Tutor da lei

Supremo legisla como manda a Constituição

Autor

  • Zélio Maia da Rocha

    é sócio-fundador do Maia Advocacia procurador do Distrito Federal e professor no Instituto dos Magistrados de Brasília e na Escola Superior da Advocacia da OAB-DF. Foi conselheiro da OAB-DF e secretário de Justiça do Distrito Federal.

13 de janeiro de 2009, 7h00

O brasileiro deixou o ano de 2008 sem resolver um tema de grande relevância para toda a sociedade. Trata-se da questão do desrespeito à Súmula Vinculante 13 — que proibiu o nepotismo —, pelo Senado Federal que, no final do ano passado, sustentou tese de que poderia manter a prática em algumas situações.

Há de ser feita uma detida análise da questão posta, a fim de se evitar uma avaliação superficial e despida da necessária fundamentação. Para tanto, é preciso um estudo dos institutos jurídicos e filosóficos que estão envolvidos no debate. Julgo que tais institutos são: República, princípio da igualdade, princípio da anterioridade e os princípios da moralidade administrativa e da impessoalidade dos atos da administração pública. Claro que o debate não se circunscreve com exclusividade a tais institutos, como será demonstrado.

A edição de 15 de outubro de 2008 do jornal Correio Braziliense estampou em sua manchete: “Senado insiste no nepotismo”. A notícia mostra que a advocacia do Senado Federal emitiu um parecer considerando que “…um parente de parlamentar pode continuar trabalhando em algum gabinete caso tenha sido nomeado para o cargo de confiança antes da eleição do senador”. Um determinado senador justificou a manutenção de uma parenta, embasado no princípio da anterioridade de que fala o referido parecer, não tendo qualquer “ligação com a nomeação dela”. O debate decorreu da aplicação (ou não) da Súmula Vinculante 13 do Excelso Supremo Tribunal Federal.

No imaginário popular de hoje, nepotismo é sinônimo de irregularidade administrativa praticada por um agente do Estado ocupante de um cargo público que “emprega” um parente incompetente. Coloquemos essa expressão, no entanto, nos devidos trilhos técnicos.

Não há consenso sobre a origem da palavra nepotismo. Alguns vêem sua raiz no meio eclesiástico, pelo qual derivaria de “nepote”, que significa sobrinho. Nessa perspectiva, como a Igreja Católica não permitia às autoridades eclesiásticas terem filhos, essas autoridades davam, em suas administrações, grandes proteções a tais parentes, oferecendo-lhes cargos de grande importância. Outra fonte nos aponta para nepos, uma espécie de escorpião cujas crias, colocando-se no dorso materno, devoram a mãe.

Prefiro ver a expressão nepotismo sob esse último enfoque, ou seja, no sentido daquele que se apodera do Estado e visa apenas o benefício próprio, em detrimento da coletividade. Se o Estado sobreviverá ou não aos seus ataques, isso será percebido apenas pelas gerações futuras e pelos que não gozam de favorecimento estatal.

Assim, nepotismo consiste em condutas praticadas por agentes públicos que, utilizando-se dos postos estratégicos que ocupam na estrutura estatal, passam a nomear ou manter parentes em cargos de comissão em indiscutível prejuízo à coisa do povo (res publicum), que deveria ser plenamente preservada.

A Súmula 13, do STF, especifica: “A nomeação de cônjuge, companheiro ou parente em linha reta, colateral ou por afinidade, até o terceiro grau, inclusive, da autoridade nomeante ou de servidor da mesma pessoa jurídica investido em cargo de direção, chefia ou assessoramento, para o exercício de cargo em comissão ou de confiança ou, ainda, de função gratificada na administração pública direta e indireta em qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, compreendido o ajuste mediante designações recíprocas, viola a Constituição Federal.”

Muitas críticas têm sido feitas ao Supremo Tribunal Federal com o fundamento de que essa alta corte estaria atuando em desacordo com suas finalidades constitucionais, na medida em que estaria legislando e invadindo, pois, seara do Poder Legislativo.

É verdadeira a afirmação de que o Supremo está exercendo função típica do Legislativo. Não se diga, por outro lado, que essa corte está apenas interpretando a norma de forma simples, dando interpretação a um debate em torno de aplicação de norma jurídica. A atuação do STF, no caso da súmula vinculante 13 extrapola a atuação jurisdicional de simples aplicador do Direito ao caso concreto, utilizando-se dos instrumentos hermenêuticos postos à disposição do Judiciário. No caso em análise, ele está verdadeiramente legislando por súmula.


Indago: a edição de qualquer súmula decorre de quê? De reiteradas decisões proferidas em situações idênticas em que, com a repetição de manifestações judiciais, se faz necessário pacificar formalmente um entendimento. Tendo em conta nossa tradição positivista, isso acontece por meio da edição de súmula.

No caso do nepotismo, a Súmula 13 foi editada sem que tenha havido a necessária discussão sedimentada sobre o tema. Essa discussão somente se alcança depois de reiteradas decisões.

Não esqueçamos que as reiteradas decisões proferidas em casos concretos não podem incluir as proferidas em sede de controle abstrato, até porque tais decisões têm por si eficácia ex tunc e erga omnes, e seu conteúdo gera eficácia ipso jure. Antes de a Súmula 13 ser editada, tivemos apenas um mandado de segurança decidido pelo STF sobre o tema, o de número 23.780-5. Assim, a súmula em debate não partiu de reiteradas decisões, o que, por si só, já gera certa estranheza à luz da tradição do instituto, que busca dar segurança jurídica ao jurisdicionado.

A cada dia, o Estado é mais jurisprudencial, e o Legislativo não é o único a criar leis. Pelo contrário, em uma sociedade moderna, todos participam do processo criativo das normas e, como não poderia deixar de ser, o Judiciário participa intensamente dessa criação. Interpretar nada mais é do que criar direito novo para cada aplicação do Direito positivo e, nesse mister, ganham destaque as cortes encarregadas de promover a proteção da constituição. Assim, o Supremo não tem mais como negar a adjetivação de “corte constitucional”.

Sobre essa posição, nos ensina Mauro Cappelletti, citado por Inocêncio Mártires Coelho: “Com efeito — acentua Cappelletti —, pela singular posição institucional de que desfrutam, as cortes constitucionais não podem ser enquadradas nem entre os órgãos jurisdicionais, nem entre os legislativos, nem muito menos entre os órgãos executivos. É que — prossegue o mestre italiano — a elas pertence de fato uma função autônoma de controle constitucional que não se identifica com nenhuma das funções próprias de cada um dos Poderes tradicionais, mas se projeta de várias formas sobre todos eles, para reconduzi-los, quando necessário, à rigorosa obediência das normas constitucionais”. (“Curso de Direito Constitucional”, Ed. Saraiva, pág. 129 — obra coletiva com Paulo Gustavo Gonet e Gilmar Ferreira Mendes – 2007).

A função legiferante, pois, do judiciário, sobremodo das denominadas cortes constitucionais, com algumas resistências isoladas, se mostra uma realidade irreversível, da qual não podemos nos afastar.

O sistema republicano como princípio regedor

Todas as considerações tecidas até aqui têm por objetivo demonstrar que a Súmula 13 fugiu do tradicional campo de atuação da corte que a editou, que seguramente não atuou como simples intérprete da Constituição na hermenêutica jurídico-constitucional a que estávamos habituados. Ao contrário, o STF agiu como típico legislador positivo ao especificar, com detalhes, em quais hipóteses não pode haver nomeações. A súmula, pois, não interpretou direito existente, mas manifestou-se como típico ato normativo primário, que buscou fundamento de validade no texto constitucional, ou seja, no artigo 37, caput, da Constituição Federal. Quem nos dá notícia disso é o próprio STF, na referência legislativa constante em seu sítio eletrônico.

Como dito linhas atrás, esse não é o questionamento do presente artigo, que teria ocorrido de forma inadequada se ficássemos em uma avaliação rasteira e de conteúdo tecnicista ortodoxo. Não raro, se veem trabalhos técnicos em que são provados, sob a ótica estritamente de análise do ponto de vista do Direito Administrativo, que não há qualquer problema em se nomear parentes para os cargos em comissão, já que essa forma de nomeação decorre exatamente do elemento de confiança, e ninguém mais que o parente para inspirar confiança.


Não podemos, no entanto, como avestruzes, tapar os olhos para a realidade de que a esmagadora maioria dessas nomeações — se não todas — têm o intuito garantir renda aos familiares.

O Direito Constitucional brasileiro evoluiu, a meu ver, para melhor. Não se pode mais imaginar que as atribuições estatais devem ficar presas ao tradicional princípio da separação entre os poderes. Como se sabe, o poder estatal é uno e, o que se reparte, são as funções entregues a conjuntos de órgãos antes trancafiados no Poder Legislativo, no Poder Executivo e no Poder Judiciário.

A permanecermos nesse tirocínio, indaga-se: o que fazer se o Judiciário se omitir em sua função típica de julgar? Ficaremos sem função jurisdicional? O que fazer se o executivo se omitir? Ficaremos sem função administrativa do Estado? Claro que a todas essas perguntas temos uma resposta óbvia: a sociedade não pode ficar à mercê dos respectivos poderes em razão de possíveis omissões. Quando o judiciário se omite, isso pode gerar responsabilidade estatal em razão da aplicação do disposto no artigo 5°, inciso LXXVIII, da Constituição Federal. Quando o Executivo se omite, isso gera igualmente responsabilidade administrativa. E quando o Legislativo se omite essa omissão gera a possibilidade de outro poder legislar em seu lugar.

Vivemos hoje um inquestionável processo de omissões estatais, e isso em qualquer das funções do Estado brasileiro. No caso presente estamos diante da omissão do Legislativo em elaborar normas jurídicas hábeis a trazer ao mundo jurídico regramentos claros sobre o princípio da moralidade e da eficiência.

O Judiciário, pelo Supremo Tribunal Federal, pois, assume esse papel (para alguns de forma inadequada) onde, ante a absurda e flagrante omissão do legislador, editou a Súmula 13, verdadeiramente norma primária onde se impõem obrigações ao administrador público.

Muitos questionam esse agir do STF. Em uma primeira análise, como dito antes, realmente há de se afirmar como indevida tal atuação. Entretanto, tal crítica não vinga frente ao aprofundamento da questão.

Nos dizeres de Lassale, “a constituição é a lei fundamental proclamada pela nação” (“A essência da constituição”, Ed. Lumen Juris, pág. 22, 4ª edição). Não se pode esquecer, antes de tudo, que nação, para Lassale, é o povo em participação na vida estatal, é o povo efetivamente participante dos negócios do Estado, até porque o Estado nada mais é que a forma encontrada pelo homem para alcançar suas finalidades comuns.

O Estado nasce de um pacto firmado entre os integrantes de sua coletividade (o povo), que é formada com base nas necessidades individuais e busca, no ente fictício, denominado Estado, sua proteção maior. Melhor explicando: o Estado constitui-se a partir das necessidades dos indivíduos que se agregam para alcançar melhor seus objetivos.

Com essa lição simples percebe-se que os agentes, administradores do Estado, não estão a dirigir coisa própria, mas sim a coisa do povo (res = coisa; publicum = povo). Logo, qualquer decisão que conflite com a vontade desse povo deve ser tida como ilegítima, claro, respeitando-se as regras estabelecidas no pacto social maior, que é a Constituição.

Isso, aliás, não é novidade para absolutamente ninguém, eis que, já em 1757, Rousseau asseverou em seu clássico Contrato Social: “Haverá sempre grande diferença entre subjugar uma multidão e reger uma sociedade. Sejam homens isolados, quantos possam ser submetidos sucessivamente a um só, e não verei nisso senão um senhor e escravos, de modo algum considerando-os um povo e seu chefe. Trata-se, caso se queira, de uma agregação, mas não de uma associação; nela não existe nem bem público nem corpo político. Mesmo que tal homem domine metade do mundo, sempre será um particular; seu interesse isolado do dos outros, será sempre um interesse privado.” (“Nova Cultura”, da Coleção “Os Pensadores”, Rousseau, pág. 67).

E continua Rousseau em defesa do bem comum a fim de se alcançar a verdadeira liberdade individual: “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e seus bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes.” E ainda assevera: “A passagem do estado de natureza para o estado civil determina no homem uma mudança muito notável, substituindo na sua conduta o instinto pela justiça e dando às suas ações a moralidade que lhes faltava.”


O Estado é entregue a alguns para ser administrado; tais agentes, no entanto, não podem perder de vista que estão administrando a coisa pública e, portanto, devem praticar todos os atos tendentes a realizar apenas e exclusivamente o bem comum, afinal vivemos em uma república, onde a finalidade primária estatal é o bem comum de toda a coletividade. Qualquer ato estatal que não tenha esse pressuposto carece de legitimidade republicana.

Nesse contexto, qualquer ato estatal (ou omissão) que gere violação ao pressuposto republicano deve ser corrigido. Senão, corre-se o risco de o próprio povo buscar, por outras vias, a solução, o que nos faria retornar ao indesejável estado de natureza, onde todos, segundo Rousseau, agiriam de acordo com o seu instinto.

No caso do nepotismo resta evidente que não há qualquer fundamento para sua manutenção, em que uma pequena minoria, só por ocupar posições de destaque, está violando o princípio básico da igualdade, princípio este que está especificado no nosso contrato social (a Constituição). Exatamente para dar efetividade ao princípio republicano que tem na isonomia sua principal fonte é que o constituinte declarou, no artigo 37, que os atos da administração pública devem atender os princípios da impessoalidade e moralidade, dentre outros.

O nepotismo desrespeita a impessoalidade, na medida em que o requisito de escolha de um parente contradiz toda e qualquer vontade geral onde a impessoalidade é o vetor do estado republicano, porquanto prima pelo afastamento de todo e qualquer rumor de favores. A moralidade igualmente é conseqüência da impessoalidade e, uma vez violada esta resta evidente que é despido de moralidade o ato do agente que, administrando coisa pública, o faz por critérios particulares. Tais conclusões são evidências incontornáveis, pois pautam-se em critérios objetivos onde, uma vez nomeando ou mantendo parentes, há uma natural presunção de ausência de impessoalidade, igualdade e moralidade.

A prática do nepotismo é a demonstração que o antigo estado brasileiro, pautado em princípios quase monárquicos (em algumas regiões chamado de coronelismo) contraria toda e qualquer noção de estado democrático de direito. Compreende-se que aqueles que sugam do estado toda a sua seiva (nepos) não queiram largar a presa, até por falta de prática em lidar com o princípio da igualdade e da impessoalidade (sem mencionar moralidade).

O conceito de interesse público passou a ser difundido a partir da Constituição de 1988 e tal decorreu do fortalecimento das instituições como o Ministério Público, a Advocacia, imprensa, associações e o que falar do povo que alcançou o que nunca deveria ter-lhe tirado, o gerenciamento da coisa pública pelo direito de petição, ação popular, etc.

O texto constitucional vigente apresentou ao brasileiro diversos institutos com a finalidade de consolidar e Estado democrático. Dentre eles, se destaca o concurso público, porquanto, a par de acabar com o clientelismo, procurou primar pelos princípios da moralidade, igualdade e da impessoalidade. Só para se ter idéia, mesmo que o artigo 37 da Constituição não impusesse a regra do concurso público, este seria obrigatório sob pena de, sem ele, não restar atendidos tais princípios. Obrigatoriedade de concurso público não é um princípio, mas sim um instrumento de realização dos princípios da igualdade, da impessoalidade e da moralidade.

Com a previsão do concurso público como regra para o ingresso no serviço público, tem-se um avanço fenomenal na relação Estado/povo, na medida em que se procura, com isso, evitar que aqueles que “tinham a sorte” de ocupar um cargo público não possam mais usá-lo para beneficiar amigos e parentes com a distribuição de cargos. A coisa pública, sob esse aspecto, pois, não mais será utilizada por aqueles que exploravam o Estado como coisa sua e manifestando-se como verdadeiros parasitas. Tínhamos, antes de 1988, quase que um direito hereditário de acesso aos cargos públicos onde as negociatas eram pautadas na troca de favores entre os que detinham o poder, ou seja, o Estado era utilizado com finalidade específica para atingir fins privados e não fins públicos.


Com o passar do tempo (isso após 1988) os velhos hábitos dos igualmente velhos “donos do Estado” começaram a encontrar “jeitinhos” para continuar a se apoderar da coisa pública em exclusivo benefício privado. Aproveitando-se das exceções admitidas pelo artigo 37 (cargo em comissão), vários agentes públicos começaram a criar número excessivo cargos em comissão para continuar nomeando pessoas sem o necessário concurso público. Um dos órgãos que ainda insiste nessa pratica é o legislativo, notadamente o legislativo federal, onde os “nobres políticos brasileiros” nomeiam “apadrinhados” e, muitas vezes, parentes diretos.

Como o legislativo não elaborou qualquer norma proibitiva dessa prática, o Supremo Tribunal Federal resolveu pôr um fim à denominada farra dos parentes comissionados, e o fez editando a Súmula Vinculante 13, que especifica regras impeditivas das nomeações de parentes.

Não irei aqui entrar em minúcias sobre os casos específicos da súmula. Eis que esses são detalhes de menos importância, dada a seriedade do tema. Apenas resta ressalvado que a medida é moralizadora da relação entre o Estado e seus agentes e só o debate em torno da questão já é por si gerador de bons frutos para a democracia brasileira. O Legislativo, como poder encarregado não só de edição das normas jurídicas do Estado, mas também como fiscalizador das contas públicas (artigo 70 da CF), deveria dar o exemplo para evitar qualquer prática que possa levar a questionamentos éticos, e não agir como vem agindo, buscando meios para burlar a regra moralizadora editada pelo STF.

Talvez isso seja um sonho de um estudante de Direito que viu a Constituição brasileira, artigo por artigo, ser elaborada sob os discursos aguerridos e legítimos de Mário Covas, Ulysses Guimarães, Bernardo Cabral, dentre outros ilustres constituintes. O legislativo atual insiste em buscar meios para burlar a “determinação” do Supremo Tribunal Federal com teses mirabolantes de, por exemplo, invocar o princípio da anterioridade donde aqueles que tiverem sido nomeados antes do ingresso do congressista não sejam atingidos pela súmula, ou aqueles que ocupam cargos impeditivos e que sejam do quadro efetivo sejam exonerados do cargo em comissão para cessar o impedimento aos parentes — normalmente pessoas que não tiveram a capacidade de lograr aprovação em concursos públicos onde o princípio da moralidade e da impessoalidade são potencializados.

Sou contra a súmula visualizada sob uma perspectiva estritamente jurídica, pois entendo que ela foi editada sem cumprir seus requisitos constitucionais. Entretanto, algo precisava ser feito. O Legislativo descumpridor da constituição insiste em continuar sem regular a matéria exatamente para continuar a sugar a seiva que mantém viva a democracia criando assim um vácuo no Estado de direito que somente foi sanado com a atuação “legislativa supletiva” do Supremo Tribunal Federal mediante a edição da Súmula Vinculante 13. Ao Legislativo incumbe, em caráter primário, fazer as normas jurídicas necessárias ao cumprimento dos fins constitucionais. Ao se omitir, está colocando em risco o próprio Estado democrático de direito estampado no artigo 1° da CF.

O Supremo, como guardião maior dessa constituição, não tinha alternativa senão declarar o desrespeito às normas constitucionais regedoras da administração e o fez em boa hora, quando se espera que sejam editadas normas não para “revogar” a súmula, mas para trazer, até de forma mais detalhada, as regras inibidoras dessa prática canibal, que é o nepotismo. A prática deve ser combatida não só pelo Judiciário, mas por todos os integrantes da sociedade, que não pode ficar em silêncio frente a tamanho desrespeito ao princípio republicano e ao estado de direito.

Com tudo isso, se conclui que toda manobra feita com o fim de burlar a vontade constitucional de não nepotismo deve ser veementemente rechaçada pela sociedade que tem agora ao seu lado o poder judiciário para promover a caça a esses exploradores da coisa pública. Quem quiser ocupar cargo público que o faça ingressando pela porta da frente que é o concurso público, instrumento não só democrático como igualmente impessoal capaz de alçar dignidade a muitos brasileiros que se encontram à margem do poder e que certamente não lograria acesso aos cargos públicos por vínculo de parentesco ou amizade, pois por tais motivos normalmente só ascende ao poder aqueles detentores de melhores condições sociais e parentais.


Como dito no início deste artigo, o jornal Correio Braziliense de 15 de outubro de 2008 estampou que o nosso Senado Federal havia encontrado um jeitinho de burlar a Súmula 13. O jeitinho referido foi a não aplicação da referida súmula àqueles beneficiados pelo nepotismo que tenham ingressado no Senado antes do agente publico causador do impedimento constante na súmula, a isso se denominou princípio da anterioridade.

Independentemente da possibilidade ou não da aplicação desse princípio, resta claro que qualquer solução que seja dada por aquela casa legislativa no sentido de manter os parentes de agentes públicos que ocupam cargos de destaque na casa já é, por si nepotismo violador de todos os princípios referidos no corpo do presente artigo, notadamente o princípio republicano.

Só há uma medida a ser tomada e nenhuma outra mais: exoneração de todos aqueles que ocupam cargo em comissão e que se enquadrem na situação prevista na súmula. Alguma injustiça pode ser gerada? Claro que sim, mas em benefício do princípio da moralidade e da impessoalidade, as exceções não podem servir como norte para decisões de políticas gerais do Estado.

Na reportagem antes referida, o nobre senador Epitácio Cafeteiro, em defesa da manutenção de uma parenta, declarou: “Não tive qualquer ligação com a nomeação dela”. Ora, ninguém é inocente ao ponto de imaginar que isso seja verdade. Qualquer cidadão sabe que esse parente do nobre senador não saiu peregrinando pelos corredores do Senado apresentando seu currículo e pleiteando o cargo que hoje ocupa. É evidente que ela só se encontra no cargo por obra da interferência do parente senador e, se esse cargo não fosse ocupado por um parente, certamente estaria ocupado por alguém que se submeteu ao árduo processo seletivo de um dos mais difíceis concursos públicos deste país republicano, que procura eliminar políticas colonialistas de tradicionais exploradores do Estado, como é o caso do nobre senador Cafeteira.

Quanto ao princípio da anterioridade, realmente a súmula não esclarece se aquele que foi nomeado antes incorreria ou não na hipótese de incidência da súmula. Mas, como afirmado antes, sequer seria necessária a súmula para se chegar a todas as conclusões a que chegamos até aqui. A súmula nada mais é do que um resumo da vontade constitucional. Logo, não contempla todas as situações e não poderia se diferente.

O nepotismo se configura como utilização de cargos públicos para beneficiar parentes, para ocupar cargos em comissão, onde o parentesco é a fonte do fundamento da nomeação, assim como da manutenção dos parentes. Não se imagina que o dirigente irá fiscalizar com o mesmo rigor o parente, porquanto, apesar de o ocupante de cargo em comissão ter ingressado antes do parente gerador da vedação prevista na súmula, a sua continuação no cargo tendo como subordinado o parente gera uma natural tolerância, que não existiria numa relação sem parentesco. Veja que não se pode permitir, na avaliação do nepotismo, um critério subjetivo para concluir se o parente é ou não beneficiado de forma indevida. Esse benefício deve ser presumido, pois, como se trata de coisa pública, o critério a ser utilizado para proibir deve ser sempre objetivo, ou seja, se há o parente que possa influenciar no processo de nomeação se presume que o ingresso é indevido.

Com isso, é até possível — e isso não se questiona — que eventuais injustiças isoladas sejam cometidas. Entretanto, como já dito antes, em nome da moralidade e impessoalidade (princípios expressos na Constituição), devem ser desprezadas as situações isoladas em benefício de toda a coletividade.

A não aplicação da súmula gera inquestionável violação ao princípio republicano por seus consectários, que são a isonomia, a moralidade e a impessoalidade. Logo, são inconstitucionais quaisquer medidas que, direta ou indiretamente, ousem desrespeitar a súmula que, se não é o meio mais adequado para reprimir atos atentatórios aos princípios citados, é atualmente o único instrumento democrático e decorrente do Estado de Direito que o cidadão dispõe para repreender aqueles agentes públicos que insistem em administrar a coisa pública como típico patrimônio particular, gerando a convicção nos cidadãos em geral de que alguns se apoderam do poder apenas para realização de projetos pessoais e familiares.

A democracia no Estado de Direito gera a possibilidade de todos os poderes administrarem o Estado onde a clássica separação entre as funções do Estado traçada por Montesquieu não vige de forma absoluta, porquanto, ao conduzir os negócios do Estado, a sociedade pluralista tem voz ativa por si ou por seus agentes. Isso não se circunscreve apenas aos eleitos para tal, a por todos os agentes públicos de qualquer dos poderes, que devem agir sempre em nome do povo.

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