surge o mensalão. Tudo no País, as grandes fraudes, podem ter certeza que não são visíveis de imediato. Mas vai ser visível. A mentira perdura pouco. A verdade é eterna. Igual ao caso Maluf. Com um pedido vagando no espaço, de quebra de sigilo, três anos, e veio tudo. O suficiente para o povo conhecer que houve desvio de dinheiro público, corrupção.

Renato Pompeu — E ele sumir politicamente.

Esperamos. E, depois do regime militar, foram com muita sede, não de resolver o problema político, mas de se sustentar no poder, e muita sede de se apropriar dos recursos públicos. Muita sede de dinheiro. Estamos presenciando uma construção de valores muito baixa. E se sustenta porque a sociedade parece hipócrita, idiota. Pode parecer, mas não é! Chega um momento que vai exigir. As autoridades honestas, que têm compromisso com essa sociedade, vão fazer valer seu exercício.

Renato Pompeu — Estávamos na Operação Chacal.

Como é que deslacra o HD? É um país de escândalos, vamos esperar o próximo e vamos abrir o HD. E vem o mensalão. Parte de um grupo pequeno, eles se revezam no poder. Coisa absurda! Não vê agora? Acaba uma eleição municipal e o Lula vai lá sentar com o Serra. Sorrindo, de braço dado.

Fernando Lavieri — Um ato político.

Tem que se conversar com todo o mundo. Mas ali, para mim, é uma ironia com nós eleitores. Com o povo! Vai me desculpar, um desrespeito! Não me sinto feliz em ver aquela cena não! Tipo “você está perdendo o poder, estou ganhando, mas vou te segurar”. Todo o mundo com sorriso irônico, Sérgio Cabral, Serra, Aécio, Hartung, o que é isso? Mas então, abrimos o HD. As personagens são as mesmas. Encontramos os doleiros do mensalão, que servem ao Daniel Dantas, ao Naji Nahas.

Wagner Nabuco — E que serviram em Minas o Marcos Valério?

Marcos Valério. Eduardo Azeredo. Nasce a Satiagraha. Que poderia ser melhor, já pensou? Satiagraha depois das eleições? Que vitória para o país! Só que muita gente teria que se mudar daqui. E é aberto o HD numa estratégia do Ministério Público e Polícia Federal, em que é provocado o juiz de primeira instância: o ministro Joaquim Barbosa [STF] manda expedientes para vários Estados para complementar a diligência e a ação judicial que tramitava no Supremo, em que ele era relator. A rigor, ele deveria concentrar no Supremo, mas, para otimizar o processo, inteligentemente descentraliza a ação junto a juízes de primeiro grau. Aí, conseguimos provocar a Justiça, e tinha doleiros ali que tinham relação com o Opportunity já no caso Banestado, lá atrás, desde 1997. E conseguimos uma decisão judicial para que a juíza deslacrasse o HD e permitisse que a Polícia Federal verificasse se tinha algum dado que importasse em crime financeiro envolvendo pessoas do mensalão. Encontramos um volume de dados muito grande e a juíza deu um prazo exíguo para exame, e nós, em trinta dias, identificamos que não tinha, a princípio, nenhum mensaleiro ali, mas um volume de dados que dava conta de uma série de indícios de crime financeiro e lavagem de dinheiro envolvendo muita gente, pessoas físicas e jurídicas.

Renato Pompeu — A impressão é que o senhor esteve o tempo inteiro investigando o mesmo polvo, cada hora pegando um tentáculo, e um dia vai chegar na cabeça.

Raciocínio perfeito. Sempre cheguei na cabeça, só não deu pra pegar. Tem a dívida externa, que é a coisa mais nojenta que já vi. Aquilo tinha que ser batido e rebatido, sabe? E quem participou está hoje aí. Foi presidente.

Fernando Lavieri Conta.

Palmério Dória Você está falando do Fernando Henrique Cardoso?

Fernando Henrique Cardoso.

Palmério Dória Você está falando do Paribas, de como o presidente manipulou e ganhou com isso?


Exatamente. Nossa dívida externa é artificial e eu provei isso na investigação. Houve repulsa minha porque quando era estudante empunhei muita bandeira “Fora FMI”, “Nós não devemos isso”.

Mylton Severiano “A dívida já está paga”.

“A dívida já está paga”. E foi muito jato d’água, muita cacetada, muito gás lacrimogêneo, “bando de doido, tem que tomar porrada, pau nesses garotos”. Você cresce achando que era um idiota, não é? Chega um momento que pensa “a dívida foi criada no regime militar, mas a gente precisa pagar”.

Fernando Lavieri Como você provou isso?

Palmério Dória O jogo começou a ser jogado no Ministério da Fazenda?

Sim. Querem essa história?

 

Todos Sim!

Vocês não vão dormir direito. Isso é para maiores de 50 anos. Estamos em 2002, me atravessa as mãos o expediente para um banco francês, “esse banco eu conheço, é sério”. E a suspeita que investigo é fraude com títulos públicos brasileiros, negociados no mercado internacional, títulos da dívida externa. Negociados na década de 1980: o que chama atenção?

 

Mylton Severiano Fim da ditadura.

E transição para o regime civil. José Sarney pega o país em frangalhos, devendo até a alma, sem dinheiro para financiar as contas públicas, muito menos honrar compromissos, a famigerada dívida com o FMI. Havia até o “decrete-se a moratória”. Era o papo nosso, da esquerda, dos estudantes, “não vamos pagar, já levaram tudo”. E o Sarney, o que faz? Bota a mão na manivela e nossos títulos da dívida externa valiam, no mercado internacional, no máximo 20% do valor de face, era negociado na bolsa de Nova York. No paralelo valiam 1%. O que significa? Não passa pela bolsa. Comprei, quero me livrar, então 1% do valor de face, título de um país “à beira de uma convulsão social, ninguém sabe o que vai acontecer com aquele país, um conjunto de raças da pior espécie”: essa, a visão primeiro-mundista, o que representávamos para os banqueiros. Escória. E aqui estávamos, discutindo a reconstrução do país. Vamos dialogar, botar os partidos para funcionar, eleições, e o Sarney tendo que dar uma solução. Fecha a manivela e toca a jogar título no mercado de Nova York. Cada título que valia 10%, 15%, mandava dinheiro aqui para dentro. Seis anos depois, o mercado financeiro internacional detectou que no Brasil haveria desordem, até guerra civil, e eles não iam receber o que tinham colocado aqui com a compra dos papéis podres, queriam receber mesmo os 15%. E fazem uma regrinha de três e colocam para o Banco Central: “Você vai instituir uma norma, os títulos da dívida externa brasileira adquiridos no mercado financeiro internacional, no nacional poderão ser convertidos junto ao Banco Central pelo valor de face desde que esse dinheiro seja investido em empresas brasileiras.” Bacana, não? Se funcionasse como ficou estabelecido, nosso país seria uma potência, não? Ainda que uma norma perfeita, acho um critério não normal, não é? Não é moralmente ético eu comprar um título por 15% e ter um lucro de 100%, em tão pouco tempo. Mas enquanto regra de mercado financeiro tenho de admitir que sou devedor. Se vendi a 15%, na bolsa, assumi o risco de, no futuro, o lucro ser maior para o credor. Tenho que pagar. Foi assim que foi feito? Não. Será que o grupo Votorantim recebeu algum dinheiro convertido? Alguma outra empresa nacional do porte recebeu? Não. O que o sistema montou? Uma grande operação em determinado período para sangrar as reservas do país, e ainda tinha as cartas de intenção, que diziam “se você não me pagar posso explorar o subsolo de 50 mil quilômetros da Amazônia”.

Wagner Nabuco Era a fiança?

Sim. Então me deparo com um banco, o Paribas, hoje BNP-Paribas que se uniu ao National de Paris. Com três diretores, em São Paulo, e dois outros, mais um contador que foi assassinado e um laranja que se chamava Alberto. O banco adquire esses títulos, no valor de 20 milhões de dólares, não é? E converte no Banco Central e aplica em empresas brasileiras, empresas-laranja. Comprou no paralelo a 1%, eram 200 mil dólares, e converteu a 20 milhões de dólares aqui no Brasil e colocou nessa empresa-laranja…


Mylton Severiano Empresa de quê?

De participações. Chamava-se Alberto Participações, com capital social de 10 mil reais. Já tem coisa errada. Como uma empresa com capital de 10 mil reais pode receber um investimento estrangeiro da ordem de 20 milhões? Cadê o patrimônio da empresa? Como é que o Banco Central aprova? Mando pegar o processo. Ela investiu, vamos ver aonde o dinheiro vai. Converteu os 20 milhões e ao longo de doze meses o dinheiro é sacado mensalmente na boca do caixa em uma conta e convertido no dólar paralelo e enviado para a matriz em Paris. Eu digo “Banco Central, me dá o processo do Paribas. Aí não consigo, quem consegue é o procurador que trabalhava comigo, Luiz Francisco. Consegue e remete pra mim em São Paulo. Vejo que no Banco Central houve uma briga interna pela conversão. Os técnicos se indignaram, e indeferiram. Aí houve uma gestão forte para que houvesse a conversão. De quem? Do ministro da fazenda. Que era quem?

Mylton Severiano Fernando.

Marcos Zibordi Henrique.

Mylton Severiano Cardoso.

Tento localizar os banqueiros. Todos fugiram. Os franceses todos. (ilegível) O laranja Alberto morreu de morte natural, assim falam no Líbano, onde ele morreu. E me sobra a sócia dele, uma senhora chamada Célia. Morava na Avenida São Luís. Ah, é? Um foi embora, outro fugiu, outro morreu, outro foi assassinado: querem brincar com a Polícia Federal? Com a dívida externa do Brasil? Descubro essa sem-vergonhice, essa patranha, essa picaretagem de fundo de quintal que acontecia enquanto nós estudantes lutávamos, dizíamos que a dívida externa não existia, e, de fato, parte dela era artificial. A coisa é grave, vamos fazer uma continha, nós contribuintes, que cremos que existe uma ordem no país. Títulos que adquiri por 200 mil, converti no Brasil os 20 milhões de dólares, quanto tive de lucro? 19 milhões e 800 mil. Vamos fazer essa continha para vocês dormir direito hoje. Esses 19 milhões mandei para minha matriz, o papel está na minha mão ainda, porque dizia o seguinte a norma do Banco Central: ao converter esse título, invista em empresa brasileira, e ao final de doze anos “Brasil, mostre a sua cara e me pague aqui, você me deve, pois sou credor dessa nota promissória chamada título da dívida externa brasileira”. Está na lei. Bota aí. Soma 20 milhões com 19 milhões e 800 mil: 39 milhões e 800 mil. Nós devemos isso aí? E mais, o que pedi? Que o juiz bloqueasse o título do Paribas, não pagasse, indiciei os diretores. Por quê? Porque estava se aproximando o final dos doze anos, o título estava vencendo e tínhamos que pagar. Pedi que o Banco Central enviasse cópia de todos os processos de conversão da dívida externa brasileira pra mim. Estou esperando até hoje. Sabe o que o Banco Central falou? “O departamento não existe, nunca existiu, era feito por uma seção aleatoriamente lá no Banco Central.” Então nós não devemos esse montante de milhões que cobram.

Renato Pompeu Só não entendi o que o Fernando Henrique Cardoso ganhou com isso.

Calma, calma. Sobrou uma para contar a história. A Célia da Avenida São Luís. A mulher de verdade. Era companheira do Alberto, ex-embaixador do Brasil no Líbano. Quando estourou a guerra ele fugiu e viveu na França, estudando na Sorbonne. Quem ele conhece lá?

Mylton Severiano Fernandinho.

Colegas de faculdade. A Célia, marquei depoimento numa quinta, véspera de feriado, às seis da tarde na superintendência da Polícia Federal. Uma morena bonita, quase 60 anos, me disse que tinha sido miss, modelo, era sócia nessa empresa, tinha tipo 1%. Furiosa, “que absurdo, véspera de feriado, perder meus negócios, engarrafamento”. Já estava gritando no corredor. Dei um molho de uns trinta minutos até ela se acalmar. Pensei “essa mulher está furiosa e tem culpa no cartório”. Falei “obrigado por ter vindo”, e ela “obrigado nada, o senhor é indelicado, desumano, sou dona de uma indústria de sorvetes, e me chama numa hora importante porque tenho que distribuir sorvete, é feriado, o senhor não tem coração”. No meio da esculhambação, digo “tenho que cumprir meu dever, sou funcionário público”, e ela “aposto que é o caso daquele Paribas, não sei por que ficam me chamando, e tem mais, fui companheira do Alberto, e ele foi muito mais brasileiro que muita gente. Era digno, honesto, ficam manchando a alma dele. Eu ajudei ele até o fim da vida, inclusive sustentei parte da família dele”. Percebi que não sabia a verdade, ela disse “ele morreu pobre, ficou esperando a conversão dessa dívida que nunca houve”. Detalhe: na quebra de sigilo bancário encontrei um cheque do Alberto que ele recebeu, 64 milhões, na boca do caixa do banco Safra. E ele transfere as cotas para uma empresa criada pelo Paribas em nome dos diretores.


Mylton Severiano No Brasil?

Já é um Paribas do Brasil. Transfere para a subsidiária, e os diretores começam a sacar. O primeiro quem recebe é ele, valor equivalente a 5%. E ela disse “ele não recebeu a comissão dele que era de 5%”. Bateu! Tranquei o gabinete, falei “vou mostrar um documento, mas se disser que mostrei, prendo a senhora”, era a cópia do cheque, com assinatura e data. A mulher começou a chorar. “Desgraçado. Que o inferno o acolha!” Ela disse “tenho muito documento na minha casa”. Se fizesse pedido de busca e apreensão chamaria atenção da Justiça, teria um indeferimento. Essa investigação estava sendo arrastada. Fiz uma busca e apreensão ao inverso, “a senhora permite que selecione o que quero?”, ela disse “perfeito”. Naquela véspera de feriado, peguei dois agentes, contrariando colegas que queriam ir embora…

Mylton Severiano Qual o ano?

2002. Saímos de lá de madrugada, era um apartamento antigo, magnífico. Ela chorando, “desgraçado, até comida na boca eu dei”. Ela me dá uma agenda, “aqui parecia o Banco Central, eu atendia o doutor Alberto, da área internacional”. Encontrei documentos, agendas que vinculavam ele ao Armínio Fraga, ao Fernando Henrique, inclusive uma carta manuscrita, não vou falar de quem, depois confirmada, ela falou “levei esse presente, pessoalmente, até a casa do Fernando”. Mandei documentos para perícia. Na época era eleição do Fernando Henrique.

 

Renato Pompeu Não, do Lula.

Isso. Lula venceu contra Serra. Fernando Henrique era presidente.

Renato Pompeu Ele recebeu dinheiro então?

Vamos pegar a linha do tempo. Ele sai de ministro da Fazenda e vira presidente. O gerente da área internacional que dá o parecer no processo, quem era? Armínio Fraga. Que presidiu o Banco Central. Essa investigação não sei que fim deu. Pedi ao Banco Central o bloqueio de todos os títulos da dívida externa brasileira que foram convertidos. E pedi cópia de todos os processos de conversão junto ao Banco Central para investigação.

Renato Pompeu Saiu na mídia?

Em parte, mas foi abafado. Quem conseguiu publicar foi, se não me engano, a Época.

Palmério Dória Citando Fernando Henrique?

Não, não citou. A reportagem era “Fraude à francesa”. Essa investigação surge da denúncia de um advogado, Marcos Davi de Figueiredo. Ele sofre uma pressão implacável dentro do banco. A Célia passa a ser ameaçada, logo que presta depoimento entregando tudo. Inclusive os escritórios que deram suporte a essa operação, um do Pinheiro Neto, e ela diz que sofria ameaça do próprio Pinheiro Neto. O procurador foi o doutor Kleber Uemura.

Marcos Zibordi É a última notícia?

Sim. Parece que ele tinha conseguido a quebra de sigilo bancário. Depois o dinheiro saiu no mercado paralelo e entraram grandes empresas com esquemas de saída de dinheiro. Tinha a Cotia Trading, que tinha uma coisa com a Volkswagen. Entra gente muito poderosa no esquema. Pedi a quebra de sigilo de todas as pessoas que participaram da fraude. E o Kleber conseguiu, aí não acompanhei mais. O Tribunal Federal deu a decisão de que era para não ter quebra de sigilo, era a juíza, salvo engano, Sylvia Steiner. Dá decisão favorável ao banco. Meses depois é nomeada juíza do Tribunal Penal Internacional pelo…

Renato Pompeu … excelentíssimo presidente da República.

Mylton Severiano Que história, hein?

Palmério Dória – Vamos para a Satiagraha?

Quer chegar lá? É muita picaretagem. E feito por uma minoria e estão aí de braço dado. Se você bater de frente é uma força desigual. É quebrada uma conta estratégica. Vislumbramos indício de crimes financeiros. A juíza tinha que determinar a abertura de nova investigação.

Marcos Zibordi Esse pedido não é feito pelo senhor.


Exatamente: polícia chamava atenção. Então, Ministério Público. Passamos a analisar aquele HD. Começam a se estruturar dois grupos de trabalho, um em torno do delegado Elzio Vicente. Começo a sobrecarregá-lo com demandas, ele não suporta, investigar o Daniel Dantas é coisa pesada. E ele se apresenta para o senhor Paulo e diz “não estou conseguindo acompanhar o Queiroz”. Fico só com a investigação, com uma condição, que o doutor Paulo ficasse até o final do governo Lula. Digo: “Por uma razão: se o senhor não ficar, essa investigação para.” Ele disse “tenho compromisso com o presidente de permanecer”. Eu disse “essa investigação para no dia seguinte que o senhor sair”. É complexa a capilaridade que o Daniel Dantas tem ao longo desses 20 anos, desde o Fernando Henrique. Só para vocês ter noção, ele tem uma empresa de exploração de mineração, MG4, que tem mil concessões de exploração de solo urbano. É necessário você ter uma força muito grande dentro do governo. Eles já estavam ofertando a empresa lá fora, no Oriente Médio. O intermediário era o Naji Nahas. Isso significa vender nosso país in natura.

 

Fernando Lavieri Não basta poder financeiro, tem que ter poder político.

Exatamente. Ele tem muita gente na mão. E prenuncia, a todo tempo, que se acontecer qualquer coisa com ele, ele fala. Uma pessoa falou: “Protógenes, se o Daniel Dantas falar, eu prefiro que ele fique preso.”

Palmério Dória Houve um momento em que ele disse “vou falar”?

Ele disse que ia falar quando da segunda prisão. Tinha certeza que iria ser solto.

Wagner Nabuco Você imaginava que seria solto?

Sim, mas não tão rápido.

Palmério Dória — Até porque tinha gravado que “lá em cima” ele resolvia.

Exatamente. No STJ estava tranqüilo. Estruturamos a segunda prisão. Mas não pensávamos que o STF iria contrariar toda a opinião pública, todas as regras jurídicas, todas as normas processuais.

 

Mylton Severian — Vocês não esperavam que ele pudesse ter tanta força política?

Não. E é um poder sem precedentes. Foram sucessivos atos que dão conta de que ele é uma pessoa muito poderosa e que esse poder viria com uma velocidade e uma força que se moveria contra quem quer se opusesse a esse grupo.

Palmério Dória — Não era marolinha, era tsunami.

Tsunami. E era o poder de um grupo. Ele representa um grupo, interesses, determinado segmento bem solidificado durante a redemocratização, que construiu um poder criminoso. Seria o PC [Paulo César Farias, homem forte de Fernando Collor] que deu certo.

Wagner Nabuco — Na segunda prisão você disse que ele abriria o jogo.

Estávamos indo na viatura. Ele me fala olhando com respeito. Muita frieza. Ele é frio. No início a mídia foi avassaladora contra, com velocidade, peso nas manchetes. Eu tinha falado “o senhor tem a grande mídia nas mãos, porque financia; agora, não use contra esse trabalho, nem contra mim, porque um dia pode se voltar contra o senhor. A grande mídia pode fomentar mentira por alguns dias, mas uma hora a opinião pública fica saturada. Isso um dia para”. Ele pergunta se tenho prova e digo “sim, está na investigação”. Ele: “O senhor está enganado, eu não financio.” Com frieza, calma. Na segunda prisão peguei os periódicos e coloquei em cima da mesa. Tinha um jornal, ou revista, que publicou matéria contra ele e coloquei no meio. Ele entrou, olhou a mesa de jornais. Quando identificou aquela lá, pergunta: ”Quem é que fabricou isso aqui?” Aí ele confessou. Deu certo a estratégia. Mas não vou dizer quem fez a matéria.

Palmério Dória — A política chegou a ponto tal, de repente você votou no Lula, e batendo boca com o governo.

Não só votei no Lula como ajudei na construção do partido dele no Rio.

Palmério Dória — De repente ele batendo boca com você.


O primeiro sentimento foi o de servidor público, teria que cumprir uma ordem presidencial. E me otimizei para concluir a investigação, e consegui a primeira parte. Diz respeito ao crime de corrupção ativa, e de gestão fraudulenta, salvo engano por corrupção ativa que vai ser condenado.

Mylton Severiano — Mas não ficou para a opinião pública que você foi afastado?

Esse é o meu sentimento como servidor público. Ele pediu que entregasse o relatório de forma pública. E externei meu sentimento como cidadão. Se vocês pararem nas minhas primeiras declarações, quando entrego o relatório, lembro como cidadão dos meus primeiros passos na democracia, lembrar de quando estava na Diretas-Já, tava no palanque desde Fernando Henrique até o presidente Lula, com Brizola, Ulysses Guimarães. O saudoso Tancredo Neves fez falta e ainda faz. E eu tô lá. Todo o mundo ovacionado, aqueles discursos, e o que mais me chamou atenção foi o Sobral Pinto – que leva o nome na minha turma de Direito –, o discurso dele se resume a uma frase: “No Brasil, o que mais temos que respeitar é o artigo 1º da Constituição Federal do Brasil: Todo poder emana do povo e em seu nome será exercido.” Acabou. Então, externei, como cidadão, que o poder vinha do povo. E eu tava obedecendo ao presidente, mas originariamente ao povo, que estava esperando minha conduta.

Wagner Nabuco — Você conhece o Lula?

Eu o cumprimentei uma vez, no gabinete, num evento. Tive impressão de pessoa honesta, correta, origem humilde, e externa esse sentimento, chegou como chefe de uma importante nação com apoio popular. Mas durante a gestão, a grande dificuldade seria, nós estranhamos, em determinadas composições políticas, posturas, mesmo companheiros que traíram aqueles propósitos originais da causa operária, da causa social, de apoio aos movimentos sociais, de retribuição de todo aquele conhecimento que tinha do passado, de aplicar isso no presente.

Palmério Dória — Engraçado, muitos desses companheiros são homens do Dantas hoje.

Não diria homens do Dantas.

Palmério Dória — Do poder, e próximos dele.

Homens do poder, e não só do Dantas. Daniel Dantas representa um poder ainda invisível. É visível à medida que começamos a aprofundar a investigação. Ou até num debate público, aí as pessoas começam a se revelar. Marx dizia “os quadros da sociedade começam a se revelar através de um processo público em que as pessoas se posicionam”. Alguns com um ideal, outros com outro ideal. Às vezes me dizem “estão criticando a Satiagraha, a verdade é que foi um sucesso, pautou-se pela lei, pelas regras do direito penal brasileiro, pela Lei de Crimes Contra o Sistema Financeiro Brasileiro. Tanto que vamos ter uma condenação em breve. Significa que o resultado das investigações foi legal.

Palmério Dória — A gente vê tentativas pra desautorizar. A Veja inventou o grampo telefônico sem áudio. A outra é você ter apelado para a Abin.

Por que o auxílio da Abin? Eu estava fragilizado em recursos humanos, com uma operação gigantesca dessa precisaria uns 50 policiais. Me deixaram com cinco. Sobraram quatro até deflagrar a operação. Pensei que fosse uma situação de transição de um diretor para outro, depois percebi que não, era uma orquestração para me tirar todo suporte, para paralisar a operação. Você quer aniquilar o inimigo, acabe com seu suprimento, até pão com manteiga. Falei “tenho que ultrapassar esse obstáculo”. Recorri ao sistema ao qual pertenço, Sistema Brasileiro de Inteligência.

Mylton Severiano — Achou um flanco legal.

Sim. Tá em lei. Aqui [tira da bolsa a lei 9.883/99, para ler o parágrafo 2º do decreto 4.366/02, que a regulamenta]. Eles fazem a polêmica e não falam da lei. Não mostram à população. Numa simples leitura você entende:

“O Sistema Brasileiro de Inteligência é responsável pelo processo de obtenção e análise de dados e informações, e pela produção e difusão de conhecimento necessário do processo decisório do Poder Executivo e em especial no tocante à segurança da sociedade e do Estado, bem como à salvaguarda de assuntos sigilosos do interesse nacional.”


A Operação Satiagraha está mais para a segurança de Estado que pra sociedade. É para os dois, um misto. O que é o processo de obtenção e análise de informações? Vigilância eletrônica, convencional, ou seja, fotografar, filmar, gravar, investigar. Constituem o Sistema Brasileiro de Inteligência: Ministério da Justiça, por meio da Secretaria Nacional de Segurança Pública; Departamento de Polícia Rodoviária Federal; e Coordenação de Inteligência da Polícia Federal. Hoje não é mais Coordenação, é Diretoria. Quem pertence? O Protógenes. Então eu estava autorizado por lei a chamar os colegas da Abin. Além disso, a rotina é trocar informações com outros órgãos, inteligência militar: Marinha, Exército, Aeronáutica; Abin, Receita Federal. Até um simples telefonema – uma rasurada num papel de pão, nós consideramos uma informação.

Bruno Versolato — Há uma informação que um emissário ou assistente do Gilmar Mendes [ministro e atual presidente do Supremo Tribunal Federal] jantou com um advogado do Dantas num restaurante japonês em Brasília. Na véspera da decisão do habeas corpus. Houve esse jantar?

O fato está sendo investigado pelo Ministério Público federal, não posso fornecer informações.

Renato Pompeu — Entendi mal ou é possível elaborar uma lista de jornalistas que receberam dinheiro de Daniel Dantas?

Não diria que receberam, na investigação aparecem alguns. Não preciso mencionar, está nos relatórios.

Renato Pompeu — O relatório remete para um anexo. E não tivemos acesso.

Você tem uma rede de jornalistas que abasteciam Daniel Dantas ou faziam manifestação de mídia a favor dele, favoreciam negócios dele no presente, ou até mesmo projetos futuros.

Renato Pompeu — Nós podemos ter acesso a esse documento? A lei permite, não?

Acredito que logo isso vai vir a público. Entendo que o Congresso tem que rever isso. Que o Supremo deveria liberar esses dados, ali estão nossos representantes. O povo tem que conhecer, não são dados privados. São públicos, mexeu com recurso público, com nosso dinheiro. Não quero saber justamente dos dados da vida privada da pessoa. Isso tem que ser preservado, a intimidade. Agora, onde tem fraude, temos que conhecer. Acho que vocês da imprensa têm um grande papel. Bater: o dado que tenha fraude, desvio de recurso público, embora captados em investigação sigilosa, temos que reverter, têm que ser de conhecimento público.

Palmério Dória — A bancada do Dantas compreende quantos deputados, senadores?

O termômetro da bancada do Daniel Dantas no Congresso é o comportamento desses parlamentares no caso Satiagraha. É só ir atrás. Era legal vocês da mídia fazer um placar. Deputado tal se manifestou. Marca um xis. E na eleição botar lá. Pra nós não elegermos esse povo novamente.

Amancio Chiodi — As polícias estaduais reclamam que prendem e os juízes soltam. Na instância federal também é assim?

Não culpo assim, a polícia prende e a Justiça solta. Às vezes, um acusado é solto por deficiência legislativa. As nossas leis processuais protegem o bandido!

Wagner Nabuco — O Dantas pode sair ileso? Ou ir para a cadeia?

Para a cadeia ele vai. Condenado. Em um primeiro momento. Agora, mantê-lo na cadeia depende de nós. Depende do povo.

Marcos Zibordi — Não depende do judiciário?

Não. No judiciário ele sai no dia seguinte.

Mylton Severiano — O que você sentiu quando ele saiu livre duas vezes em menos de 48 horas?

Senti vontade de prendê-lo a terceira vez. Quase que o prendi. Tinha um fato para poder prendê-lo, mas iria criar uma crise. Já tinha manifestação em frente ao Supremo Tribunal Federal, membros dos três poderes um acusando o outro, determinado grupo político querendo criar uma nova situação, um passo atrás.

Fernando Lavieri — Mas não seria bom uma virada de mesa?

Não. Eu não sou da teoria de quanto pior melhor. Para mim, quanto pior, pior. Esse quanto pior melhor eu aprendi com 14, 15 anos. Hoje vivemos no século 21: quanto pior, pior.

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