Retrospectiva 2008

Desesperança marcou a distribuição de Justiça em SP

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8 de janeiro de 2009, 12h07

Este texto sobre o Tribunal de Justiça de São Paulo faz parte da Retrospectiva 2008, série de artigos em que são analisados os principais fatos e eventos nas diferentes áreas do direito e esferas da Justiça ocorridos no ano que termina.

O maior tribunal do mundo, o Tribunal de Justiça de São Paulo, fez a travessia de 2008 como um paciente enfermo que conhece seus males, mas ainda não chegou a um diagnóstico majoritário entre seus integrantes para resolver seus problemas. Falta orçamento, investimento em tecnologia, gestão moderna, comunicação entre seus integrantes e liderança política capaz de construir consensos para superar as dificuldades de um grande tribunal.

Houve avanços, e isso é inegável, mas estes são ofuscados pela falta de racionalidade, pelo acúmulo de processos e por uma prestação de serviços que não satisfaz a demanda social dos paulistas que esperavam mais de seu Tribunal de Justiça. O Judiciário paulista não conversa consigo nem com a sociedade, numa falta de comunicação que deixam todos sem rumo.

Aos olhos do cidadão paulista que enfrenta a falta do poder público nos rincões do estado e na periferia das cidades, do ponto de vista da distribuição de justiça, 2008 foi um ano de desesperança. O Judiciário se mostrou ao homem comum apenas pelos fatos barulhentos e de grande comoção social. Por meio de flash apareceu como uma ferramenta de cidadania cada dia mais distante e lenta. Um serviço público de baixa qualidade.

Entre esses fatos, destaca-se o destino de Alexandre Nardoni e Anna Carolina Jatobá, acusados da morte da garota Isabella Nardoni. Em abril, o desembargador Canguçu de Almeida mandou soltar o casal com o argumento de que suspeitas não justificam prisão. Dias depois, o mesmo desembargador mudou seu entendimento e determinou a prisão dos dois. A segunda decisão foi confirmada depois por mais dois colegas da turma de Canguçu de Almeida.

Em novembro, o Órgão Especial do Tribunal de Justiça, por votação unânime, absolveu o promotor de justiça Thales Ferri Schoedl com a tese de legítima defesa no caso em que Thales era acusado de homicídio e tentativa de homicídio na Riviera de São Lourenço, em Bertioga, no litoral de São Paulo.

Fora dos holofotes

Outros fatos juridicamente importantes foram apreciados pelo Tribunal de Justiça, mas não mereceram a mesma atenção da sociedade. Às vésperas do Natal, a 15ª Câmara Criminal decidiu que o Ministério Público pode fazer investigação policial, como determina a Constituição Federal, mas esse poder tem limites. Por conta desse entendimento, anulou uma denúncia recebida pela Justiça de São Caetano do Sul, na Grande São Paulo.

A turma julgadora disse que o Ministério Público pode requisitar diligências, mas não tem poder para presidir inquérito policial em qualquer situação, muito menos o mesmo promotor de justiça que conduziu a investigação oferecer a denúncia. “Sempre que um órgão coloca sob seus tacões toda a Polícia, surge no ar um cheiro de ditadura. Portanto, é prudente cada profissional permanecer na esfera de especialidade”, afirmou o desembargador Pedro Gagliardi, condutor do entendimento vencedor.

A Justiça paulista tentou avançar na construção de novas regras para o seu funcionamento. A proposta de um Regimento Interno atualizado e antenado com os novos tempos não conseguiu se concretizar e ficou para ser aprovado em 2009.


A voz do dono

A Justiça estadual paulista também pôde ser vista com outros olhos, de dentro, a partir das ações de dois de seus integrantes que foram importantes pelo que fizeram e pelo que deixaram de fazer em 2008. Senão vejamos.

O ano começou com a esperança da sociedade no trabalho de Roberto Antonio Vallim Bellocchi, que ganhou a corrida de obstáculos para dirigir o maior tribunal do mundo e distribuir justiça para mais de 40 milhões de pessoas. Terminou com a vitória de João Agnaldo Donizeti Gandini, ex-sorveteiro, feirante, catador de papel e hoje juiz da comarca de Ribeirão Preto, ganhador de uma premiação nacional de democratização de acesso à Justiça.

O magistrado João Dinizeti conquistou o Prêmio Innovare, na categoria juiz individual, com seu projeto Moradia Legal, um programa de erradicação e reurbanização de favelas. Colocado em prática pelo juiz, o projeto já transformou a vida de mais de mil famílias, moradoras de favelas de uma das cidades mais prósperas do interior paulista, pólo da moderna agroindústria canavieira. Ribeirão Preto ocupa a 11ª posição no ranking das mais ricas do estado, de acordo com dados do IBGE.

A 300 quilômetros de Ribeirão Preto, o presidente Vallim Bellocchi gastou energia e neurônios na tarefa de dirigir o Tribunal de Justiça de São Paulo. Com disciplina e fôlego de esportista, percorreu milhares de quilômetros, visitando quase três dezenas de cidades para conhecer de perto os problemas enfrentados pelos magistrados de primeira instância.

Tenta a todo custo cumprir uma de suas principais bandeiras de campanha: administrar a Justiça paulista como um poder acessível aos magistrados. “Vamos trabalhar com diálogo. Essa será uma administração aberta à contribuição de desembargadores, juízes e servidores”, afirmou Bellocchi na primeira entrevista que concedeu à revista Consultor Jurídico, em dezembro de 2007, antes de assumir a presidência.

Mas ainda não se mostrou interessado em abrir o tribunal à sua principal clientela. Na primeira oportunidade que apareceu, não ajudou para que a sociedade paulista conhecesse o maior tribunal do mundo. O Anuário da Justiça Paulista, publicação da revista Consultor Jurídico, saiu com a ajuda de desembargadores, juízes, assessores, advogados, promotores e procuradores de justiça. Faltou a direção do tribunal, ausência sentida pelos presentes no lançamento da revista.

Bellocchi trabalhou muito — numa média diária de 12 horas — mas ainda não venceu a batalha pela modernização do Judiciário e pela prestação de serviço a altura da sociedade paulista. O presidente, assim como o vice, Antonio Carlos Munhoz Soares, e o corregedor-geral da Justiça, Ruy Pereira Camilo, são figuras que integram o pioneirismo doutrinário e a solidez da tradição e da cultura do Tribunal de Justiça paulista. Esse patrimônio único e inigualável precisa ser compartilhado pela sociedade.

Nesse primeiro ano de gestão, a dedicação e o planejamento do presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo apresentaram alguns resultados positivos, mas não foi suficiente para dirimir o maior problema enfrentado pelo Judiciário paulista: o grande número de feitos à espera de uma decisão judicial.

A demanda de mais de 18 milhões de processos na primeira instância e aproximadamente 600 mil recursos que aguardam exame no Tribunal, no lugar de decrescer, só fez aumentar. É claro que concorre para todo esse volume o conjunto de leis malfeitas e ausência de normas para grande parte dos conflitos que se apresentam à Justiça paulista.


Apenas um exemplo: em setembro, a Justiça paulista recebeu 470 mil novos processos. Somado ao acumulado dos oito meses anteriores, o número de feitos em andamento chegava a 17.797.569. Naquele período de 30 dias, foram proferidas pelos magistrados 371 mil sentença. Os 1.949 juízes de primeiro grau fizeram 135 mil audiências e cumpriram 78 mil cartas precatórias. Isso sem falar nas sessões de júri, que chegaram a 604 e dos acordos judiciais que somaram 15 mil.

A partir de agosto, decidiu ver de perto os problemas dos magistrados do interior. Em quatro meses, visitou as cidades de Monte Alto, Ribeirão Preto, Guaratinguetá, Bananal, Presidente Prudente, Rosana, Teodoro Sampaio, Presidente Venceslau, Registro, Cananéia, Iguape, Itanhaém, São José do Rio Preto, Fernandópolis, Jales, Assis, Dracena, Tupã, Avaré, Botucatu, Bauru, Ourinhos, Junqueirópolis, Pacaembu, Tupi Paulista e Panorama.

<B>Lentidão onerosa</B>

O maior tribunal do mundo sofre de uma estagnação que dura anos e trouxe efeitos que não se pode esconder embaixo do tapete como seu encolhimento político e jurisdicional. Hoje, o TJ paulista é uma corte de passagem espremida entre a primeira instância e os tribunais superiores que deixou de ter relevância na produção de jurisprudência nacional, apesar do prestígio e da competência da maioria de seus desembargadores. Esta competência é atestada pela escolhas de desembargadores paulistas para ocupar cargos de ministros nos tribunais superior. É o caso de Massami Uyeda e Sidnei Beneti, do STJ, e Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski, do STF.

A corte paulista vive perto do colapso pressionada pelo volume de processos que adormecem nos cartórios onde aguarda uma solução para os litígios e uma direção que não sabe que caminho tomar para racionalizar seu funcionamento, dar celeridade aos julgamentos e cumprir a tarefa constitucional de distribuir justiça. Fincado na mais robusta economia do país, que detém um PIB de R$ 727 bilhões e receita orçamentária prevista de R$ 96,9 bilhões, o tribunal paulista ainda não conseguiu espantar seus fantasmas.

Tudo ali é gigantesco. E ficou maior ainda com a unificação dos três tribunais de alçada ao Tribunal de Justiça. A unificação foi feita de sobressalto e sem planejamento. Estruturas diferentes de administração, informática e gestão passaram a conviver criando conflitos e emperrando a aplicação da justiça. Para se ter idéia, o que hoje é chamada de Seção de Direito Privado até antes da unificação tinha 10 câmaras, com cerca de 60 desembargadores. Agora, de tão grande, pois agregou os então juízes dos 1º e do 2º Tribunal de Alçadas Civil, teve que ser subdividida em Direito Privado 1, 2 e 3. São 37 câmaras ordinárias e uma especializada em falências e recuperação judicial, que reúnem 215 julgadores, sendo 179 desembargadores e 36 juízes de segundo grau.

A grandiosidade da máquina judiciária não acaba aí. São 1.949 juízes, cifra que dá uma média de mais de 20 mil habitantes por magistrado. Os doutores da lei estão distribuídos em 1.099 varas instaladas pelo interior do estado e outras 386 na capital paulista. Num estado com 645 municípios, o Judiciário se faz representar em 272 comarcas, com quase 2 mil unidades judiciárias instaladas e 44 fóruns distritais.

No segundo grau, são mais 82 juízes substitutos que ajudam os 356 desembargadores na tarefa de tentar construir um dique para represar o crescimento dos recursos que já estão na casa dos 600 mil. Isso para não falar na reserva de processos que aguardam uma decisão judicial em primeiro grau com a assombrosa soma de 18 milhões. Um exército de 44.323 servidores é responsável pelo funcionamento da máquina judiciária, mas o número de inativos (aposentados) representa 25% desse total (11.223).

Para fazer a locomotiva judiciária paulista se movimentar, a direção do tribunal conta com um orçamento que ela entende pífio. Em setembro, foi enviada ao Executivo a proposta de R$ 8,1 bilhões. O projeto foi cortado quase pela metade. A esperança da direção do Judiciário estadual está nas mãos da Assembléia Legislativa que vai aprovar o orçamento para o ano que vem.

A direção do tribunal se esforçou bastante, mas persistem os mesmos problemas que armaram o obstáculo de uma prestação de justiça célere, moderna e de qualidade, à altura da sociedade paulista. Esse é o desafio que se coloca no caminho do presidente Vallim Bellocchi e do grupo que está no poder do Judiciário paulista para o último ano de gestão. E o desafio reclama muito mais que a energia de um esportista. Requer habilidade política e administrativa e coragem para conquistar espaço capaz de garantir a independência da Justiça Bandeirante.

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