Peso econômico

Judiciário deve refletir sobre os impactos das decisões

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14 de janeiro de 2009, 6h30

1. Introdução

Não é recente o debate travado em sede acadêmica e em alguns segmentos da intelectualidade nacional a respeito dos reflexos das decisões emanadas do Poder Judiciário nos setores social e econômico, com ênfase, é bem de dizer, no aspecto negativo da atuação jurisdicional.

Há importantes estudos, aqui e alhures, sobre o tema, todos com relevantíssimos contributos para a discussão que não é, anote-se desde logo, exclusividade brasileira, mas que aqui assume, por razões de ordem histórica, antropológica e sociológica, matizes bem peculiares.

A maioria dos trabalhos vem centrando fogo no trinômio morosidade-ativismo-conseqüencialismo como razão de ser da “insegurança judicial” que empacha o desenvolvimento e interfere na estabilidade das relações jurídicas.

A nosso ver, todavia, conquanto a abordagem até o momento realizada esteja longe de ser cerebrina, há alguns fatores que não vêm sendo levados em consideração, e a proposta do presente singelo ensaio é apenas somar alguns dados baseados em fatos concretos que permitam uma aproximação diferente.

Ao leitor pedimos paciência e parafraseamos Brás Cubas, que assim se manifesta ao intróito da monumental obra de Machado de Assis: “A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus”.

2. O bolor da abordagem tradicional

Não há margem para dúvidas quanto à magnitude e relevância (per fas ou per nefas) da atuação do Poder Judiciário na conformação da vida econômica de um Estado, mas a tentativa de reduzir a importância da questão a fórmulas simplistas certamente acaba por empecer a real importância do debate, afastando o observador do foco do problema que vai, no caso brasileiro, surpreendentemente além do maniqueísmo que parece se pretender estabelecer (juízes conservadores versus juízes alternativos, juizes autômatos versus juízes “conseqüencialistas” e outras dicotomias de duvidoso préstimo)

A tentativa de redução a categorias isoladas, embora de inegável valor no estudo das ciências humanas, mostra-se de pouca serventia na análise dos vetores multifacetados que compõem as organizações humanas, que compõem um universo sensível ao influxo de diversos fatores não passíveis de redução a formas simplistas.

A discussão sobre a postura do magistrado no exercício da atividade decisória já fora objeto de abordagem pela Escola da Exegese, depositante de absoluta confiança na completude da obra do legislador, a qual já traria em si todas as conseqüências de ordem social e econômica ambicionadas pela comunidade em um dado momento histórico.

A respeito da Escola da Exegese, Bobbio (1993, p. 242), citado por Tepedino (2001, p. 1), pontificava que “a imagem da codificação é a completude: uma regra para cada caso. O código é para o juiz um prontuário que lhe deve servir infalivelmente e do qual não pode se afastar”.

A insuficiência dos princípios preconizados pela Escola redundou na edição, já nas primeiras décadas do século XX, de chorrilho legislativo que hoje, açulado pela edição indiscriminada de medidas provisórias, atingiu níveis industriais, fazendo do aplicador do direito um diuturno pesquisador do dédalo normativo.

Embora pandectistas, exegéticos e alternativistas, cada um a seu modo e com o seu valor, tenham contribuído em muito para a evolução do estudo da norma em suas dimensões estática e dinâmica, é de se reconhecer que tais resultados mostraram-se, na prática das organizações, de pouca relevância, pois carecem, no mais das vezes, de substratos sociológicos e econômicos indispensáveis para o debate.

3. Necessidade do debate

A incerteza jurídica, raiz do propalado risco de crédito e, a fortiori, do risco para a economia como um todo, deriva não só da atuação do Judiciário, mas de todos os agentes que atuam no cenário jurídico, econômico e social. Ou, em outras palavras, eventual culpa pelo insucesso de um determinado modelo econômico não poderá jamais ser imputada a um só segmento da sociedade organizada.


Afirma-se que as decisões judiciais, atentas aos fins sociais a que a lei se destina, e, por isso, obedientes à vetusta monumental Lei de Introdução ao Código Civil, que, sexagenária, resiste bravamente ao furor legislativo, seriam a causa de um perverso “neopaternalismo”.

No Brasil, todavia, toda essa litania de viés econômico, que tantos contributos poderia trazer se escoimada de uma atávica retórica que, por vezes, beira à falácia, não tem objetivo outro senão escamotear um paternalismo estatal que contempla , desde os tempos coloniais, não as castas tradicionalmente consideradas hipossuficientes (consumidores, miseráveis, analfabetos e outros), mas precisamente aqueles que, hoje, se arrogam na condição de agravados pela quebra corajosa de alguns paradigmas que foram construídos sob a bandeira injustamente desfraldada do prestígio da propriedade e da intangibilidade das relações contratuais.

Daí a explicação, embora tardia, do título deste texto: cui prodest? A quem a incerteza jurídica afinal aproveita? Sim, porque embora absolutamente indesejada, a incerteza jurídica é servil a interesses que podem ser colhidos aos racimos na dinâmica da sociedade brasileira.

Sem a veleidade de esgotar o tema, o que pretendemos demonstrar é que grande parte das incertezas jurídicas são acicatadas por seus críticos mais acerbos com a finalidade abstrusa e aparentemente paradoxal de perpetuação do establishment. Tais críticos, em sua absoluta maioria economistas e juristas, são representativos de classes tradicionalmente aquinhoadas com faustosas benesses governamentais.

4. Incerteza jurídica tributária

Uma das searas mais sensíveis à incerteza jurídica e que mais presente se faz nos debates é a tributária.

No Brasil, historicamente existe uma resistência feroz ao pagamento de tributos, o que se justifica, em parte, pela gênese tributária brasileira, fundada no “quinto”, na “capitação” e na “derrama” do ciclo do ouro, sob os auspícios da Intendência das Minas.

A reação foi o contrabando do metal e o início de uma das piores mazelas brasileiras, qual seja a sonegação como conduta socialmente aceita, bem como a busca quase frenética por mecanismos lícitos de não pagamento de tributos: a elisão fiscal, que desenvolve a genialidade dos planejadores fiscais e abastece as burras dos maiores escritórios de advocacia do país.

Ives Gandra da Silva Martins, em seu fabuloso Curso de Direito Tributário, cunhou uma expressão que sintetiza o que vimos de dizer, ao se referir à norma tributária como “norma de rejeição social”, enquanto, em outras plagas, já se fala em “direito fundamental de pagar tributos”.

Uma legislação tributária enxuta, segura, eficiente e, portanto, capaz de oferecer ao empreendedor a tão propalada certeza jurídica, é tudo o que os paladinos do planejamento tributário e da vedação à interpretação econômica do fato gerador rogam aos céus, pois que naturalmente se abre à elisão sob a proteção de uma conveniente tipicidade cerrada do direito tributário.

Daí a necessidade de o legislador esmiuçar cada vez de forma mais prolixa, expletiva e minudente os elementos da obrigação tributária, tornando a tessitura normativa extremamente casuística e, portanto, susceptível de alterações, erros, inconsistências e ineficiências que se traduzem em incertezas.

Esse dédalo tributário é facilmente contornado, contudo, pela via do não pagamento do tributo tout court; pelo cada vez mais intrincado e freqüente planejamento fiscal ou pela postecipação do cumprimento da obrigação tributária com a obtenção de medidas de urgência junto ao Judiciário, pois que as frinchas deixadas pelo casuísmo são muitas, o que lhe é conatural.

Corolário, a arrecadação fica sempre sob ameaça do risco de credito público, motivo que leva o executivo-legislador a se valer das graveolentas medidas provisórias e de outros artifícios normativos tendentes a aumentar a carga tributária, causando um ciclo vicioso de uma incerteza jurídica tautológica.


É evidente que o pequeno e médio empresários não conseguem suportar a carga tributária ou mesmo entender a legislação para lhe dar correto cumprimento, o que tem levado, no decorrer das últimas décadas, à inviabilidade de inúmeros empreendimentos e ao recrudescimento do trabalho informal.

Não assim os grandes empreendedores. É que a incerteza jurídica tributária lhes favorece na exata medida em que, quando a dívida ativa atinge níveis impagáveis, de pouco em pouco tempo os premia o Executivo com a edição de programas de parcelamento que recebem os mais diversos apelidos. Lembramos, sem muito esforço, dos recentes Refis 1, Refis 2, Paes, Paex, Parsim (parcelamento simplificado) que, de tantos benefícios concedidos aos prestamistas, beiram a improbidade, mas asseguram uma arrecadação imediata diretamente proporcional ao desestímulo à pontualidade que instilam no sistema.

Basta, assim, para se prevalecer da incerteza jurídica, esperar, por um lustro ou menos, por uma benesse estatal, coisa que ao micro-empreendedor ou ao micro-empresário será impossível, pois antes disso já terão ido à débâcle financeira.

Apenas para que se tenha uma idéia aproximada do que vai dito, em 2006 a Dívida Ativa da União girava em torno de R$ 680 bilhões, dos quais 60% encontravam-se nas mãos de 10% dos devedores inscritos. Tais dados refletem a concentração dos grandes devedores, confiantes na incerteza jurídica e na certeza de futuros parcelamentos, remissões, anistias e quejandos.

Curiosa e apenas paradoxalmente, os setores mais pesadamente taxados são os mais rentáveis.

A edição 250 da revista Época, do ano de 2003, revelou que, no ano de 2002, uma empresa do setor do fumo obteve, sozinha, lucro líquido de R$ 960,8 milhões, 51% superior se considerado o ano anterior. Mais recentemente, a belgo-brasileira InBev comprou a norte-americana Anheuser-Busch, tornando-se a maior cervejaria do mundo.

Fica, portanto, a pergunta: Incerteza jurídica tributária: cui prodest?

5. Incerteza jurídica financeira

O setor financeiro é certamente o maior beneficiário da incerteza jurídica, e, apenas paradoxalmente, aquele que mais se insurge contra ela.

Os paladinos da teoria da incerteza jurídica como equivalente de incerteza judicial imputam às decisões judiciais, que epitetam de anti-credor, a culpa pelas elevadas taxas de juros de captação de curto prazo.

A recente elevação da taxa de juros pelo Comitê de Política Econômica em 0,75% ao ano é a mais contundente prova de que a paroxística taxa brasileira, de longe a maior do mundo, muito pouco tem a ver com a postura adotada pelo Poder Judiciário em suas decisões.

A explicação fiscal e monetária é muito mais plausível, sobretudo quando se constata que o fenômeno inflacionário se encontra diretamente sob o influxo de injunções de índole transnacional, como a recente alta dos preços dos alimentos e das commodities agrícolas.

A Constituição da República, em sua redação original, previa a regulamentação do Sistema Financeiro Nacional por “Lei Complementar”, inclusive no que concerne à fixação de taxa de juros anuais não superiores a 12% ao ano. Nesse particular caso, a incerteza jurídica, defluente da não edição da legislação intercalar, favoreceu de forma escancarada às financeiras, com o entendimento quase pacífico no sentido da recepção da Lei 4.595, de 1964, com eficácia passiva de lei complementar.

A Emenda Constitucional 40, de 2003, só veio a reforçar a incerteza in bonam partem em favor do sistema, porquanto pulverizou a regulamentação do setor em tantas leis complementares quanto se fizerem necessárias.

É curioso que justamente as maiores beneficiárias da incerteza jurídica venham arrogar a condição de vítimas de um sistema judiciário perverso, sistema judiciário que, com entendimentos já consolidados pela jurisprudência da Suprema Corte, sempre lhes foi francamente benéfico (vide a inconstitucionalidade do Finsocial sobre as empresas exclusivamente prestadoras de serviços ou o sufrágio judicial das taxas de juros extorsivas).


Nos Estados Unidos da América, país comumente utilizado como paradigma de segurança jurídica, a recente crise gerada pela dívida hipotecária sub-prime não impediu que a higidez econômica de gigantes do setor não ficasse seriamente afetada. O socorro estatal somente veio a posteriori, diversamente do que ocorre no Brasil, que estimula, com um comportamento paternalista a priori, a sinecura financeira.

Confiram-se os dados do Brasil das “incertezas jurídicas”: no primeiro trimestre, o Banco do Brasil registrou um lucro líquido de R$ 2,347 bilhões (crescimento de 66,6% em relação ao registrado no mesmo período de 2007 e, na comparação com o quarto trimestre do ano passado, a expansão foi de 92,9%). O lucro do Banco Itaú cresceu 7,4% no primeiro trimestre deste ano e o do Banco Bradesco 23,3%, atingindo R$ 2,1 bilhões no período.

Segundo o “Perfil das Maiores Demandas Judiciais no TJERJ” (2004), as ações movidas em face de instituições financeiras no Tribunal fluminense representam 41% do total de demandas ajuizadas nos Juizados Especiais Cíveis.

Na grande maioria dos casos, tais demandas configuram interessante método de prorrogação do pagamento de passivos, cediço que os juros praticados pelo Judiciário são substancialmente inferiores aos perpetrados pelas instituições financeiras, o que faz do Judiciário, antes de vilão, um involuntário parceiro no recrudescimento de receitas financeiras.

6. Incerteza jurídica: morosidade

É justamente neste ponto que deve ser apreciada a questão da morosidade da justiça brasileira como fator determinante de incerteza jurídica.

Se substanciais parcelas das demandas ajuizadas congregam no pólo passivo instituições financeiras, concessionárias de serviços públicos de telefonia e outras concessionárias, que se servem da alegada morosidade como meio de postergação de pagamento de passivos, a premissa da morosidade já se torna de duvidosa legitimidade e tangencia a petição de princípio.

De outra parte, se a morosidade judicial é um dado certo, parece-nos que também há na premissa uma irremissível contraditio in adjeto, pois que a alegada tardança na prestação jurisdicional já é um dado de antemão sabido da parte, que decerto aprovisionará a contingência em suas demonstrações financeiras e valer-se-á de todos os mecanismos para utilizar a disponibilidade de molde a gerar rendimentos atuais que superem os reveses judiciais futuros (partindo-se da incerta premissa de que sairão vencidas).

Renova-se, aqui, a pergunta proposta no título deste artigo: morosidade judicial: cui prodest?

Procura-se tributar a morosidade à má qualidade da legislação processual.

A nosso ver, a legislação processual civil brasileira já era, mesmo antes das recentes reformas implementadas a partir de 1995, uma das mais refinadas do mundo e capaz de assegurar a contento o direito da parte contra os males do tempo do processo.

A morosidade não é um instituto da técnica, mas do mundo de relação que tem a ver com fatores sociológicos e, mais recentemente, como visto, de índole financeira.

Sociologicamente, explica-se a morosidade pela formação ibérica do povo brasileiro, que recebe com suspeita todo ato que não conte, de alguma forma, com o sufrágio estatal. Confia-se mais no terceiro imparcial do que na contraparte que, assim como o interessado, conhece a fundo a raiz do negócio comum. Avulta a cultura do carimbo, da “cartorização”, da jurisdição graciosa como meio de oficialização de atos particulares absolutamente inanes à ordem jurídica justa.

O Poder Judiciário deixou de ser a ultima ratio. Ao invés, é o primeiro passo na resolução de conflitos de interesses que vão desde o pequeno entrevero entre vizinhos até as grandes demandas societárias.

Esta peculiar característica da formação da personalidade do homem brasileiro, tomada de empréstimo do homem ibérico por sua gênese, amesquinha as tentativas mais bem intencionadas de reduzir o passivo judicial, como, verbi gratia, as medidas paraestatais de solução de conflitos (mediação, arbitragem e quejandos) que não encontraram no solo brasileiro terreno virente, justamente pela carência do elemento judicial a lhe conferir a chancela estatal (absolutamente desnecessária nos povos de tradição oriental ou anglo-saxã).

Não se pode olvidar, outrossim, da busca da tutela judicial (também haurida em fontes adventícias mais recentes) que agasalhe a expectativa de potencial ganho fácil pela percepção de “danos morais”, confirmando o que Sérgio Buarque de Hollanda, em Raízes do Brasil, já identificava, na década de 30 do século passado, como um viés ibero-lusitano.

O Judiciário brasileiro vem dando tratamento adequado ao tema, ao balizar suas decisões pela tríplice vertente pedagógica, punitiva e retributiva.

7. Conclusão

Como se pretendeu demonstrar, o impacto sócio-econômico das decisões judiciais é assunto que merece aprofundamento e que deve ser enfrentado com a transparência e a coragem necessárias para dissipar as cortinas de fumaça que, vez por outra, procuram obnubilar o debate.

O fato é que a Justiça brasileira encontra-se atulhada de processos e vem procurando otimizar seus sistemas por meio de administrações gerenciais que possam desafogar os gargalos.

Toda tentativa será malograda, entretanto, se a alternativa judicial não for encarada como a última saída para a solução de conflitos intersubjetivos facilmente passíveis de resolução na via da autocomposição, sem que, com isso, se arranhe o cânone da inafastabilidade do controle jurisdicional.

Sem prejuízo de outras soluções, entendemos que a litigância de má-fé deve ser enfaticamente coarctada.

Demais, e de lege ferenda, entendemos que ao vencido em uma demanda judicial já não mais satisfaz a simples condenação nos ônus de sucumbência como única “sanção” pelo descumprimento de um preceito, o que só vem acoroçoando a violação do direito como solução financeiramente rentável.

Para além, parece-nos curial que se imponha aos litigantes habituais (inclusive ao Poder Público) outras espécies de reprimenda, que induzam à observância do direito ou à resolução amigável da lide quando isso não se revelar possível, corrigindo, assim, um mau vezo essencialmente brasileiro, que deita raízes na própria formação de nosso povo.

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