Disciplina e hierarquia

Nomeação de Lacerda a Portugal soa como escárnio

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2 de janeiro de 2009, 14h41

A nomeação do delegado aposentado Paulo Lacerda para adido policial em Portugal, cargo com vencimentos pagos em dólar, que podem chegar a R$ 40 mil, criado especialmente para acomodá-lo, como prêmio de consolação pelo afastamento definitivo da direção-geral da Abin, soa como um escárnio aos princípios da hierarquia e disciplina, constantemente pregados pelos dirigentes da Polícia Federal.

Os motivos da saída do delegado Lacerda, que antes de assumir a Abin dirigiu a PF no primeiro mandato do presidente Lula, de 2003 a 2006, há semanas pautam o noticiário nacional. Até o momento, as investigações não confirmaram a existência de grampos telefônicos clandestinos ou a participação de agentes da Abin na sua execução, durante a “Operação Satiagraha”.

Independente da comprovação de supostos grampos ilegais, sabe-se que mais de 80 agentes da Abin participaram da já famosa operação policial, inclusive para analisar escutas telefônicas, sem o conhecimento do atual diretor-geral da PF, o delegado Luiz Fernando Corrêa. Nem do juiz federal e do procurador da República que atuam no caso.

O coordenador (ou estrela) da Operação Satiagraha, delegado Protógenes Queiroz, seduzido pelos holofotes da mídia, acabou sendo afastado da investigação depois de reveladas as irregularidades cometidas durante a Satiagraha. Algumas se tornaram um prato cheio para os defensores dos investigados, cuja estratégia é tentar anular na Justiça as provas obtidas contra seus clientes.

A mais recente notícia sobre as trapalhadas da Operação Satiagraha foi revelada pelo jornalista Jânio de Freitas, colunista da Folha de S. Paulo (30/12/08). Ele informa que a gravação do vídeo, juntada ao inquérito como prova da tentativa de suborno dos delegados da Operação Satiagraha, divulgada como sendo de autoria da própria PF e repetida exaustivamente pelos noticiários de TV, teria sido gravada por um cinegrafista da equipe da TV Globo ou prestador de serviço contratado pela emissora

Coincidência ou não, também foi a TV Globo que teve acesso, com exclusividade, às imagens da prisão do ex-prefeito de São Paulo, Celso Pitta, ainda de pijama. A filmagem da cena constrangedora, procedimento que contraria as instruções normativas sobre a divulgação de ações policiais, certamente, vai ser lembrada por muito tempo como um dos maiores micos da Operação Satiagraha.

Comunicar ao diretor-geral da PF, seu colega e sucessor no comando da instituição, a participação de dezenas de servidores lotados no órgão que dirigia, mais que uma questão de cortesia e lealdade, era uma obrigação funcional. O delegado Lacerda foi além: omitiu até para seus superiores a real dimensão da ajuda da Abin à PF, no relato inicial feito ao ministro da Justiça e ao presidente da República. A versão de que a Abin tinha colaborado de “forma lateral” foi confirmada por Lacerda à CPI dos Grampos e acabou sendo desmentida posteriormente por servidores da própria Abin.

Na sua posse como diretor-geral da PF, em 2003, o delegado Lacerda, fez questão de alertar aos dirigentes para que não se descuidassem do “dever de zelar pela valorização dos preceitos éticos da Polícia Federal” e “exigir dos subordinados a postura moral a que todos juramos ao ingressar neste órgão”.

Por ironia do destino e razões que só podem ser compreendidas na lógica das conveniências políticas, o delegado Paulo Lacerda, no novo cargo de adido policial em Portugal, vai ficar subordinado ao mesmo diretor-geral da PF, do qual há poucos meses sonegou informações sobre a participação da Abin na Operação Satiagraha. Se é que o atual diretor está disposto a engolir este sapo, prática comum também no universo da política.

Enquanto isso, os boletins de serviço da PF, com freqüência, publicam a instauração de procedimentos disciplinares para apurar supostas transgressões disciplinares, por exemplo, de um policial subalterno que pegou uma viatura ou fez uma diligência sem o conhecimento de seu chefe. Tudo em nome da hierarquia e disciplina. Para inglês — ou português — ver.

Josias Fernandes Alves é Agente de Polícia Federal, formado em Jornalismo e Direito, e Diretor de Comunicação da Fenapef.

[Artigo publicado originalmente pela Agência Fenapef, no dia 31 de dezembro.]

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