Prejuízos na ditadura

União deve indenizar Tribuna da Imprensa

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28 de fevereiro de 2009, 11h21

A União deve indenizar o jornal Tribuna da Imprensa por censura, perseguições e prejuízos morais e materiais sofridos durante a ditadura militar. O ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, negou pedido da União para reverter decisão que a obrigou a pagar a indenização.

Com base no entendimento do Ministério Público Federal, o ministro afirmou que o recurso da União visava a rediscussão de matéria de prova que já havia sido debatida pelas instâncias regionais. “A ausência de prequestionamento explícito da matéria constitucional inviabiliza, por completo, a possibilidade de conhecimento do presente recurso extraordinário”, disse.

Celso de Mello fez algumas considerações, no voto, sobre a censura. “Cabe observar – embora o faça, no ponto, em obiter dictum – que a censura estatal, além de intolerável, pode legitimar, sim, o dever governamental de reparar, no plano civil, os danos materiais e/ou morais causados àqueles, como as empresas jornalísticas, p. ex., que a sofreram”, escreveu.

O ministro afirmou, ainda, ter observado uma intensificação na proteção à liberdade de informar e manifestar o pensamento. “Não se pode transigir em torno de direitos fundamentais, notadamente quando a pretensão de lhes negar eficácia – tal como ora pleiteado pela União Federal – apóia-se em legislação impregnada de indiscutível conteúdo autoritário, como aquela veiculada em atos institucionais”, afirmou.

Segundo Celso de Mello, quando há interesse público, a crítica “por mais dura que seja” não pode ser repreendida. “A crítica jornalística, desse modo, traduz direito impregnado de qualificação constitucional, plenamente oponível aos que exercem qualquer parcela de autoridade no âmbito do Estado, pois o interesse social, fundado na necessidade de preservação dos limites ético-jurídicos que devem pautar a prática da função pública, sobrepõe-se a eventuais suscetibilidades que possam revelar os detentores do poder.” No pedido feito ao STF, a Advocacia-Geral da União, para respaldar o raciocínio sobre o porquê a União não devia indenizar o jornal, invocou Atos Institucionais.

O recurso, cujo relator inicialmente era o ministro Joaquim Barbosa, foi redistribuído depois que ele se declarou suspeito para julgar o caso. Joaquim Barbosa estava com o processo parado em seu gabinete desde 2006. E não gostou de a Tribuna publicar, na edição que comunicou sua paralisação, um artigo de seu proprietário, Hélio Fernandes, responsabilizando-o pela demora no julgamento de uma ação que pode render R$ 10 milhões em indenização e salvar o jornal das dívidas. O ministro fundamentou sua decisão com base no artigo 135 parágrafo único, inciso I, do Código de Processo Civil, que diz: “Reputa-se fundada a suspeição de parcialidade do juiz, quando: amigo íntimo ou inimigo capital de qualquer das partes”.

A União foi condenada pelo Tribunal Regional Federal da 2ª Região (Rio e Espírito Santo). De acordo com o Comunique-se, o proprietário da Tribuna, Hélio Fernandes, afirmou que todas as perdas serão avaliadas, como a desvalorização da marca, “a publicidade que a Tribuna não recebeu por intimidação da União”. Fernandes afirma que o dinheiro vai servir para pagar as dívidas contraídas pelo jornal e para o pagamento dos salários atrasados dos funcionários.

“A Tribuna vai voltar a circular imediatamente após as dívidas pagas. Quando em 1/12 eu informei a suspensão da circulação do jornal, usei a palavra momentânea. Assim que pudermos pagar papel, tinta, etc no dia seguinte o jornal volta às bancas”, afirmou.

Leia a decisão

RECURSO EXTRAORDINÁRIO 487.393-1 RIO DE JANEIRO

RELATOR: MIN. CELSO DE MELLO

RECORRENTE(S): UNIÃO

ADVOGADO(A/S): ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO

RECORRIDO(A/S): S/A EDITORA TRIBUNA DA IMPRENSA

ADVOGADO(A/S): ALEXANDRE SIGMARINGA SEIXAS E OUTRO(A/S)

ADVOGADO(A/S): LUIZ NOGUEIRA


DECISÃO: Trata-se de recurso extraordinário, que, interposto pela União Federal, insurge-se contra decisão que o E. TRF/2ª Região proferiu em julgamento que resultou consubstanciado em acórdão assim ementado e de que foi Relator o eminente Juiz RALDÊNIO BONIFACIO COSTA (fls. 686/687):

CONSTITUCIONALATOS INSTITUCIONAIS E COMPLEMENTARES: LIMITES DE SUA APLICAÇÃOCENSURA AO JORNALA TRIBUNA DA IMPRENSA’- DIREITOS FUNDAMENTAISLIMITES DO PODER DO ESTADORESPONSABILIDADE OBJETIVA DA UNIÃO FEDERALINDENIZAÇÃO.

IPúblico e notório que o jornalA Tribuna da Imprensasofreu pertinaz censura, que lhe trouxe prejuízos apurados em perícia realizada. A censura praticada impediu que divulgasse notícias que outros igualmente excelentes órgãos da imprensa veiculavam, comprovando que o Estado, naquela oportunidade, não respeitou os próprios limites legais que se impuseram, ainda que esta legalidade resultasse de Atos Institucionais.

IISentença prolatada quando ainda em vigor a Emenda Constitucional nº 1, de 17/10/69, inspirada na doutrina proclamada pelo saudoso jurista e constitucionalista PONTES DE MIRANDA, de que ‘os Atos Complementares, quaisquer que sejam, somente são pré-excluídos de exame judicial se foram feitos com observância do Ato Institucional nº 1, ou do art. 9º do Ato Institucional nº 4. Se daquele, ou desse, se afastaram, são nulos, e a nulidade é decretável pelo Poder Judiciário’. (in ‘Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda nº 1, de 1969’, Editora Forense, 1987, Tomo VI, p. 433).

IIINo caso vertente, apurou-se que, com a censura realizada, o Estado ultrapassou os limites de seus poderes, conforme imposição do art. 182, da EC nº 1/69.

IVIndiscutível que o princípio da irresponsabilidade do Poder Público deve ser sempre repelido pelo Direito. Tanto a União como os Estados, os Municípios e as Autarquias devem ser obrigados a ressarcir o dano causado a qualquer pessoa, seja física ou jurídica, sempre que seus representantes, nessa qualidade, procederem desidiosamente ou agirem contra o Direito, não importando a ocorrência de dolo ou culpa do funcionário.

VEm relação aos direitos fundamentais, deve o Estado Moderno ter escrúpulo para não ultrapassar a limitação dos seus poderes. No caso vertente, no período em que os fatos narrados na inicial aconteceram, vivia-se sob um regime autoritário, tendo o Estado imposto a si próprio limites, conforme delineado no art. 182, da Emenda Constitucional nº 1, de 17/10/69.

VILogo, a respeitável sentença ‘a quo’ foi proferida de acordo com os parâmetros do art. 107, da Emenda Constitucional nº 1/69, à época em vigor, não merecendo, por isso, qualquer reparo, até porque a atual ‘LEX MAGNA’ também consagrou o princípio da Responsabilidade Objetiva do Estado, no § 6º, de seu art.37.

VIIDe acordo com a Constituição, a reparação civil do Poder Público, nos casos como versado neste procedimento, visa a restabelecer o equilíbrio rompido com o dano causado individualmente a um ou a alguns membros da comunidade, aplicando-se, em toda a sua plenitude, o disposto no art. 37, § 6º, da ‘LEX MAGNA’.

VIII – ‘As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado, prestadoras de serviços públicos, responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa’ – § 6º, art. 37, da Constituição Federal, instituindo, assim, o princípio da Responsabilidade Objetiva do Estado.

IXNão pode o Estado ultrapassar a limitação de seus poderes, sob pena de se verem ameaçados os pilares do Estado Democrático de Direito, ensejador das garantias e direitos fundamentais consagrados pela ‘Lex Magna’, originário da própria Teoria do Poder Constituinte.


XO Direito, como meio de se atingir o bem comum, tem por finalidade, como dever de promover a justiça, repelir qualquer ato de irresponsabilidade do Poder Público, vendo-se, assim, obrigados os Entes Federativos e as Autarquias a ressarcir dano causado a pessoa física ou jurídica, sempre que houver procedimento desidioso ou ação contrária ao próprio Direito, desconsiderando-se a ocorrência de dolo ou culpa do funcionário, mero agente da Administração Pública Direta ou Indireta. É a hipótese.

XINegado provimento ao recurso de apelação da UNIÃO FEDERAL, e à remessa necessária.

XIISentença mantida, ‘in totum’.” (grifei)

O Ministério Público Federal, em pronunciamento sobre a pretensão recursal deduzida pela União Federal, manifestou-se por sua incognoscibilidade (fls. 884/886), seja porqueA matéria trazida pela recorrente não restou devidamente prequestionada”, eis quenão foi suscitado o debate da questão federal, nem na apelação de fls. 617-622, nem por meio de embargos de declaração”, seja, ainda, porque, “Além da ausência de prequestionamento, a recorrente tenta rediscutir matéria de prova já amplamente debatida nos presentes autos” (grifei).

Entendo assistir plena razão à douta Procuradoria-Geral da República, pois a ausência de prequestionamento explícito da matéria constitucional inviabiliza, por completo, a possibilidade de conhecimento do presente recurso extraordinário, consoante diretriz jurisprudencial prevalecente nesta Suprema Corte (RTJ 125/1368 – RTJ 131/1391 – RTJ 144/300 – RTJ 153/989 – RTJ 159/977, v.g.) e consolidada nas Súmulas 282 e 356 do Supremo Tribunal Federal.

Cumpre ter presente, ainda, neste ponto, a advertência deste Tribunal a propósito da caracterização formal do prequestionamento:

RecursoPrequestionamento. O simples fato de determinada matéria haver sido veiculada em razões de recurso não revela o prequestionamento. Este pressupõe o debate e a decisão prévios e, portanto, a adoção de entendimento explícito, pelo Órgão investido do ofício judicante, sobre a matéria. Para dizer-se do enquadramento do extraordinário no permissivo legal coteja-se, não as razões do recurso julgado pela Corte de origem com o preceito constitucional, mas, sim, o teor do próprio Acórdão proferido e que se pretende alvejar.

(RTJ 133/945, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – grifei)

Mesmo que a União Federal houvesse suscitado o tema de direito constitucional, perante o Juízo “a quo”, sem que este, no entanto, viesse a apreciá-lo expressamente, impunha-se, à ora recorrente, para efeito de cognoscibilidade do presente recurso extraordinário, deduzir os pertinentes embargos de declaração, para que, naquela instância jurisdicional, fosse suprida a omissão da decisão então proferida (RTJ 153/989, Rel. Min. CELSO DE MELLO).

Observo, ainda, que a União Federal, buscando afastar o reconhecimento de sua obrigação jurídica de reparar os danos resultantes dos atos de censura à S/A Editora Tribuna da Imprensa, sustenta que “Não há nexo de causalidade a ensejar uma responsabilidade objetiva, o que invalida o conteúdo probatório da presente demanda” (fls. 750).

A questão concernente ao reconhecimento do dever do Estado de reparar danos causados por seus agentes mereceu amplo debate doutrinário, que subsidiou, em seus diversos momentos, o tratamento jurídico que essa matéria recebeu no plano de nosso direito positivo.


Sabemos que a teoria do risco administrativo, consagrada em sucessivos documentos constitucionais brasileiros, desde a Constituição de 1946, revela-se fundamento de ordem doutrinária subjacente à norma de direito positivo que instituiu, em nosso sistema jurídico, a responsabilidade civil objetiva do Poder Público, pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, por ação ou por omissão.

Essa concepção teórica – que informa o princípio constitucional da responsabilidade civil objetiva do Poder Público – faz emergir, da mera ocorrência de lesão causada à vítima pelo Estado, o dever de indenizá-la pelo dano pessoal e/ou patrimonial sofrido, independentemente de caracterização de culpa dos agentes estatais ou de demonstração de falta do serviço público, consoante enfatiza o magistério da doutrina (HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Administrativo Brasileiro”, p. 650, 31ª ed., 2005, Malheiros; SERGIO CAVALIERI FILHO, “Programa de Responsabilidade Civil”, p. 248, 5ª ed., 2003, Malheiros; JOSÉ CRETELLA JÚNIOR, “Curso de Direito Administrativo”, p. 90, 17ª ed., 2000, Forense; YUSSEF SAID CAHALI, “Responsabilidade Civil do Estado”, p. 40, 2ª ed., 1996, Malheiros; TOSHIO MUKAI, “Direito Administrativo Sistematizado”, p. 528, 1999, Saraiva; CELSO RIBEIRO BASTOS, “Curso de Direito Administrativo”, p. 213, 5ª ed., 2001, Saraiva; GUILHERME COUTO DE CASTRO, “A Responsabilidade Civil Objetiva no Direito Brasileiro”, p. 61/62, 3ª ed., 2000, Forense; MÔNICA NICIDA GARCIA, “Responsabilidade do Agente Público”, p. 199/200, 2004, Fórum; ODETE MEDAUAR, “Direito Administrativo Moderno”, p. 430, item n. 17.3, 9ª ed., 2005, RT, v.g.).

Não se desconhece, a propósito do tema em questão, que o reconhecimento da responsabilidade civil objetiva do Poder Público deriva da conjugação de determinados pressupostos primários, assim definidos pela jurisprudência prevalecente no Supremo Tribunal Federal (RTJ 163/1107-1109, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.): (a) a alteridade do dano, (b) a causalidade material entre o “eventus damnie o comportamento positivo (ação) ou negativo (omissão) do agente público, (c) a oficialidade da atividade causal e lesiva imputável a agente do Poder Público, que, nessa condição funcional, tenha incidido em conduta comissiva ou omissiva, independentemente da licitude, ou não, do seu comportamento funcional (RTJ 140/636) e (d) a ausência de causa excludente da responsabilidade estatal (RTJ 55/503 – RTJ 71/99 – RTJ 91/377 – RTJ 99/1155 – RTJ 131/417).

É por isso que a ausência de qualquer dos pressupostos legitimadores da incidência da regra inscrita no art. 37, § 6º, da Constituição (a que correspondia o art. 107 da Carta Federal de 1969) basta para descaracterizar a responsabilidade civil objetiva do Estado, especialmente quando ocorrer circunstância que rompe o nexo de causalidade material entre o comportamento do agente público e a consumação do dano pessoal ou patrimonial infligido ao ofendido.

Daí a asserção de que o princípio da responsabilidade objetiva não se reveste de caráter absoluto, eis que admite abrandamento e, até mesmo, exclusão da própria responsabilidade civil do Estado nas hipóteses excepcionais configuradoras de situações liberatórias – como o caso fortuito e a força maiorou evidenciadoras de ocorrência de culpa inteiramente atribuível à própria vítima (RDA 137/233 – RTJ 55/50 – RTJ 163/1107-1109, v.g.).


As circunstâncias do presente caso, no entanto, apoiadas em pressupostos fáticos soberanamente afirmados pelas instâncias ordinárias, evidenciam que se reconheceu presente, na espécie, o nexo de causalidade material.

Inquestionável, desse modo, que a existência do nexo causal – cujo reconhecimento, pelas instâncias de inferior jurisdição, efetivou-se em sede recursal meramente ordinária – teve por suporte análise do conjunto probatório subjacente ao pronunciamento jurisdicional em referência.

Esse dado assume relevo processual no caso, pois a discussão suscitada pela União Federal em torno da configuração, ou não, na espécie, do nexo de causalidade material revela-se incabível em sede de recurso extraordinário, por supor o exame de matéria de fato, de todo inadmissível na via do apelo extremo.

Como se sabe, o recurso extraordinário não permite que se reexaminem, nele, em face de seu estrito âmbito temático, questões de fato ou aspectos de índole probatória (RTJ 161/992 – RTJ 186/703). É que o pronunciamento do Tribunal “a quo” sobre matéria de fato (como o reconhecimento da existência do nexo de causalidade material, p. ex.) reveste-se de inteira soberania (RTJ 152/612 – RTJ 153/1019 – RTJ 158/693, v.g.).

Impende destacar, neste ponto, que esse entendimento (inadmissibilidade do exame, em sede recursal extraordinária, da existência, ou não, do nexo de causalidade), tratando-se do tema suscitado pelo ora recorrente, tem pleno suporte no magistério jurisprudencial desta Suprema Corte (RE 257.090-AgR/RJ, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA – AI 505.473-AgR/RJ, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA – RE 234.093-AgR/RJ, Rel. Min. MARCO AURÉLIO, v.g.):

AGRAVO REGIMENTAL EM AGRAVO DE INSTRUMENTO. RESPONSABILIDADE DO ESTADO. NEXO DE CAUSALIDADE. REEXAME DE FATOS E PROVAS. SÚMULA 279-STF.

Responsabilidade objetiva do Estado por morte de preso em complexo penitenciário. Alegações de culpa exclusiva da vítima e de ausência de nexo de causalidade entre a ação ou omissão de agentes públicos e o resultado. Questões insuscetíveis de serem apreciadas em recurso extraordinário, por exigirem reexame de fatos e provas (Súmula 279-STF). Precedentes.

Agravo regimental a que se nega provimento.

(AI 343.129-AgR/RS, Rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA – grifei)

1. RECURSO. Extraordinário. Inadmissibilidade. Reexame de fatos e provas. Responsabilidade do Estado. Tiroteio entre policiais e bandidos. Morte de transeunte. Nexo de causalidade. Reexame. Impossibilidade. Ofensa indireta à Constituição. Agravo regimental não provido. Inadmissível, em recurso extraordinário, o reexame dos fatos e provas em que se baseou o acórdão recorrido para reconhecer a responsabilidade do Estado por danos que seus agentes causaram a terceiro. (…).

(RE 286.444-AgR/RJ, Rel. Min. CEZAR PELUSO – grifei)

RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO (CF, ART. 37, § 6º). POLICIAL MILITAR, QUE, EM SEU PERÍODO DE FOLGA E EM TRAJES CIVIS, EFETUA DISPARO COM ARMA DE FOGO PERTENCENTE À SUA CORPORAÇÃO, CAUSANDO A MORTE DE PESSOA INOCENTE. RECONHECIMENTO, NA ESPÉCIE, DE QUE O USO E O PORTE DE ARMA DE FOGO PERTENCENTE À POLÍCIA MILITAR ERAM VEDADOS AOS SEUS INTEGRANTES NOS PERÍODOS DE FOLGA. CONFIGURAÇÃO, MESMO ASSIM, DA RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO PODER PÚBLICO. PRECEDENTE (RTJ 170/631). PRETENSÃO DO ESTADO DE QUE SE ACHA AUSENTE, NA ESPÉCIE, O NEXO DE CAUSALIDADE MATERIAL, NÃO OBSTANTE RECONHECIDO PELO TRIBUNAL “A QUO”, COM APOIO NA APRECIAÇÃO SOBERANA DO CONJUNTO PROBATÓRIO. INADMISSIBILIDADE DE REEXAME DE PROVAS E FATOS EM SEDE RECURSAL EXTRAORDINÁRIA. PRECEDENTES ESPECÍFICOS EM TEMA DE RESPONSABILIDADE CIVIL OBJETIVA DO ESTADO. (…).


(RE 291.035/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Todas as razões ora expostas, associadas ao pronunciamento da douta Procuradoria-Geral da República, impõem o não-conhecimento do presente recurso extraordinário.

Não obstante as considerações que venho de fazer no sentido da plena incognoscibilidade da pretensão recursal extraordinária ora formulada, cabe observar – embora o faça, no ponto, em obiter dictum que a censura estatal, além de intolerável, pode legitimar, sim, o dever governamental de reparar, no plano civil, os danos materiais e/ou morais causados àqueles, como as empresas jornalísticas, p. ex., que a sofreram.

Tenho observado, em decisões e votos por mim proferidos no Supremo Tribunal Federal (Pet 3.486/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO – ADPF 130-MC/DF, Rel. Min. CARLOS BRITTO, v.g.), que se intensificou, em nosso sistema jurídico, o grau de proteção em torno da liberdade de informação e de manifestação do pensamento, considerado o sentido de inquestionável fundamentalidade que essa prerrogativa assume no contexto dos regimes políticos, especialmente naqueles em que a prepotência, o abuso do poder e o arbítrio sufocam o regime das liberdades públicas.

É por isso que se torna essencial reconhecer e garantir, aos profissionais da imprensa, o exercício concreto da liberdade de expressão, em ordem a assegurar-lhes o direito de expender crítica – ainda que desfavorável e em tom contundente – contra quaisquer pessoas ou autoridades.

Não se pode transigir em torno de direitos fundamentais, notadamente quando a pretensão de lhes negar eficácia – tal como ora pleiteado pela União Federal – apóia-se em legislação impregnada de indiscutível conteúdo autoritário, como aquela veiculada em atos institucionais.

O abuso de poder não pode justificar qualquer lesão a direitos essenciais reconhecidos pela consciência universal dos povos civilizados.

Não foi por outra razão que o Supremo Tribunal Federal – mesmo em face do explícito antijudiciarismo do regime político vigente entre 1964 e 1985 – reconheceu a possibilidade de se exercer controle jurisdicional sobre os excessos resultantes da inobservância, pelos detentores do poder, das formalidades extrínsecas delineadas nos próprios Atos Institucionais, que representaram, naquele momento histórico, mecanismos político- -jurídicos notoriamente incompatíveis com a ordem democrática (RTJ 40/656 – RTJ 40/666 – RTJ 44/553 – RTJ 47/389 – RTJ 50/67 – RTJ 50/358, v.g.).

Ninguém ignora que, no contexto de uma sociedade fundada em bases democráticas, mostra-se intolerável a repressão ao pensamento, ainda mais quando a crítica – por mais dura que seja – revele-se inspirada pelo interesse público e decorra da prática legítima de uma liberdade pública de extração eminentemente constitucional.

Não se pode desconhecer que a liberdade de imprensa, enquanto projeção da liberdade de manifestação de pensamento e de comunicação, reveste-se de conteúdo abrangente, por compreender, dentre outras prerrogativas relevantes que lhe são inerentes, (a) o direito de informar, (b) o direito de buscar a informação, (c) o direito de opinar e (d) o direito de criticar.


A crítica jornalística, desse modo, traduz direito impregnado de qualificação constitucional, plenamente oponível aos que exercem qualquer parcela de autoridade no âmbito do Estado, pois o interesse social, fundado na necessidade de preservação dos limites ético-jurídicos que devem pautar a prática da função pública, sobrepõe-se a eventuais suscetibilidades que possam revelar os detentores do poder.

Tal como ressalta o magistério doutrinário (CLÁUDIO LUIZ BUENO DE GODOY, “A Liberdade de Imprensa e os Direitos da Personalidade”, p. 100/101, item n. 4.2.4, 2001, Atlas; VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR, “A Proteção Constitucional da Informação e o Direito à Crítica Jornalística”, p. 88/89, 1997, Editora FTD; RENÉ ARIEL DOTTI, “Proteção da Vida Privada e Liberdade de Informação”, p. 207/210, item n. 33, 1980, RT, v.g.), a crítica que os meios de comunicação social dirigem às pessoas públicas, especialmente às autoridades e aos agentes do Estado, por mais acerba, dura e veemente que possa ser, deixa de sofrer, quanto ao seu concreto exercício, as limitações externas que ordinariamente resultam dos direitos da personalidade.

Lapidar, sob tal aspecto, a decisão emanada do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, consubstanciada em acórdão assim ementado:

Os políticos estão sujeitos de forma especial às críticas públicas, e é fundamental que se garanta não só ao povo em geral larga margem de fiscalização e censura de suas atividades, mas sobretudo à imprensa, ante a relevante utilidade pública da mesma.

(JTJ 169/86, Rel. Des. MARCO CESAR – grifei)

Vê-se, pois, que a crítica jornalística, quando inspirada pelo interesse público, não importando a acrimônia e a contundência da opinião manifestada, ainda mais quando dirigida a figuras públicas, com alto grau de responsabilidade na condução dos negócios de Estado, não traduz nem se reduz, em sua expressão concreta, à dimensão de abuso da liberdade de imprensa, não se revelando suscetível, por isso mesmo, em situações de caráter ordinário, à possibilidade de sofrer qualquer repressão estatal ou de se expor a qualquer reação hostil do ordenamento positivo, tal como pude decidir em julgamento monocrático proferido nesta Suprema Corte:

LIBERDADE DE IMPRENSA (CF, ART. 5º, IV, c/c o ART.  220). JORNALISTAS. DIREITO DE CRÍTICA. PRERROGATIVA CONSTITUCIONAL CUJO SUPORTE LEGITIMADOR REPOUSA NO PLURALISMO POLÍTICO (CF, ART. 1º, V), QUE REPRESENTA UM DOS FUNDAMENTOS INERENTES AO REGIME DEMOCRÁTICO. O EXERCÍCIO DO DIREITO DE CRÍTICA INSPIRADO POR RAZÕES DE INTERESSE PÚBLICO: UMA PRÁTICA INESTIMÁVEL DE LIBERDADE A SER PRESERVADA CONTRA ENSAIOS AUTORITÁRIOS DE REPRESSÃO PENAL. A CRÍTICA JORNALÍSTICA E AS AUTORIDADES PÚBLICAS. A ARENA POLÍTICA: UM ESPAÇO DE DISSENSO POR EXCELÊNCIA.

(Pet 3.486/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO)

Na realidade, o direito de crítica encontra suporte legitimador no pluralismo político, que representa um dos fundamentos em que se apóia, constitucionalmente, o próprio Estado Democrático de Direito (CF, art. 1º, V).

Como bem assinalado por VIDAL SERRANO NUNES JÚNIOR (“A Proteção Constitucional da Informação e o Direito à Crítica Jornalística”, p. 87/88, 1997, Editora FTD), o reconhecimento da legitimidade do direito de crítica, tal como sucede no ordenamento jurídico brasileiro, qualifica-se como “pressuposto do sistema democrático”, constituindo-se, por efeito de sua natureza mesma, em verdadeiragarantia institucional da opinião pública”:


(…) o direito de crítica em nenhuma circunstância é ilimitável, porém adquire um caráter preferencial, desde que a crítica veiculada se refira a assunto de interesse geral, ou que tenha relevância pública, e guarde pertinência com o objeto da notícia, pois tais aspectos é que fazem a importância da crítica na formação da opinião pública.” (grifei)

Não foi por outra razão que o Tribunal Constitucional espanhol, ao proferir as Sentenças nº 6/1981 (Rel. Juiz FRANCISCO RUBIO LLORENTE), nº 12/1982 (Rel. Juiz LUIS DÍEZ-PICAZO), nº 104/1986 (Rel. Juiz FRANCISCO TOMÁS Y VALIENTE) e nº 171/1990 (Rel. Juiz BRAVO-FERRER), pôs em destaque a necessidade essencial de preservar-se a prática da liberdade de informação, inclusive o direito de crítica que dela emana, como um dos suportes axiológicos que informam e que conferem legitimação material à própria concepção do regime democrático.

É relevante observar, aqui, que o Tribunal Europeu de Direitos Humanos (TEDH), em mais de uma ocasião, também advertiu que a limitação do direito à informação e do direito (dever) de informar, mediante (inadmissível) redução de sua prática “ao relato puro, objetivo e asséptico de fatos, não se mostra constitucionalmente aceitável nem compatível com o pluralismo, a tolerância (…), sem os quais não há sociedade democrática (…)” (Caso Handyside, Sentença do TEDH, de 07/12/1976).

Essa mesma Corte Européia de Direitos Humanos, quando do julgamento do Caso Lingens (Sentença de 08/07/1986), após assinalar que “a divergência subjetiva de opiniões compõe a estrutura mesma do aspecto institucional do direito à informação”, acentua que “a imprensa tem a incumbência, por ser essa a sua missão, de publicar informações e idéias sobre as questões que se discutem no terreno político e em outros setores de interesse público (…)”, vindo a concluir, em tal decisão, não ser aceitável a visão daqueles que pretendem negar, à imprensa, o direito de interpretar as informações e de expender as críticas pertinentes.

Não custa insistir, neste ponto, na asserção de que a Constituição da República revelou hostilidade extrema a quaisquer práticas estatais tendentes a restringir ou a reprimir o legítimo exercício da liberdade de expressão e de comunicação de idéias e de pensamento.

Essa repulsa constitucional bem traduziu o compromisso da Assembléia Nacional Constituinte de dar expansão às liberdades do pensamento. Estas são expressivas prerrogativas constitucionais cujo integral e efetivo respeito, pelo Estado, qualifica-se como pressuposto essencial e necessário à prática do regime democrático. A livre expressão e manifestação de idéias, pensamentos e convicções não pode e não deve ser impedida pelo Poder Público nem submetida a ilícitas interferências do Estado.

É preciso advertir, bem por isso, notadamente quando se busca promover a repressão à crítica jornalística, que o Estado não dispõe de poder algum sobre a palavra, sobre as idéias e sobre as convicções manifestadas pelos profissionais dos meios de comunicação social.

Essa garantia básica da liberdade de expressão do pensamento, como precedentemente assinalado, representa, em seu próprio e essencial significado, um dos fundamentos em que repousa a ordem democrática. Nenhuma autoridade pode prescrever o que será ortodoxo em política, ou em outras questões que envolvam temas de natureza filosófica, ideológica ou confessional, nem estabelecer padrões de conduta cuja observância implique restrição aos meios de divulgação do pensamento. Isso porque “o direito de pensar, falar e escrever livremente, sem censura, sem restrições ou sem interferência governamentalrepresenta, conforme adverte HUGO LAFAYETTE BLACK, que integrou a Suprema Corte dos Estados Unidos da América, “o mais precioso privilégio dos cidadãos” (“Crença na Constituição”, p. 63, 1970, Forense).

Vale registrar, finalmente, por relevante, fragmento expressivo da obra do ilustre magistrado federal SÉRGIO FERNANDO MORO (“Jurisdição Constitucional como Democracia”, p. 48, item n. 1.1.5.5, 2004, RT), no qual põe em destaque um “landmark ruling” da Suprema Corte norte-americana, proferida no caso “New York Times v. Sullivan” (1964), a propósito do tratamento que esse Alto Tribunal dispensa à garantia constitucional da liberdade de expressão:

A Corte entendeu que a liberdade de expressão em assuntos públicos deveria de todo modo ser preservada. Estabeleceu que a conduta do jornal estava protegida pela liberdade de expressão, salvo se provado que a matéria falsa tinha sido publicada maliciosamente ou com desconsideração negligente em relação à verdade. Diz o voto condutor do Juiz William Brennan:

‘(…) o debate de assuntos públicos deve ser sem inibições, robusto, amplo, e pode incluir ataques veementes, cáusticos e, algumas vezes, desagradáveis ao governo e às autoridades governamentais.’” (grifei)

Como anteriormente salientado, estas considerações são feitas em obiter dictum, porque refletem o meu pensamento sobre a inadmissibilidade de qualquer ato de censura estatal.

Concluo a presente decisão: tendo em vista as razões por mim expostas na parte inicial desta decisão e acolhendo, ainda, o parecer da douta Procuradoria-Geral da República, não conheço deste recurso extraordinário.

Publique-se.

Brasília, 18 de fevereiro de 2009.

Ministro CELSO DE MELLO

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