Retrospectiva 2008

Espaço do Supremo em assuntos constitucionais aumentou

Autor

  • José Levi Mello do Amaral Júnior

    é professor associado de Direito Constitucional da USP professor do mestrado e do doutorado em Direito do Ceub livre-docente doutor e mestre em Direito do Estado procurador da Fazenda Nacional cedido ao TSE e secretário-geral da Presidência do TSE.

6 de janeiro de 2009, 10h44

Este texto sobre Direito Constitucional faz parte da Retrospectiva 2008, série de artigos em que são analisados os principais fatos e eventos nas diferentes áreas do direito e esferas da Justiça ocorridos no ano que termina.

A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal vem determinando progressivo reforço à jurisdição constitucional brasileira. Em outras palavras, o espaço de decisão — de arbitragem — do Supremo Tribunal Federal sobre assuntos de natureza constitucional tem se dilatado cada vez mais.

Isso porque o âmbito da jurisdição constitucional é diretamente proporcional à amplitude da própria Constituição. Ora, como a Constituição brasileira é minuciosa sobre quase todos os assuntos possíveis, o material aos cuidados do Supremo é, por definição, extenso.

O fenômeno foi flagrado com precisão, ainda nos primeiros anos da Constituição vigente, por Manoel Gonçalves Ferreira Filho, em artigo publicado na Revista de Direito Administrativo (vol. 198, págs. 1-17, de outubro a dezembro de 1994), de título sugestivo: “Poder Judiciário na Constituição de 1988: judicialização da política e politização da justiça”.

Há, nisso, espaço para uma postura mais ativista do Poder Judiciário em geral e do Supremo Tribunal Federal em particular. Em verdade, constata-se fluxo e refluxo de ativismo na jurisprudência do Supremo ao longo do tempo. Basta recordar a doutrina brasileira do Habeas Corpus, que — ainda no início do século XX — expandiu, por construção jurisprudencial, as liberdades protegidas pelo citado remédio constitucional.

Matérias constitucionais de grande repercussão decididas pelo STF em 2008

O ano de 2008 foi emblemático quanto a esta realidade. Confira-se a pletora de questões apreciadas pelo Supremo Tribunal Federal no curso do ano que está a findar:

1. Em 14 de maio de 2008, foi deferida liminar nos autos da Ação Direta 4.048, relator ministro Gilmar Mendes, ajuizada pelo PSDB contra medida provisória que abrira créditos extraordinários que somavam valor próximo a R$ 5,4 bilhões. Seguindo o relator, o tribunal entendeu que as rubricas abertas não eram imprevisíveis e urgentes, requisitos constitucionais à abertura de créditos extraordinários, única espécie orçamentária admitida à medida provisória. Houve, nisso, importante modificação na jurisprudência da corte. Até então, qualquer matéria orçamentária era excluída do controle abstrato de normas, ao argumento de que leis orçamentárias seriam leis de efeitos concretos, destituídas de generalidade e abstração. A ministra Cármen Lúcia — ao conhecer da ação direta — afirmou que deixar a espécie a salvo do controle abstrato de normas seria criar cavalo de tróia no controle de constitucionalidade. No mérito, a ministra distinguiu entre “imprevisão”, “imprevisibilidade” e “imprevidência” para deixar assente que é dever de uma boa administração o prever e o não prever é uma imprevidência. O ministro Carlos Britto destacou haver graus de urgência na Constituição e que a imprevisibilidade — factual ou institucional — é um plus no significado da própria relevância de medida provisória no caso de crédito extraordinário. Por sua vez, o ministro Celso de Mello, com a habitual lucidez, lembrou que o excesso de medidas provisórias — e os sucessivos trancamentos das pautas parlamentares decorrentes — implicam indevida interferência no “poder de agenda” das casas do Congresso Nacional. Em suma, o Supremo concluiu que a Ação Direta não impugnava o conteúdo dos créditos abertos, mas, sim, o real enquadramento deles na categoria extraordinário, única — insista-se — permitida à medida provisória. A partir daí, examinou a previsibilidade ou não dos créditos impugnados. Este precedente foi reiterado em 5 de novembro de 2008 (liminar deferida nos autos da Ação Direta 4.049, relator ministro Carlos Britto, também ajuizada pelo PSDB).


2. Em 29 de maio de 2008, foi julgada improcedente a Ação Direta 3.510, relator ministro Carlos Britto, ajuizada pelo procurador-geral da República, relativa a pesquisas com células-tronco embrionárias. Esta Ação Direta — cujo tema de fundo suscitou viva polêmica na sociedade — deu ensejo à primeira audiência pública promovida pelo Supremo Tribunal Federal, bem assim comportou a manifestação de diversos amici curiae.

3. Em 4 de julho de 2008, o Plenário do tribunal negou referendo à decisão monocrática do relator da Ação Direta 3.937, ministro Marco Aurélio, concessiva de liminar para suspender a eficácia de lei estadual que proíbe o uso de amianto. Há diversos precedentes no sentido da decisão monocrática não referendada, dada a existência de lei federal sobre o assunto. Ademais, tradicionalmente, o manejo do amianto era compreendido pela corte como sujeito à competência privativa da União para legislar sobre comércio interestadual (Constituição, artigo 22, inciso VIII). Por isso, a decisão em causa é estratégica para determinar como a nova composição do Supremo Tribunal Federal compreende o federalismo brasileiro. Na prática, a decisão implica manter vigente lei estadual que contraria lei federal pré-existente sobre a matéria, dado o influxo do direito à saúde (Constituição, artigos 6º e 196) que se passou a reputar relevante para o deslinde da espécie.

4. Em 6 de agosto de 2008, o tribunal julgou improcedente a ADPF 144, relator ministro Celso de Mello, em que a Associação dos Magistrados Brasileiros pretendia tornar inelegíveis os cidadãos que estivessem a responder processos judiciais. O relator entendeu que a procedência da ADPF implicaria ofensa à presunção de inocência e ao devido processo legal. Sobre a construção interpretativa pretendida pela associação requerente, o ministro Eros Grau afirmou: “Ninguém está autorizado a ler na Constituição o que lá não está escrito, prática muito ao gosto dos neo e/ou pós-positivistas, gente que reescreve a Constituição na toada de seus humores”. Na mesma linha, o ministro Gilmar Mendes afirmou que “o Direito deve ser achado na lei, não na rua.”

5. Em 12 de novembro de 2008, foram julgadas improcedentes as Ações Diretas 3.999 e 4.086, ambas da relatoria do ministro Joaquim Barbosa, ajuizadas pelo Partido Social Cristão e pelo procurador-geral da República contra resoluções do Tribunal Superior Eleitoral que disciplinam o processo de perda de cargo eletivo em decorrência de desfiliação partidária sem justa causa, bem como o processo de justificação de desfiliação partidária. O tribunal fez valer precedentes de 2007 sobre infidelidade partidária, em que já acenara com a possibilidade de o Tribunal Superior Eleitoral disciplinar a matéria até que o Congresso Nacional o faça.

6. Em 26 de novembro de 2008, nos autos do Inquérito 2.424, relator ministro Cezar Peluso, o tribunal recebeu denúncia contra magistrados, inclusive um ministro de corte superior. Trata-se de decisão que merece registro, sobretudo, pelo nível funcional dos investigados que se tornaram, com a decisão, réus em ação penal.

7. Em 2008, foram editadas dez das 13 súmulas vinculantes já existentes: (1) vedação do uso do salário mínimo como indexador fora dos casos previstos pela Constituição; (2) desnecessidade de defesa técnica por advogado em processo administrativo disciplinar; (3) possibilidade de o soldo de praças em prestação de serviço militar ser inferior ao salário mínimo; (4) eficácia limitada da norma sobre juros que constava da Constituição; (5) natureza tributária das contribuições previdenciárias e prazos prescricionais e decadenciais a elas aplicáveis enquanto créditos tributários que são; (6) aplicabilidade, sob a Constituição de 1988, da perda dos dias remidos no caso de punição do preso pelo cometimento de falta grave; (7) obrigatoriedade de observar a reserva de plenário para o fim de afastar a aplicação de lei ou ato normativo do poder público; (8) limites ao uso de algemas; (9) inconstitucionalidade da cobrança de matrícula nas universidades públicas; e (10) inconstitucionalidade do nepotismo.


Outros processos relevantes já começaram a ser examinados pelo Supremo Tribunal Federal e, provavelmente, terão julgamento final nos primeiros meses de 2009. Vale mencionar, a propósito: (1) a ADPF 54, relativa à anencefalia; (2) a ADPF 101, sobre a importação de pneus usados, matéria sobre a qual a corte já esboçou entendimento — favorável à proibição — quando do julgamento da Suspensão de Tutela Antecipada 171, em 12 de dezembro de 2007; e (3) a Petição 3.388, em que se discute a demarcação da reserva indígena Raposa Serra do Sol. Neste último caso, a teor de manifestação em Plenário do ministro Gilmar Mendes, é possível que a causa conheça decisão que passe pela compreensão da própria federação brasileira no que se refere à fidelidade (ou lealdade) federativa.

A prisão civil por dívida segue suscitando debate dos mais interessantes. O Supremo Tribunal Federal reviu jurisprudência e passou a não mais admitir a prisão civil por dívida (HC 87.585, RE 349.703 e RE 466.343, julgados em 3 de dezembro de 2008). Porém, ainda há ponto da maior importância a ser definido: qual o status dos tratados internacionais em matéria de direitos humanos? Tradicionalmente, a corte os compreendia com força de lei ordinária. A Emenda Constitucional 45, de 2004, pareceu reforçar esta leitura, ao agregar um parágrafo 3º ao artigo 5º da Constituição, no sentido de que “os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais”. Em outras palavras, sem esta providência formal, os tratados — ainda que sobre direitos humanos — teriam força de lei ordinária. No entanto, o Supremo mostra-se inclinado a reconhecer status constitucional a todos os tratados sobre direitos humanos (não apenas do ponto de vista material, o que é da natureza das coisas, mas, também, do ponto de vista formal). Isso só ficará claro quando de novos julgamentos sobre o assunto. Se acaso também houver modificação de jurisprudência no ponto, haverá sensível reflexo sobre o próprio parâmetro de controle de constitucionalidade. Isso porque — confirmada a hipótese — sofrerá ele sensível alargamento: à Constituição e ao ADCT somar-se-ão todos os tratados sobre direitos humanos de que o país seja parte.

Também merece registro o pleno uso do critério da repercussão geral para o conhecimento de recursos extraordinários. O critério já determina redução no número de recursos desta espécie em tramitação na corte. Ao todo, em 2008, os ministros receberam algo em torno de 40% menos processos do que na média anterior à aplicação do critério da repercussão geral (cf. dados divulgados em 19 de dezembro de 2008).

As supremas cortes americanas

A literatura americana é muito atenta à U. S. Supreme Court, examinando-lhe, exaustivamente, os indicados, os justices (os magistrados da corte), as decisões e suas repercussões, as fases históricas vividas, etc..

É muito comum a identificação de diferentes fases históricas vividas pela U. S. Supreme Court, normalmente caracterizadas pela orientação que os justices imprimiram à jurisprudência da corte.


Tais fases são habitualmente referidas pelo nome do chief justice, até porque o justice que preside a U. S. Supreme Court não cumpre um mandato de prazo certo, mas, sim, é indicado pelo presidente dos Estados Unidos para a função e nela permanece até renunciar, aposentar-se, faltar-lhe o good behaviour ou a vida (Artigo III, Seção 1, da Constituição dos Estados Unidos da América, o que também se aplica aos associate justices).

Assim, um chief justice tem a oportunidade de marcar longa e profundamente os trabalhos da U. S. Supreme Court. Exemplo notório é o da Corte Marshall, longo período em que a Corte foi presidida pelo célebre John Marshall, de 1801 a 1835, mentor de compreensões jurisprudenciais que repercutem até hoje, nos Estados Unidos e em outros países, inclusive o Brasil. Isso a começar por todo um modelo de controle de constitucionalidade (Madison vs. Marbury), sem prejuízo de deduções pontuais, porém marcantes, como a doutrina dos poderes implícitos e o princípio da imunidade recíproca (McCulloch vs. Maryland).

A Corte Gilmar Mendes

É possível fazer análise similar relativamente ao Supremo Tribunal Federal brasileiro. Claro, no constitucionalismo brasileiro mais recente, os presidentes do Supremo observam mandatos fixos de dois anos. Porém, ainda assim, têm tempo suficiente para imprimir — e imprimem — marca pessoal à conduta da corte, ainda que ela seja a marca de uma elegante e equilibrada discrição, como foi o caso da ministra Ellen Gracie.

Há ministros que marcam todo um período, independentemente de ocuparem ou não a Presidência. Exemplo recente foi o ministro Moreira Alves, que durante quase 30 anos foi determinante para os rumos do Supremo Tribunal Federal.

Em sessão plenária recente, o ministro Marco Aurélio — outro ministro de grande estatura na história da corte — deu bonito testemunho sobre a importância do ministro Moreira Alves, dele lembrando faceta do maior relevo: já decano e, portanto, último a votar, não deixava de debater intensamente com o mais moderno (primeiro a votar depois do relator), mostrando-lhe precedentes e respectivas razões.

Pois bem. Parece que o ano de 2008 já é suficiente para identificar uma Corte Gilmar Mendes. Para tanto, basta lembrar o papel do atual presidente do Supremo Tribunal Federal para a consolidação de elementos antigos e novos que passaram a caracterizar a corte. A propósito, importa mencionar alguns exemplos: (1) foi ele quem difundiu no Direito brasileiro a idéia do efeito vinculante, ainda antes de compor o tribunal, no que aprofundou — e muito — a força vinculante que já constava do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal; (2) na Presidência da corte mostra-se intransigente: (a) na objetivação e defesa dos direitos fundamentais, mormente por meio de Habeas Corpus; (b) no fortalecimento do controle abstrato de normas, em favor da segurança jurídica; (c) na racionalização da administração judiciária (no que dá seguimento a esforços profícuos dos ministros Nelson Jobim e Ellen Gracie no Conselho Nacional de Justiça).

Conclusão

O Supremo Tribunal Federal, no exercício da jurisdição constitucional, desempenha papel contra-majoritário, ou seja, no controle (ou revisão) da atividade dos demais poderes, faz valer a Constituição, ainda que o faça contra a vontade do governo ou da maioria parlamentar do dia. Há, nisso, importante função política da corte, o que não significa a sua partidarização. Ao contrário. Com efeito, diversos dos julgados antes referidos atestam que o tribunal cumpre — e cumpre a contento — o seu papel contra-majoritário.

Insista-se: a postura atual do Supremo — quiçá ativista — reflete a amplitude da jurisdição constitucional na Constituição de 1988. Enseja uma nova acomodação entre os poderes constitucionais. Prova, empiricamente, a judicialização da política e a politização da justiça. Requer, portanto, prudência para que, do novo estado de coisas, não resulte atritos institucionais, mas, sim, amadurecimento das relações político-institucionais democráticas.

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