Lei do trote

Tragédia precede aprovação de lei para evitá-la

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23 de fevereiro de 2009, 17h02

[Editorial do jornal O Estado de S. Paulo publicado nesta segunda-feira (23/2)]

No Brasil, o velho brocardo do Direito romano que diz “o Direito origina-se do fato” (ex facto oritur jus) bem que poderia ter a complementação “… como a tranca se origina da porta arrombada”. Pois aqui é só a mais recente tragédia que cria a lei para evitá-la, por mais antigo que seja seu malefício. É o caso da recente lei contra o trote universitário. Ela resulta de brutalidades recentes perpetradas por jovens desenfreados, apesar de já terem sido tratadas em projeto há mais de uma década nas Casas Legislativas federais.

A Câmara dos Deputados acaba de aprovar o Projeto de Lei 1.023/95, que proíbe a realização dos trotes violentos ou vexatórios. O texto, resultante de uma emenda dos deputados Flávio Dino (PC do B-MA) e Carlos Sampaio (PSDB-SP), proíbe constranger os calouros, expô-los de forma vexatória, ofender sua integridade física, moral ou psicológica, ou obrigá-los a doar bens ou dinheiro. O texto também determina que a faculdade abra processo disciplinar contra os estudantes responsáveis por esses atos — mas não estão previstas sanções para as que deixarem de tomar tal providência, o que é criticado por alguns parlamentares. De qualquer forma, o projeto estabelece sanções progressivas para os alunos praticantes de trote violento, que vão de multas (de R$ 1 mil a R$ 20 mil), suspensão (de um a seis meses), até a expulsão — caso em que o aluno só poderá matricular-se na mesma instituição decorrido o prazo de um ano.

Bom seria, no entanto, que houvesse condição de afastar com mais rapidez e agilidade esses veteranos que exibem conduta notoriamente delinquencial, lesando — física, moral ou psicologicamente — seus colegas a pretexto de uma comemoração pelo ingresso em curso superior. Com os recursos tecnológicos hoje disponíveis, onde o comportamento violento pode ser facilmente flagrado por câmeras de vídeo, fotográficas ou de celulares, com a perfeita identificação dos aplicadores de trotes que descambam para a delinquência, tais elementos podem ser afastados da escola — em benefício da segurança geral do corpo discente — até de forma sumária. A propósito, houve deputado que protestou contra as expulsões com este “sábio” argumento: “Nem o presidiário é proibido de estudar.” Ora, justamente por isso, nada impede que os delinquentes que desrespeitam a integridade (e a vida) de seres humanos façam também seus estudos… na cadeia.

Quanto ao “direito ao estudo”, vejamos como o puderam exercer alguns estudantes universitários: em 1999 o estudante Edison Tsung Chi Hsueh morreu afogado na piscina da Associação Atlética Oswaldo Cruz, durante um trote na Faculdade de Medicina da USP; em 2000 um calouro da Faculdade de Educação Física da UniTau sofreu queimaduras no rosto, orelhas e pescoço, após ser pintado com tinta a óleo por um grupo de veteranos; em 2002 um calouro da UniSantos recebeu uma tesourada no abdome, por se recusar a permitir que seu cabelo fosse raspado; em 2005 uma aluna de Medicina da Unicamp foi jogada de roupa na piscina, recebeu cuspidas no rosto e ficou presa em um galinheiro junto com colegas; em 2006 a Universidade Federal de Uberlândia expulsou e suspendeu alunos que obrigaram um calouro a deitar sobre um formigueiro. Ele levou mais de 250 picadas e só não morreu por não ser alérgico. No corrente ano, na Faculdade de Medicina Veterinária Anhanguera, em Leme, um estudante foi amarrado a um poste, levou uma surra de chicote, foi obrigado a beber pinga até o coma alcoólico; e, lá mesmo, os veteranos colocaram uma lona no chão, com excrementos de animais — porco, cavalo e vaca — e mais animais em decomposição, cheios de vermes, em cuja fétida lama os calouros eram obrigados a rolar, além de comer ração de cachorro. Como os cidadãos submetidos a essa descomunal brutalidade poderiam exercer seu sagrado direito ao estudo — ao qual “nem os presidiários” estão impedidos?

É claro que a repetição, a cada novo ano, da estupidez dos trotes violentos — de maneira cada vez mais cruelmente “criativos” — é consequência de uma crônica impunidade que se manifesta em um sem-número de campos da vida brasileira, notadamente quanto ao desrespeito à pessoa humana. Por isso, o rigor imposto aos jovens universitários — no respeito à pessoa — precisa ter caráter exemplar.

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