Supremo guardião

STF inova ao deixar de lado jurisprudência defensiva

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18 de janeiro de 2009, 2h37

Saul Tourinho Leal - por SpaccaSpacca" data-GUID="saul_tourinho_leal.jpeg">

O sistema jurídico brasileiro e a Constituição extensa e analítica promulgada há 20 anos autorizam o Supremo Tribunal Federal a decidir questões políticas. O poder não aceita vácuos. Se o Executivo e o Legislativo deixam de cumprir com seus deveres para fazer valer princípios constitucionais, é bom que o Supremo haja para delinear garantias e deveres dos cidadãos.

Essa é a opinião do advogado Saul Tourinho Leal, mestre em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Sua tese de mestrado intitulada Ativismo ou Altivez? O outro lado do Supremo Tribunal Federal, apresentada no fim do ano passado, compara as decisões da Suprema Corte dos Estados Unidos em sua fase mais ativista, quando foi presidida pelo juiz Earl Warren, com recentes precedentes fixados pelo Supremo no Brasil.

O advogado chega à conclusão de que, para o bem do país, o Supremo vem inovando ao deixar de lado uma jurisprudência defensiva, de auto-contenção. Exatamente como fez a Suprema Corte americana nas décadas de 1950 e 60, garantindo direitos fundamentais aos indivíduos mesmo contra a posição majoritária da sociedade.

Em entrevista à revista Consultor Jurídico, Leal diz que essa postura pode até gerar tensões entre os poderes, mas não enfraquece a democracia ou quebra a ordem institucional: “A atual composição do Supremo é corajosa e não toma as decisões, como acontecia em um passado recente, com armas nas mãos. Só o que os ministros têm nas mãos é a Constituição”.

Tensões criadas com a resistência de outros poderes em cumprir as determinações da Suprema Corte — como a demora da Câmara para cassar o mandato do ex-deputado federal Walter Brito Neto (PRB-PB) por infidelidade partidária — são naturais, considera o advogado. Ele afirma que, apesar da evidência que tem hoje, essa discussão não é nova. “Em 1968, o ministro Aliomar Baleeiro, em livro, já apontava que é natural haver tensões entre um tribunal responsável por guardar uma Carta Política e os outros poderes, que exercem funções eminentemente políticas”, afirma.

De acordo com o advogado, as críticas de que não podemos ter os outros poderes e o país dirigido por um corpo de 11 sábios que não são eleitos pelo povo fariam sentido se o tribunal estivesse ultrapassando os limites de suas atribuições. O que não acontece hoje. “O que não podemos é imaginar um tribunal ajoelhado, receoso de fazer valer a Constituição.”

Piauiense de Teresina, o advogado Saul Tourinho Leal tem 26 anos e trabalha no escritório Pinheiro Neto, em Brasília, há quase dois. Atua no Supremo Tribunal Federal e no Superior Tribunal de Justiça. É professor de Direito Constitucional do Instituto de Educação Superior de Brasília.

Leia a entrevista

 ConJur — O Supremo tem se excedido na interpretação da Constituição?
Saul Tourinho Leal — Isso é o que está na boca do povo e na de alguns formadores de opinião. Pinta-se um Supremo que avança no julgamento de questões sobre as quais não teria legitimidade para decidir. Mas ao estudar as decisões mais polêmicas do STF, percebe-se que não é isso que tem acontecido. Nós temos uma Constituição analítica, extensa, que atribui ao Supremo o papel de ser seu guardião. E é isso que o Supremo tem sido: um guardião de coragem da Constituição.

ConJur — Em sua tese de mestrado, o senhor compara o Supremo de hoje, no Brasil, com a Suprema Corte de Warren, nos Estados Unidos [o juiz Earl Warren presidiu a Suprema Corte dos EUA entre 1953 e 1969]. Quais são os pontos em comum entre os dois tribunais?
Saul Tourinho Leal — Na época de Warren, uma parcela da sociedade americana dava sinais de insatisfação por causa da dificuldade que seus mandatários tinham para enfrentar problemas graves do país. Esse cenário se assemelha com o que vivenciamos hoje no Brasil. Temos gargalos imensos como reforma tributária e política, para dar apenas dois exemplos, sobre os quais nossos representantes não conseguem construir um consenso. Nos EUA da época havia pautas bem definidas que avançaram na garantia de direitos. No STF de hoje, temos esse cenário também muito bem definido.

ConJur — Há exemplos de semelhanças pontuais?
Saul Tourinho Leal — O caso Watkins v. United States, julgado em 1957, é um exemplo perfeito. Por esse precedente, a Suprema Corte entendeu que o tribunal pode definir os limites de atuação das comissões parlamentares de inquérito. Cabe ao Legislativo instalar a CPI? Cabe. Ele é livre para fazê-lo? É. Tem, inclusive, o dever de fazê-lo? Tem. Mas não de forma absoluta. O Legislativo tem de obedecer a regras mínimas. A CPI não é uma Inquisição e deve observar o processo legal.

ConJur —O senhor parece estar falando de decisões do ministro Celso de Mello, em 2005 e 2006, que puseram limites às CPIs…
Saul Tourinho Leal — Exato. Decisões do ministro Celso de Mello, corroboradas pelo plenário do Supremo, fixando que a CPI precisa ter um rito, respeitar garantias e o devido processo legal; que a CPI deve ser instalada, porque é um legítimo instrumento de fiscalização até mesmo das minorias; que a CPI tem que dar direito de o acusado consultar seu advogado se achar devido; que a CPI tem poderes de quebrar o sigilo de investigados, mas tem de fundamentar suas decisões, como na esfera judicial. Ou seja, temas levados à Suprema Corte de Warren e ao STF no Brasil, e julgados sob a mesma ótica de garantia dos direitos fundamentais.

ConJur — Há outros exemplos?
Saul Tourinho Leal — Houve uma pauta de decisões na corte de Warren que caminhava para a garantia dos direitos de acusados. No caso Gideon v. Wainwright foi fixado o precedente de que o preso tem direito a um advogado. Parece algo trivial, até tolo hoje, mas quando foi fixado esse precedente houve imensa crítica. Havia a idéia de que não se deve garantir qualquer direito a “criminosos”. Mas a decisão foi tomada com o entendimento de que o preso não deve fazer a própria defesa porque fica em situação desigual frente ao Estado. Ele tem direito a um profissional que a faça. A corte de Warren continuou avançando, por exemplo, no caso Mapp v. Ohio. Nesse caso, decidiu-se que provas ilícitas contaminam todo o processo. O jogo tem de ser limpo. E, já depois de Warren, há o clássico caso Miranda v. Arizona, no qual se definiu que o preso tem de ser informado sobre seus direitos no momento da prisão.

ConJur — Que decisões da nova formação do STF podem ser comparadas a esses três casos?
Saul Tourinho Leal — Direito de progressão de regime para condenados por crimes hediondos é uma delas. O preso tem direito de ascender do regime mais severo para o mais ameno, independentemente da gravidade do crime cometido. Temos a sinalização de declaração de que o interrogatório por videoconferência viola a Constituição. O preso tem o direito de prestar os seus esclarecimentos diante da presença física do juiz. A mais recente delas é a declaração de que a prisão do depositário infiel viola a Constituição porque nós temos o amparo do pacto de São José da Costa Rica que trata do assunto e foi incorporado ao nosso ordenamento jurídico.

ConJur — A Súmula Vinculante das algemas pode ser considerado outro exemplo nesse sentido?
Saul Tourinho Leal — Sim. É um caso marcante e polêmico. O que motivou a decisão do STF foi o fato de que as algemas não devem se prestar a ser um instrumento utilizado por agentes do Estado para destruir a imagem e humilhar acusados. Não é essa a finalidade. Algemas, portanto, devem ter caráter excepcional. Então, percebe-se que houve, na corte de Warren, uma pauta estabelecida de garantia do direito de presos e de acusados. E há movimento semelhante no Supremo Tribunal Federal, com uma importante diferença: no Brasil, estamos com algumas décadas de atraso.

ConJur — Essa atuação do STF, classificada como ativismo, gera críticas e elogios na mesma proporção. A decisão no caso da fidelidade partidária foi aplaudida pela população. Já a decisão no caso das algemas foi criticada. Por que essa diferença de reação se as duas decisões visam o mesmo bojetivo, que é a garantia de princípios constituicionais?
Saul Tourinho Leal — Primeiro, é preciso deixar claro que a idéia de um tribunal constitucional é necessariamente contra-majoritária. O tribunal constitucional tem de ser um órgão composto por técnicos, afastados de paixões políticas. O compromisso do Supremo, na verdade, não é diretamente com o povo. É com a Constituição. O compromisso do STF é, para agrado de uns e desagrado de outros, fazer cumprir a Constituição. E tem de continuar nesse caminho. Quando, nesse papel, o tribunal confronta alguma idéia estabelecida pelo senso comum, é alvo de críticas. E isso faz parte do jogo democrático.

ConJur — E a que o senhor atribui esse fenômeno relativamente recente, de as decisões do Supremo serem comentadas nas ruas?
Saul Tourinho Leal — Esse aspecto é muito relevante. Há um acirramento do debate constitucional a ponto de populares saírem às ruas com movimentos de desagravo ou de apoio por conta de determinada decisão. Isso se deve ao processo de abertura que o tribunal promoveu, principalmente ao longo dos últimos dez anos. O Supremo, pela TV Justiça, está na sala de estar do brasileiro; o site do STF é o mais completo dentre os sites de tribunais; tem uma rádio por meio da qual se noticiam suas decisões — e o rádio tem uma força muito grande, especialmente nas comunidades mais carentes e afastadas; o tribunal tem aberto suas portas para ouvir de técnicos em determinados assuntos a pessoas comuns por meio de audiências públicas. Tudo isso cria uma confusão na cabeça da população. Tem-se a impressão de que o Supremo está lá para representar o povo, como se tivesse mandato para falar em nome do povo. Na verdade, não tem. O papel do Supremo é o de, às vezes, ir contra o consenso, contra o que a maioria quer.

ConJur — Qual o motivo dessa abertura do STF?
Saul Tourinho Leal — A mudança de composição do Supremo e o enraizamento das regras constitucionais na vida do brasileiro. Essa abertura institucional é importante porque, mesmo quando o Supremo se vê em maus lençóis diante da opinião pública, jamais pode ser taxado de um tribunal com pouca transparência ou fechado ao cidadão. Há um livro de Peter Häberle, traduzido no Brasil pelo ministro Gilmar Mendes, chamado A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição. O ideal do livro é muito simples: se a Constituição é feita pelo povo e para o povo, o povo tem que ter alguma participação no processo de interpretação da Constituição. O Supremo absorveu esses princípios e, por isso, promove hoje uma verdadeira revolução na arte de se comunicar com a população. O Supremo desmitificou o debate constitucional. Hoje, o leigo tem todo acesso às decisões do Supremo e me parece muito bem inteirado de todas elas.

ConJur — De um lado, o senhor diz que é bom que o Supremo se abra porque a participação popular na interpretação da Constituição legitima suas decisões. De outro, defende que o papel do STF não é o de representar o povo ou ir ao encontro de seus ideais de justiça. Não é contraditório?
Saul Tourinho Leal — Não. É importante que haja participação popular na interpretação da Constituição, mas o Supremo não tem, necessariamente, que seguir o anseio popular — principalmente se esse anseio fere direitos e garantias fundamentais dos cidadãos. Mas como houve a abertura, é natural que quando o Supremo contraria o senso comum, haja reação. Exemplo: o pedido de impeachment do ministro Gilmar Mendes. O juiz Earl Warren, nos Estados Unidos, também foi alvo de pedido de impeachment.

ConJur — Esses pedidos de impeachment se justificam?
Saul Tourinho Leal — Não. No caso do ministro Gilmar Mendes, o que baseou o pedido de impeachment foi a concessão de Habeas Corpus — que é prática rotineira no Supremo — para um banqueiro, pessoa aquinhoada. A população pensa: “Ele foi solto porque tem dinheiro”. Mas essa premissa é falsa. A pesquisa mais simples que se faça sobre concessão de Habeas Corpus no STF mostra que a regra é a da concessão quando o decreto de prisão é precário. Há um caso muito parecido, que foi a concessão de Habeas Corpus ao Salvatore Cacciola pelo ministro Marco Aurélio. Não me consta que houve pedido de impeachment naquela ocasião.

ConJur — O Supremo ainda não era popular…
Saul Tourinho Leal — Exatamente. Certamente, houve manchetes de jornais, mas a população ainda via aquilo como algo distante, longe de sua rotina. Isso mudou.

ConJur — Como vê a reação do Poder Executivo e do Legislativo contra decisões do Supremo que são taxadas de ativistas?
Saul Tourinho Leal — Há tensão, o que é natural. E não é nova. Em 1968, Aliomar Baleeiro, então ministro do STF, publicou um livro chamado O Supremo Tribunal Federal, Esse Outro Desconhecido. No livro, ele enfrenta muito bem essa polêmica. A Constituição é uma carta política, um documento onde as garantias das pessoas estão disciplinadas. E há um tribunal encarregado de fazer valer essas garantias. Ao lado, temos poderes representados pelo povo, detentor das garantias dessa carta política, por meio de seus mandatários, que são o Executivo e o Legislativo. Esses dois poderes tratam de questões essencialmente políticas, ao lado de um tribunal responsável por guardar a carta política da nação. No funcionamento dessa engrenagem, é natural que haja tensões.

ConJur — A tensão pode virar crise?
Saul Tourinho Leal — Não é o caso, no Brasil atual. Crise é o AI-5. Crise é o que aconteceu nos Estados Unidos no governo de Franklin Roosevelt. Depois de ter várias medidas do New Deal [pacote de medidas do Executivo americano para combater a crise econômica chamada de Grande Depressão, por meio de enérgicas medidas de controle da economia] invalidadas pela Suprema Corte, Roosevelt enviou projeto de lei ao Congresso fixando que cada juiz da Suprema Corte que completasse 70 anos, ele poderia nomear outro. O objetivo era conseguir quórum para ver os atos do governo julgados constitucionais. O diálogo foi rompido. Isso pode ser classificado como crise.

ConJur — O projeto passou?
Saul Tourinho Leal — Não. Mas a decisão contra as medidas do governo de Roosevelt era apertada. Um juiz mudou de posição e o governo aprovou o que queria. Isso é exemplo de crise. No Brasil, não há isso hoje. Aliás, nunca em nossa história houve um momento tão prolongado de estabilidade. Veja o exemplo do caso do município Luís Eduardo Magalhães, criado sem a aprovação de lei complementar pelo Congresso Nacional com as regras para a criação dos municípios. O Supremo julgou inconstitucional a lei estadual que o criou, mas deu prazo de 24 meses para que o Congresso resolvesse a situação.

ConJur — Mas o Congresso não reagiu bem na ocasião…
Saul Tourinho Leal — O deputado  Michel Temer (PMDB-SP) reagiu dzendo que não cabia ao Supremo fixar data para que o Congresso legislasse. Importante a reação. É importante que os parlamentares subam à tribuna e reajam contra ações que julguem não ser condizentes com o Estado de Direito. Mas o Supremo não mandou o Congresso legislar. Apenas adotou uma medida de bom senso. O que o STF disse foi: “Se vossas excelências vão aprovar a lei ou não, não nos cabe dizer, mas em 24 meses temos um problema grave para resolver”. E o Congresso, ao que tudo indica, passada a tensão natural do caso, entendeu o espírito da decisão e deve aprovar uma emenda para resolver o problema.

ConJur — O senhor considera um avanço o fato de o Supremo ter determinado a suspensão de medidas provisórias que abriam créditos extraordinários, por considerar ausentes a necessária urgência e relevância?
Saul Tourinho Leal — O tribunal questionou se aquelas despesas eram, de fato, imprevisíveis e urgentes, como determina a Constituição Federal. E entendeu que não. O Poder Executivo cedeu à decisão e pelos indicativos — houve duas MPs suspensas e não ouve mais — me parece que uma nova postura pode vir do Palácio do Planalto.

ConJur — O que o senhor achou da mudança de postura do Supremo em relação ao Mandado de Injunção?
Saul Tourinho Leal — A idéia atribuída ao Mandado de Injunção no passado apequenava demais a Corte Suprema. A Constituição estabelece que determinado direito é garantido, mas é necessário que o Congresso Nacional o regulamente por meio de lei específica. O Legislativo não regulamenta o exercício do direito e as pessoas, na prática, não podem exercer um direito constitucional. A questão chegava ao Supremo e o que fazia o tribunal? Mandava um ofício ao Parlamento lembrando que ele tinha de editar determinada lei. Será que o Parlamento não sabia disso? O Supremo mudou de posição ao julgar o direito de greve dos servidores públicos para fazer valer sua legitimidade, para que a vitória de uma pessoa em um processo seja uma vitória efetiva. E a crítica de que o STF legislou não é honesta. Os ministros utilizaram a única espécie normativa que foi colocada disponível pelo próprio Legislativo, que foi a lei de greve do serviço privado, para suprir a lacuna. O Supremo não criou uma lei ou inventou nada. Apenas determinou que, enquanto o Legislativo não legisla, vale, no que couber, a lei de greve dos trabalhadores da iniciativa privada.

ConJur — O fato de o STF não ser formado por “representantes do povo” faz com que suas decisões, tomadas no vácuo dos outros poderes, tenham legitimidade precária?
Saul Tourinho Leal — As decisões do Supremo são legitimas, na medida em que, primeiro, atendem aos requisitos constantes da própria Constituição: são fundamentadas, tomadas de acordo com as regras de direito processual, com quórum suficiente para deliberação e a reconhecida competência da Corte para deliberar sobre o tema. Então, não há qualquer crise de legitimidade nas decisões, já que a própria Constituição autorizou que esse corpo de agentes desprovidos de mandato tivesse autoridade para guardá-la.

ConJur — O professor Luís Roberto Barroso escreveu que a judicialização não é uma opção ideológica do Judiciário, mas uma escolha do constituinte. O senhor concorda com isso?
Saul Tourinho Leal — A idéia do professor Barroso é perfeita. A Constituição de 88 é recheada de princípios, analítica, extensa. Ela garante o direito à saúde, à educação, à dignidade humana. Esses são conceitos jurídicos subjetivos. O guardião da aplicação desses princípios, por ordem da própria Constituição, é o STF. Se a carta é extensa e possibilita diversas interpretações e cabe ao Supremo fazer essas interpretações, como é que nós vamos defender uma atuação minimalista do tribunal? É difícil.

ConJur — Ou seja, o Supremo é ativista porque não tem outra alternativa?
Saul Tourinho Leal — A academia diz que vivemos a era do pós-positivismo. O positivismo trazia a idéia de que o juiz é a boca da lei. A lei é clara, o juiz diz o direito; a lei não é clara, os representantes dos outros poderes vão tratar de esclarecê-la. O juiz não tem de se aventurar em interpretá-la. Mas nós avançamos para o pós-positivismo. O juiz tem, sim, de interpretar a lei, e à luz dos princípios constitucionais. Diante desse quadro e com uma Carta extensa, o intérprete da Constituição, que é quem diz o valor dos princípios, ganha um campo grande de atuação.

ConJur — Diante disso, a omissão é que deve ser criticada, não o ativismo, certo?
Saul Tourinho Leal — O tribunal pode muito, para o bem e para o mal. Esse mesmo tribunal que é criticado por avançar na entrega de direitos pode destruir instituições, caso se negue a garantir esses direitos. Voltemos aos Estados Unidos, mas não à corte de Warren. O caso mais dramático da jurisprudência norte-americana talvez seja o caso Dred Scott v. Sandford. Em 1857, um escravo recorreu à Suprema Corte pedindo que fosse reconhecido seu direito à liberdade porque ele havia residido em um estado no qual a lei determinava que, se o proprietário morresse, o escravo ganharia a liberdade. Mas a viúva do proprietário do escravo, que vivia em outro estado, requereu a propriedade. Pela lei, o escravo deveria ser livre. Seu proprietário morreu e o estado reconhecia a liberdade neste caso.

ConJur — Mas a Suprema Corte se viu intimidada…
Saul Tourinho Leal — Porque contrariaria uma parcela imensa da aristocracia norte-americana da época. O juiz Taney negou o direito sem entrar no mérito da discussão, invocando um “obstáculo processual”. Isso é muito utilizado quando não se quer decidir. O obstáculo foi o seguinte: só um cidadão com direitos poderia postular em juízo e um escravo, claro, não tinha direitos. Logo, o pedido não poderia ser sequer considerado. Escravo é coisa. E, sendo coisa, não pode ser parte em um processo. O voto dele era carregado de preconceito, de ódio. Logo em seguida, eclodiu a guerra civil que gerou 600 mil mortos.

ConJur — Há casos de omissão do Supremo, paradigmáticos assim, no Brasil?
Saul Tourinho Leal — O caso Olga Benário. O Supremo tinha diante de si o pedido de extradição, para a Alemanha nazista, de uma mulher judia, grávida de um brasileiro [Luís Carlos Prestes], mas se omitiu. O advogado de Olga, Heitor Lima, veja que interessante, entrou com um pedido de Habeas Corpus para que ela continuasse presa. Ele pleiteava que queria vê-la julgada pelos crimes políticos que cometeu no Brasil. Não pleiteava sua soltura, mas sim que fosse devidamente processada, mas aqui, onde poderia ser assegurada sua integridade, apesar de tudo. E o Supremo poderia ter evitado sua extradição. Faltou ativismo, faltou a coragem que se vê hoje no Supremo. “Ah, mas o ministro que concedesse o pedido poderia ser aposentado compulsoriamente. Eram tempos de exceção”, podem alegar. Exatamente por isso é que tem de se defender, hoje, um Supremo que não sofra retaliações. Há um livro de Claudio Bojunga que traz uma frase de Getulio Vargas, no mínimo, curiosa: “A Constituição é como as virgens, nasceu para ser deflorada”.

ConJur — Qual é a origem do termo ativismo judicial?
Saul Tourinho Leal — O termo foi escrito pela primeira vez pelo jornalista norte-americano Arthur Schlesinger. O jornalista foi incumbido de fazer a radiografia da Suprema Corte dos Estados Unidos com o foco de como os juízes se portaram diante da política do New Deal. Ao mapear as decisões, ele percebeu que havia duas espécies de juízes: os que acreditavam que, se valendo de princípios, podiam avançar na interpretação da Constituição para garantir direitos; e os que consideravam não ter competência para isso e deviam apenas dizer o que era a lei de acordo com a norma escrita. Então, ele cunhou: uns são ativistas e outros praticam a jurisprudência defensiva ou de auto-contenção. Ele escreveu isso para a revista Fortune, em 1947. O termo se consagrou no ambiente acadêmico e hoje ocupa grande espaço no debate institucional.

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