Acordo entre partes

Comportamento contraditório é proibido no direito contratual

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8 de janeiro de 2009, 18h30

Imaginem-se duas situações: na primeira delas, uma empresa administradora de cartão de crédito, que mantém a prática de aceitar o pagamento dos valores atrasados, repentinamente, alega rescisão contratual com fulcro em cláusula contratual que previa a extinção do contrato em caso de inadimplemento; na segunda, uma mulher deixa de assinar o contrato de promessa de venda e compra junto com o marido, mas em momento posterior declara em juízo a existência e validade do contrato, fundamento para a denunciação de outra lide. A mulher nada obsta à execução do contrato por mais de 17 anos, período em que os promissários-compradores exercem a posse mansa e pacífica sobre o imóvel, porém, depois de dado período, opõe-se ao pedido de outorga da escritura definitiva.

No primeiro caso, o Tribunal de Justiça de São Paulo mitigou a força da referida cláusula ao anunciar que a extinção do negócio jurídico não seria possível[1]. No segundo, entendeu o Superior Tribunal de Justiça que a mulher não pode se opor ao pedido de fornecimento da escritura definitiva[2]. Em ambos os casos, nossos tribunais aplicaram, com maestria, o conceito da inadmissibilidade do comportamento contraditório.

A locução venire contra factum propium [vedação do comportamento contraditório] encerra o exercício de uma posição jurídica contrária à conduta assumida anteriormente pelo exercente, constituindo assim um proceder injusto e, portanto, inadmissível. Trata-se de princípio básico de convivência nas relações jurídicas e sociais, que se funda na credibilidade e na segurança geradas pela conduta anterior e, conseqüentemente, na confiança despertada na parte que a recebeu.

Para António Manuel da Rocha e Menezes Cordeiro, “venire contra factum proprium postula dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos entre si e diferidos no tempo. O primeiro — o factum proprium — é, porém, contrariado pelo segundo. Esta fórmula provoca, à partida, reacções afectivas que devem ser evitadas”[3].

A doutrina da vedação do comportamento contraditório não foi sistematizada nos ordenamentos jurídicos, no entanto, sua não manifestação por forma de um dispositivo legal, como formulação autônoma, não obsta que seja aplicada como corolário das próprias noções de boa-fé objetiva e da função social do contrato.

O ordenamento jurídico brasileiro tardou em tratar da boa-fé objetiva de maneira genérica, como já o faziam o Código Civil Alemão[4], Italiano[5] e Francês[6], optando o legislador de 1916 por tratar da boa-fé de maneira específica, vinculando-a sempre a algum instituto.

O Código Civil de 2002, trilhando técnica moderna, erigiu cláusulas de conteúdo aberto para os contratos, modalidade que a doutrina usou denominar de cláusula geral, destacando-se a redação do artigo 422, que dispõe: “Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé”.

Na técnica casuística de formulação de normas, percebe-se que o legislador se preocupa em estatuir da maneira mais completa possível um amplo número de casos bem descritos, mostrando-se flagrante aversão a generalizações e conceitos jurídicos indeterminados.

Sendo assim, ante a detalhada tipificação de condutas que encerra, pouco hesitará o sujeito ao interpretar a norma, imprimindo ao corpo codificado certa rigidez e imutabilidade, apontadas por muitos estudiosos como o principal fator de envelhecimento dos Códigos Civis, haja vista a intangível ambição de se dar uma resposta legislativa a toda e qualquer situação fática da realidade.

Entretanto, se esse modelo de código, que pretendia abranger a totalidade dos atos possíveis e a imensa gama de diferentes comportamentos da vida privada, prevendo sempre soluções aos eventuais conflitos de interesses surgidos, já não se faz conveniente, isso não quer dizer que nenhum modelo de codificação esteja apto a disciplinar a vida civil e as relações jurídicas dela decorrentes.[7]

É nesse sentindo que se fazem imprescindíveis as cláusulas gerais. Diferentemente do modelo cerrado das fattispecies, características dos códigos penais, em que deve prevalecer sempre para a aplicação de uma pena o princípio da estrita legalidade, as cláusulas gerais configuram o meio apto para permitir a devida criação, complementação e desenvolvimento das normas jurídicas por parte do aplicador, o que confere maior adequação do corpo legislado à dinamicidade da vida social.

A viabilidade dessas cláusulas gerais para a constante ressistematização do Direito Civil decorre de sua própria estrutura, permeada de formulações cujos elementos dotam de significados intencionalmente vagos e abertos. É isso que ensina a doutrinadora gaúcha Judith Martins-Costa quando explica que “dotadas que são de grande abertura semântica, não pretendem as cláusulas gerais dar, previamente, resposta a todos os problemas da realidade, uma vez que essas respostas são progressivamente construídas pela jurisprudência”[8].

Não obstante a utilidade das cláusulas gerais para a constante reconstrução do Direito Privado, referidas cláusulas encerram, por outro lado, a insegurança por não terem bem estabelecidos seus limites. É justamente essa cinzenta moldura, que caracteriza sua estrutura, que, ao permitir a constante formulação de novas diretrizes, dota as cláusulas de conteúdo aberto de certa incerteza jurídica, o que torna imprópria a formulação de um código civil apenas, e tão somente, de cláusulas gerais. Destarte, é a consonância dessas duas técnicas de codificação, a casuística e aquela que o faz por meio de cláusulas gerais, que tornará um Código Civil seguro e flexível, protegendo pelo casuísmo as matérias de relevo que constituem o núcleo básico das relações civis e conferindo ao diploma legal a aptidão de acompanhar as necessidades da sociedade em constante transformação.

O mais célebre exemplo de cláusula geral no nosso ordenamento jurídico é o já citado artigo 422 do Código Civil. É esse artigo que, limitando a autonomia da vontade, dispõe sobre a boa-fé objetiva, dando margem à jurisprudência para a sistematização e o desenvolvimento dos chamados deveres instrumentais de conduta.

Sílvio de Salvo Venosa ensina que é possível perceber três nítidas funções da boa-fé objetiva no atual Código Civil, havendo outros dispositivos no referido diploma legal que reportam à sua temática[9]. A saber, a função de integração do negócio jurídico, materializada no já citado artigo; a função interpretativa do artigo 113[10] e a função de controle dos limites do exercício de um direito, do artigo 187[11].

Vez que os dispositivos mencionados referem-se à boa-fé objetiva, urge fazer a distinção da boa-fé subjetiva. A boa-fé subjetiva é aquela que leva em consideração o aspecto psicológico da parte, seu animus nocendi. Constitui contraponto à má-fé e já estava disciplinada no Código Civil de 1916, principalmente no estudo dos direitos reais, v.g. na aferição do estado de animosidade do usucapiente. Trata-se de um estado de consciência que significa a crença ou a ignorância que um sujeito tem acerca de determinado fato.

Já a boa-fé objetiva desliga-se completamente do elemento vontade, não interessando a opinio do agente ou qualquer outro aspecto de índole psicológica. Compreende a idéia de não fraudar a confiança alheia e possui caráter normativo, constituindo uma regra ética de conduta. É a boa-fé que pelos germânicos é conhecida como Treu und Glauben. Assim, não se opõe a idéia de má-fé e não se relaciona com a percepção ou com a ciência que o agente tem da realidade.

Destarte, entendemos que da boa-fé objetiva também decorrem os chamados deveres secundários ou acessórios, a saber, os deveres que não têm sua gênese na vontade das partes, mas surgem da boa-fé em si, atuando como fonte de integração do conteúdo pactuado no contrato. Dentre tais deveres estão o da lealdade, confiança, e segurança.

São justamente esses deveres que o venire contra factum proprium visa tutelar. Sendo assim, é vedado o comportamento do agente que, ao gerar uma confiança na parte com quem pactua, venha a contrariar os atos por si mesmo praticados, quebrando assim o dever de lealdade, gerando uma situação de insegurança jurídica.

Notas

[1] Dano moral. Responsabilidade civil. Negativação no Serasa e constrangimento caracterizado pela recusa do cartão de crédito, cancelado pela ré (administradora). Boa-fé objetiva. Venire contra factum proprium. Administradora que aceitava pagamento das faturas com atraso. Cobrança dos encargos da mora. Ocorrência. Repentinamente invoca cláusula contratual para considerar o contrato rescindido, a conta encerrada e o débito vencido antecipadamente. Simultaneamente providencia a inclusão do nome do titular no Serasa. Inadmissibilidade. Inversão do comportamento anteriormente adotado e exercício abusivo da posição jurídica. Recurso improvido (Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível 174.305-4/2-00, São Paulo, 3ª Câmara de Direito Privado A, Relator: Enéas Costa Garcia, J. 16.12.05, V. U. Voto 309).

[2] Promessa de compra e venda. Consentimento da mulher. Atos posteriores. Venire contra factum proprium. Boa-fé. A mulher que deixa de assinar o contrato de promessa de compra e venda juntamente com o marido, mas depois disso, em juízo, expressamente admite a existência e validade do contrato, fundamento para a denunciação de outra lide, e nada impugna contra a execução do contrato durante mais de 17 anos, tempo em que os promissários compradores exerceram pacificamente a posse sobre o imóvel, não pode depois se opor ao pedido de fornecimento de escritura definitiva. Doutrina dos atos próprios. Artigo 132 do CC. 3. Recurso conhecido e provido”. (Superior Tribunal de Justiça, Acórdão REsp 95.539/SP; REsp 1996/0030416-5, Fonte DJ Data: 14/10/1996, p. 39.015, Relator Mi Ruy Rosado de Aguiar (1102), Data da Decisão 03/09/1996, Órgão Julgador: Quarta Turma

[3] CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil. Lisboa: Almedina, 2001, p. 745

[4] Dispõe o parágrafo 242 do Bürgeliches Gesetzbuch: “O devedor deve [está adstrito a] cumprir a prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração pelos costumes do tráfego jurídico.” A referida tradução do parágrafo 242 do BGB pode ser encontrada na obra: MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: RT, 2000, p. 287.

[5] “Artigo 1337 — Trattative e responsabilità precontrattuale Le parti, nello svolgimento delle trattative e nella formazione del contratto, devono comportarsi secondo buona fede.”

[6] É interessante ainda notar que é desse mesmo dispositivo legal do Code Civil que trata da boa-fé objetiva, a célebre assertiva de que o contrato “faz lei entre as partes”: “Artigo 1134: 1. Les conventions légalement formées tiennent lieu de loi à ceux qui les ont faites. 2. Elles ne peuvent être révoquées que de leur consentement mutual, ou pour les causes que la loi autorise. 3. Elles doivent être exécutées de bonne foi.”

[7] Nesse sentido: MARTINS-COSTA, Judith. O Direito Privado como um “sistema em construção” – As cláusulas gerais no Projeto do Código Civil brasileiro. Publicado em: Revista de Informação Legislativa. a. 35. 139 jul./set. 1998. Brasília.

[8] Ibid. p.8.

[9] Cf. VENOSA, Sílvio de Salvo. Direito Civil. v.II. 6. ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 376.

[10] Artigo 113, CC: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.”

[11] Artigo 187, CC: “Comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes.”

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