Inferno judicial

Empresário e juíza montam "fábrica" de processos

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17 de janeiro de 2009, 9h18

Anaurilândia, cidade de oito mil habitantes no interior de Mato Grosso do Sul, foi o lugar escolhido pelo empresário Luiz Eduardo Auricchio Bottura para fixar seu mais novo negócio: uma indústria de processos contra desafetos.

Os números são reveladores. Dos 600 processos que tramitam no Juizado Especial da comarca, um quarto foi ajuizado por Bottura. O empresário também é autor de outras 35 ações em andamento na Vara Única local. Desde novembro de 2007, quando entrou com a primeira ação na cidade contra o ex-sogro, Adalberto Bueno Netto, e a ex-mulher, Patrícia Bueno Netto, o empresário acumula vitórias judiciais em primeira instância — e derrotas em segunda. Somente contra Patrícia e Adalberto, foram mais de 50 ações.

Bottura só sofreu um revés em primeiro grau — justamente quando a juíza Margarida Elisabeth Weiler, titular da Vara e do Juizado, estava ausente. O juiz substituto Cássio Roberto dos Santos julgou ineptas as petições iniciais de dois processos e decidiu que a comarca de Anaurilândia não era o foro adequado para processar outras três ações. Depois que Margarida Weiler voltou à ativa, a boa sorte do empresário ressurgiu.

Em pouco menos de um ano, Margarida acolheu e deu andamento a mais de 200 processos ajuizados por Bottura. No primeiro deles, uma Medida Cautelar de Alimentos e Arrolamento de Bens proposta em 7 de novembro de 2007, antes de mandar ouvir a parte contrária na ação, a juíza fixou pensão de R$ 100 mil em favor de Bottura — que deveria ser paga pelo ex-sogro. Também mandou apreender diversos bens na casa e no escritório de Bueno Netto e determinou a quebra dos sigilos bancário, fiscal e telefônico do ex-sogro e da ex-mulher do empresário, e dos familiares e empresas daqueles, mas a decisão foi suspensa pelo Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul. Até mesmo a Junta Comercial de São Paulo (Jucesp) foi processada na Vara de Anaurilândia, por rejeitar o registro de instrumentos das empresas de Eduardo Bottura.

Na última quinta-feira (15/1), Bottura foi preso pela Polícia Civil de Mato Grosso do Sul por falsificação de documentos, segundo o site do órgão. De acordo com os advogados da ex-mulher do empresário, Bottura teria apresentado uma petição passando-se por advogado da ex-esposa, forjando um pedido para que o processo de separação e arrolamento de bens fosse encaminhado à comarca de Anaurilândia. A situação motivou uma denúncia do Ministério Público estadual. Entre as acusações, estariam também a do uso de uma mesma guia de recolhimento de custas judiciais em diversos processos ajuizados pelo empresário.

Metralhadora giratória
As ações do empresário contra os Bueno Netto e diversas outras pessoas de qualquer forma envolvidas no caso foram surgindo em abundância. Apenas contra 13 dos advogados de seus desafetos, o empresário propôs 170 ações. São queixas-crime e ações de indenização por danos morais baseadas em alegações feitas pelos profissionais nas peças escritas que acompanham os processos, todas aceitas em Anaurilândia.

O assédio judicial levou oito advogados a entrarem com uma representação na comissão de prerrogativas da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, pedindo que a entidade se manifeste, já que eles estão sendo processados por atos praticados no exercício da função. Segundo o documento entregue no dia 17 de dezembro do ano passado à OAB, a estratégia do empresário é processar, por difamação e injúria, qualquer um que peticione contra ele ou suas empresas. Pelo menos quatro escritórios já abandonaram o caso devido a processos ajuizados por Bottura. Uma das advogadas da família Bueno Netto, Carla Rahal Benedetti, conta já ter sido processada 19 vezes. “Cada vez que peticionamos, sofremos uma ação por difamação”, diz.

Para ela, pior do que ter o nome envolvido em processos criminais é o trabalho em responder às ações que são aceitas pelo juízo nos confins do Mato Grosso do Sul. “A juíza chegou a marcar audiência em Anaurilândia, às 8h de um domingo de Páscoa. E, se eu não fosse, o processo poderia ser julgado à revelia”, diz a advogada. O excesso no número de ações propostas por difamação indica a intenção do empresário de prejudicar, segundo Rahal.

Fabrício Peixoto de Mello, outro advogado dos Bueno Netto, foi o mais processado por Bottura até agora. Nada menos que 50 ações foram ajuizadas, denunciando supostas difamações feitas pelo advogado nas peças processuais que escreveu ao defender seus clientes ou denunciar Bottura. Em uma delas, o juiz criminal Alessandro Leite Pereira, do Fórum Central do Juizado Especial Criminal da Barra Funda, em São Paulo, decidiu não receber as acusações — queixa-crime 050.08.015660-6/00. Segundo Mello, o juiz entendeu que “o advogado não pode responder por crime de difamação em razão de atuação profissional”, diz. O resultado foi uma ação movida por Bottura pedindo o afastamento do juiz do caso, alegando suspeição.

Os advogados que assinaram a representação entregue à OAB-SP querem que a seccional tome providências que ponham um fim nessa rotina. “De forma indireta, a ameaça é de não podermos trabalhar”, reclama Benedetti, responsável pela entrega do documento à entidade. “Quem protocola as queixas sabe que elas são ineptas, porque o advogado tem imunidade de ilicitude nas petições, mesmo em possíveis ofensas. E nós só citamos fatos incontestes”, afirma.

O pedido à entidade inclui a nomeação de um representante que defenda os advogados envolvidos a título de danos morais, e que ela apure desvios éticos nas atitudes dos representantes de Bottura na OAB de São Paulo e na de Mato Grosso do Sul. O processo ainda não foi analisado pela comissão de prerrogativas da OAB-SP.

Ato falho
Nem a própria Justiça escapou das ações. A juíza Ana Luiza Liarte, da 8ª Vara Cível do Foro Central da Capital paulista, também foi processada por Eduardo. A juíza de São Paulo, ao julgar uma queixa-crime movida pela família Bueno Netto contra o empresário, mandou que fossem tirados do ar blogs na internet que teriam difamado Patrícia e Adalberto. Foi o suficiente para o empresário mover queixa-crime também contra a juíza, por imputar “de maneira leviana em documento público a prática de crime de difamação ao autor, cometendo assim o crime de calúnia”, diz o pedido. O processo — de número 022.08.000182-5 — não só foi aceito por Margarida Weiler, como ela também intimou a juíza de São Paulo a comparecer em audiência. Uma acusação desse tipo, no entanto, só poderia ser apurada pela Corregedoria do Tribunal de Justiça paulista.

Semanas depois, Margarida Weiler percebeu o deslize e voltou atrás. “Trata-se de um equívoco imperdoável, não perceber ao despachar a inicial (entre inúmeras outras queixas-crime propostas pelo mesmo querelante, contra diversas pessoas), que a querelada é Juíza de Direito no Estado de São Paulo”, afirmou a juíza em despacho.

Caminhos cruzados
A ligação entre Eduardo Bottura e Margarida Weiler se deu por meio do advogado contratado pelo empresário para propor a primeira ação na comarca, Eduardo Garcia da Silveira Neto. Segundo os advogados dos Bueno Netto, Bottura, que sempre residiu em São Paulo, forjou a criação de domicílio na pequena cidade do interior de Mato Grosso do Sul e contratou o advogado, que teria amizade com a juíza titular da Vara Única, para obter vantagens.

O advogado e a juíza mantinham relação muito próxima, segundo a defesa dos Bueno Netto, a ponto de ela tê-lo indicado para o cargo de juiz leigo em Anaurilândia. Em uma representação protocolada pelos advogados no Conselho Nacional de Justiça, pedindo o afastamento da juíza dos casos envolvendo a família Bueno Netto, é citado um e-mail interceptado pelo Ministério Público de Mato Grosso do Sul, em que Margarida faria menção a intimidades com Eduardo Garcia.

De acordo com os advogados, Bottura teria se aproximado de Garcia para se aproveitar dessa vantagem, mas a defesa de Patrícia e Adalberto descobriu a ligação e pediu o afastamento da juíza por suspeição. O advogado — que teve tempo de fazer apenas uma petição em favor do empresário — acabou renunciando à representação de Bottura, o que permitiu que a juíza continuasse nos casos.

Fábrica fechada
Em segunda instância, as decisões da juíza foram caindo uma a uma e, recentemente, ela foi afastada dos processos que o empresário move contra o ex-sogro, a ex-mulher e as empresas da família, graças a uma decisão dada pelo do Tribunal de Justiça sul-mato-grossense. Em agosto do ano passado, a 4ª Turma Cível da corte, por unanimidade, declarou a suspeição da juíza nos casos envolvendo os Bueno Netto, ao analisar as declarações dadas por ela nas decisões em favor de Eduardo Bottura.

Ao conceder a primeira medida cautelar numa ação que pedia o arrolamento de bens da família Bueno Netto e pensão alimentícia em favor do empresário, Margarida Weiler destacou o “brilhantismo acadêmico” do autor, e seu “grande potencial empreendedor”. Já em relação à divergência entre Bottura e seu ex-sogro, Adalberto Bueno Netto, quanto à divisão do capital da sociedade empresarial que havia entre os dois, a juíza afirmou, na mesma decisão, que a resistência do pai de Patrícia era o efeito do que “acontece quando o discípulo (Eduardo Bottura) supera o mestre (Adalberto) ou dele tenta se libertar para caminhar sozinho”. A sociedade, chamada Golf Village, é dona de empreendimentos imobiliários em São Paulo, e tem patrimônio aproximado de R$ 1,7 bilhão.

As citações causaram estranheza ao relator do pedido de exceção de suspeição no tribunal do estado, desembargador Rêmolo Letteriello. “Por meio de suas decisões e despachos, a excepta construiu um clima insustentável de animosidade entre o juiz-estado e o adversário do demandante que admira e tem em alta conta”, afirmou o desembargador na decisão que declarou que a juíza “não tem mais condições de isenção para presidir processos de interesse do excipiente (os Bueno Netto, autores da suspeição)”. 

Já a representação movida pelos advogados no CNJ contra a juíza Weiler ainda não foi julgada. Eles pedem liminarmente que ela seja afastada de qualquer processo ligado aos Bueno Netto.

Campeões de audiências
Eduardo Bottura e a juíza Margarida Weiler também são freqüentadores dos tribunais como réus. O empresário é investigado em mais de uma dúzia de inquéritos policiais por crimes contra o consumidor cometidos por empresas que mantinha na internet, e tem contra si outra dezena de ações pelo mesmo motivo. Bottura e suas empresas respondem, ao todo, por mais de 700 processos espalhados em 24 estados. Já a juíza foi condenada à remoção compulsória pelo TJ-MS, em dezembro de 1999, por alterar decisões de processos julgados, dar despachos sem fundamentação coerente e desobedecer orientações da Corregedoria. Em outro processo, que corre em segredo de Justiça, ela é acusada de nove crimes pelo Ministério Público de Mato Grosso do Sul.

Segundo investigações do Procon de São Paulo, Bottura é sócio de empresas acusadas de enviar boletos de cobrança a consumidores que jamais compraram nada com elas, como WBPC e-vendas, WBPC Software, Easy Buy Comércio, Net Software e Net Cobranças — incorporadas mais tarde pela Webinvest Technologies, com sede em Londres, também pertencente a Bottura. As empresas, com sedes em diversos estados e pertencentes a Bottura e Claudinei Valentim, já receberam mais de mil reclamações dos consumidores só no Procon-SP. O órgão abriu mais de 500 processos.

Em 2006, a Easy Buy e a WBPC e-vendas estavam no ranking das 30 empresas mais reclamadas de São Paulo. Elas se destacavam em número de queixas nas áreas de alimentos, produtos de saúde, e de produtos em geral, devido a vendas feitas pela internet não autorizadas pelos consumidores, e por comercialização de produtos de saúde sem autorização da Anvisa. As informações são investigadas pelo Ministério Público do estado. Segundo a defesa dos Bueno Netto, apenas em Tocantins, os golpes renderam ao empresário R$ 18 milhões em apenas cinco meses. 

Bottura responde também a pelo menos 11 inquéritos policiais, a maioria movida pela família da ex-mulher, por ameaça e difamação. As acusações incluem ameaças por escrito e por telefone, difamações feitas em blogs inclusive em nome de terceiros, interceptações não autorizadas em e-mails e telefones da família Bueno Netto, além de estelionato, extorsão e falsificação de documentos. 

A juíza que abriu as portas para a enxurrada de ações movidas por Bottura também é alvo de denúncias na Justiça. Margarida Weiler responde a um processo movido pelo Ministério Público do Mato Grosso do Sul, que a acusa de nove crimes: abuso de autoridade, redução à condição análoga a de escravo (por três vezes), peculato, extravio, sonegação ou inutilização de livro ou documento, prevaricação (por 16 vezes), tráfico de influência, fuga de pessoa submetida a medida de segurança e exploração de prestígio. O processo, de número 2008.10000022876, está em segredo de Justiça. Segundo as denúncias, ela teria nomeado e exonerado juízes de paz desmotivadamente, decretado prisão civil sem que houvesse títulos de dívida, e deferido medida cautelar em favor da filha, que teve um carro apreendido. Teria também mantido, trabalhando em sua casa, detentos condenados à prisão em regime fechado, sob remuneração de meio salário mínimo, e facilitado a fuga de um deles. Em 2002, o TJ-MS rejeitou as denúncias, mas foi obrigado a instaurar o processo depois de um recurso especial do MP ser aceito no STJ. Margarida Weiler recorreu no próprio STJ, e depois no Supremo Tribunal Federal, mas ambas as tentativas foram frustradas. O caso ainda é julgado pela corte estadual.

O próprio cargo que a juíza ocupa em Anaurilândia se deve a uma condenação. Margarida Weiler foi removida compulsoriamente da comarca de Caarapó para a de Anaurilândia devido a acusações de peculato, prevaricação, tráfico de influência e abuso de poder. Completam a ficha acusações de transferências irregulares de presos, desobediência a instruções da Corregedoria-Geral de Justiça em relação à cautela de veículos apreendidos, e despachos irregulares.

Segundo acórdão do Conselho de Magistratura do TJ-MS contrário à juíza — citado no voto do ministro Jorge Scartezzini, do STJ, relator do recurso da juíza contra a decisão —, também “foi ela punida por descumprir reiteradamente a lei, alterando a orientação traçada pelo tribunal em recursos judiciais”, diz o ministro no relatório, fazendo o contrário dos “resultados obtidos após a reforma do que ela havia decidido. Foi ela ainda punida por ter substituído decisão proferida em processo judicial por outra de outro conteúdo”.

Ao analisar o recurso da juíza contra a remoção — Recurso em Mandado de Segurança 13.298-MS —, o STJ considerou ainda que a punição poderia ter sido maior: a de ser colocada em disponibilidade. “A recorrente foi beneficiada com a pena de remoção compulsória, em detrimento da pena de disponibilidade, que poderia lhe ter sido aplicada, já que, como assentado, eram unânimes os julgadores em apená-la”, disse o ministro Jorge Scartezzini, da 5ª Turma da corte. A juíza foi procurada por meio da assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça de Mato Grosso do Sul, mas não deu retorno sobre o pedido de entrevista até o fechamento da reportagem.

[Notícia alterada em 23 de julho de 2010, às 21h31, para correção de informações.]

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