Estatuto do desarmamento

Regra de porte de arma vale também para juízes e MP

Autor

  • César Dario Mariano da Silva

    é procurador de Justiça (MP-SP) mestre em Direito das Relações Sociais (PUC-SP) especialista em Direito Penal (ESMP-SP) professor e palestrante autor de diversas obras jurídicas dentre elas: Comentários à Lei de Execução Penal Manual de Direito Penal Lei de Drogas Comentada Estatuto do Desarmamento Provas Ilícitas e Tutela Penal da Intimidade publicadas pela Editora Juruá.

18 de janeiro de 2009, 9h14

Desde a publicação do Estatuto do Desarmamento, o porte de arma de fogo pelos membros do Ministério Público e da Magistratura tem causado controvérsia. É que as Leis Orgânicas do Ministério Público da União (Lei Complementar 75/93), dos Estados (Lei 8.625/93) e da Magistratura (Lei Complementar 35/79) permitem o porte de arma de fogo de maneira genérica, ou seja, sem a imposição de qualquer condição.

O Estatuto do Desarmamento, no seu artigo 6º, “caput”, diz expressamente que continuam em vigor os dispositivos da legislação especial que possibilitam o porte de arma de fogo para algumas categorias profissionais, dentre elas do Ministério Público e da Magistratura.

Com isso, há abalizados entendimentos no sentido de que, como as Leis Orgânicas do Ministério Público e da Magistratura não limitaram ou condicionaram o porte de arma de fogo para seus membros, ele é irrestrito, podendo os promotores e procuradores de Justiça, bem como os procuradores da República e magistrados, portar qualquer espécie de arma de fogo, seja de uso permitido ou restrito.

Não nos parece que esse seja o melhor entendimento.

É que o Estatuto do Desarmamento regula não apenas o porte de arma de fogo, mas também sua aquisição e registro, estabelecendo uma série de requisitos para esses misteres.

É certo que os membros das Forças Armadas e os policiais em geral não necessitam preencher os requisitos do artigo 4º, incisos I, II e III do Estatuto para a aquisição e registro de arma de fogo de uso permitido (artigo 6º, parágrafo 4º, do Estatuto). Isso porque, em sua formação, são preparados para manusear armas de fogo e necessitam possuir aptidão psicológica para tanto, além de não poderem contar com antecedentes criminais quando do ingresso na carreira.

Já no que é pertinente aos membros do Ministério Público e da Magistratura, não há qualquer exceção. Para poderem adquirir e registrar arma de fogo deverão preencher os requisitos de que trata o artigo 4º, incisos I a III, além de possuírem mais de vinte e cinco anos de idade (artigo 28 do Estatuto). De acordo com o Estatuto do Desarmamento, poderão adquirir e registrar arma de fogo de uso permitido e de uso restrito, nesse último caso mediante autorização do Comando do Exército (artigo 27).

Com efeito, embora as Leis Orgânicas do Ministério Público da União e dos Estados, bem como da Magistratura, sejam genéricas quanto ao porte de arma de fogo, o Estatuto do Desarmamento dispõe expressamente sobre a aquisição, registro e renovação do certificado de registro de armas de fogo, que devem ser observados por todos.

Criou-se, assim, uma situação inusitada. Não há qualquer limitação expressa quanto ao porte de arma de fogo; porém, o Estatuto do Desarmamento estabelece critérios para que os membros do Ministério Público e da Magistratura possam adquirir e registrar armas de fogo.

O artigo 24 do Decreto 5.123/04, que regulamenta o Estatuto do Desarmamento, determina que o porte de arma de fogo valerá apenas para a arma de fogo nele especificada e com apresentação do documento de identificação do portador. Ou seja, o particular pode portar apenas a arma de fogo que adquiriu legalmente e a registrou na Polícia Federal, após atender aos requisitos legais pertinentes.

Fica evidente a intenção da lei de restringir ao máximo o porte de arma de fogo e limitá-lo à arma adquirida e registrada pelo titular da autorização para o porte.

Destarte, pensamos que para os membros do Ministério Público e da Magistratura a situação é a mesma. Como essas categorias de profissionais do Direito somente podem adquirir e registrar arma de fogo após o atendimento dos requisitos exigidos pelo Estatuto do Desarmamento, a autorização para o porte deve restringir-se à arma de fogo que possa ser por eles adquirida e registrada, ou seja, arma de fogo de uso permitido e arma de fogo de uso restrito, desde que haja autorização do Comando do Exército.

Deve ser lembrado que, diferentemente do que ocorre com os membros das Forças Armadas e das polícias em geral, os membros do Ministério Público e da Magistratura não possuem formação profissional para o emprego de arma de fogo. Por isso, a exigência da lei para submissão aos seus requisitos.

É certo que, no que tange à residência fixa, profissão lícita e ausência de antecedentes criminais (artigo 4º, incisos I e II), já são exigências para o exercício da carreira. Assim, não nos parece razoável que os membros do Ministério Público e da Magistratura sejam obrigados a demonstrar esses requisitos. Porém, a capacidade técnica e aptidão psicológica para o manuseio de armas de fogo são condições que devem ser demonstradas para que possam adquirir e portar arma de fogo.

Qual a consequência na área penal, então, para o membro do Ministério Público ou da Magistratura que porte uma arma de fogo de uso restrito sem autorização do Comando do Exército para sua aquisição?

Para responder a essa pergunta devemos nos reportar sucintamente à teoria do bem jurídico.

A função do Direito Penal é a proteção de bens jurídicos. Não de todos, mas daqueles mais importantes para a sociedade e cuja violação possa causar considerável danosidade ou abalo social.

O bem jurídico tutelado pelos tipos penais previstos no Estatuto do Desarmamento é a incolumidade pública, ou seja, a segurança da coletividade. Os crimes previstos nesse diploma legal são de perigo abstrato, em que o perigo de dano é presumido pela lei de forma absoluta, não admitindo prova em contrário. A norma presume a ocorrência do perigo de dano quando alguém porta arma de fogo sem autorização para tanto.

Há armas de fogo com maior poder vulnerante do que outras. Assim é que a pistola de calibre .45 tem maior poder de fogo do que um revólver calibre .38. Fica evidente, portanto, que aquela pessoa que possui autorização para portar arma de fogo de uso permitido não poderá portar arma de fogo de uso restrito, que, em tese, tem mais poder de fogo em face de seu maior calibre e potência.

No entanto, pode ocorrer que alguém esteja autorizado a portar, por exemplo, uma arma de calibre .40, que é superior em poder de fogo ao calibre 9 mm. E nesse caso, há crime? Entendemos que não. Isso porque, se é permitido ao sujeito portar arma de fogo de calibre superior, não há como puni-lo penalmente por portar arma de calibre inferior. No caso em questão, não há perigo para a coletividade, não ocorrendo violação do bem jurídico protegido. Ora, quem pode o mais pode o menos.

O Decreto 6.715, de 29 de dezembro de 2008, alterou o Regulamento do Estatuto e criou dispositivos que procuram regulamentar o porte de arma de fogo pelos agentes públicos ou políticos, que possuam autorização para o porte estabelecida em legislação própria.

O artigo 34, parágrafo 3º, do Regulamento do Estatuto dispõe que os órgãos ou instituições que tenham o porte de arma de fogo de seus agentes públicos ou políticos estabelecidos por legislação própria, deverão encaminhar à Polícia Federal relação dos autorizados a portar arma de fogo. Esses agentes não poderão portar arma de fogo ostensivamente e nem entrar ou permanecerem armados em locais onde haja aglomeração de pessoas em virtude de eventos de qualquer natureza, como em escolas, em agências bancárias, em clubes etc. A autorização para o porte de arma de fogo para essas pessoas somente poderá ser concedida para defesa pessoal, sendo vedado seu porte ostensivo (artigo 34, parágrafo 5º, do Regulamento).

Já o artigo 33-A do Regulamento estabelece que a autorização para o porte de arma de fogo previsto em legislação própria está condicionada à demonstração de capacidade técnica e aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo.

Referidos dispositivos, embora lúcidos e sensatos, são inconstitucionais, uma vez que estabelecem condições e obrigações que o próprio Estatuto do Desarmamento não prevê. Há clara usurpação da função de legislar, sendo violado o princípio da separação dos poderes. Caso o Legislador quisesse, teria regulado a questão no próprio Estatuto do Desarmamento ou autorizaria o Poder Executivo a fazê-lo por decreto. Como não o fez, não cabe ao Executivo imiscuir-se em função que não é sua.

Com efeito, embora o Poder Executivo tenha tentado solucionar a confusão causada pelo Estatuto do Desarmamento no que é concernente ao porte de arma de fogo pelos membros do Ministério Público e da Magistratura, bem como de todos os demais agentes públicos ou políticos que possuam autorização para portar arma de fogo de acordo com legislação própria, não poderia fazê-lo. Caberia ao Poder Legislativo, por meio de lei, regular essa questão.

Autores

  • é promotor de Justiça em São Paulo, mestre em Direito das Relações Sociais e professor da PUC-SP, Escola Superior do Ministério Público de São Paulo e da Academia da Polícia Militar do Barro Branco.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!