Dicas para o TJ-SP

Súmulas podem acabar com a Justiça lotérica

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20 de fevereiro de 2009, 17h27

Sob o título “Casa cheia: TJ-SP planeja criar mais 130 cargos de desembargador” (Revista Consultor Jurídico — www.conjur.com.br — de 7 de janeiro de 2009), o repórter Fernando Porfírio analisa documento da presidência do Tribunal de Justiça em que propõe a ampliação da corte (que dispõe de 360 cargos de desembargador, 73 juízes substitutos de segundo grau e 292 juízes convocados em sistema de mutirão) e revela a existência de 600 mil recursos aguardando decisão.

Número esse que, na eventualidade de não serem tomadas medidas urgentes de caráter administrativo, poderá chegar a um milhão no prazo de cinco anos, mas se for acolhida a proposta a situação do acervo de processos se inverte. Ainda de acordo com o estudo, diz o repórter, a criação dos novos cargos deverá reduzir o número de recursos para 10 mil até o ano de 2013.

Prossegue a reportagem: “O documento não foi bem aceito entre integrantes do Poder Judiciário paulista. Desembargadores ouvidos pela revista Consultor Jurídico afirmaram que a proposta é um contrassenso. Segundo esses magistrados, o projeto não ataca os principais problemas do TJ que é a falta de estrutura do aparato Judiciário do estado, o atraso e a lentidão na informatização de um poder que responde por quase 50% do número de litígios em curso no país e a escassez do orçamento”; “a proposta da presidência do TJ caminha contra a corrente da boa gestão administrativa. A receita de modernização apresentada pelos tribunais superiores e outros tribunais dos estados é investir pesado no processo de informatização e contratar pessoal especializado: técnicos e gestores de informática e assistentes judiciários”; “a proposta ainda revela outro pecado: o gasto desnecessário com a folha de pagamento. Cada desembargador custa, em média, R$ 300 mil por ano aos cofres públicos”; “A alternativa seria a criação de mais cargos, em comissão, de assistente judiciário”.

A seguir, o repórter faz referência a editorial (O Judiciário de São Paulo: enfermidade digna de CTI) do Blog do Sartori, no qual o desembargador Ivan Sartori, após afirmar que “não obstante os esforços da atual administração, o Judiciário paulista está em franco e acelerado processo de sucateamento, graças a inúmeros fatores, quer de ordem administrativa, quer orçamentária, quer política”, critica a proposta de regionalização do tribunal (criação de turma de apelação em Campinas) e de ampliação de cargos: “É preciso, portanto, antes de mais nada, dar um basta na criação de cargo de juiz ou de desembargador ou de varas e câmaras, enquanto essa situação não se resolva”.

Data máxima vênia das opiniões em contrário, tenho que tais críticas, salvo algumas, não procedem, tanto mais quando provenientes daqueles que, indagados, não sabem indicar a solução.

Claro que ninguém concorda com a excessiva morosidade judiciária, sobretudo no segundo grau; ela inevitavelmente estimula o surgimento de novas lides, sobrecarregando o primeiro grau e novamente o tribunal, num círculo vicioso. Os maus pagadores (aí incluído o Poder Público) apostam na demora judiciária, preferindo litigar, procrastinando o cumprimento de suas obrigações.

É necessário melhorar o sofrível sistema informatizado existente, com a aquisição de melhores equipamentos e contratação de especialistas da área (nossos computadores parecem da primeira geração, têm memória curta, “param para pensar” e as chamadas técnicas são quase que diárias).

Mas, est modus in rebus: não é razoável afirmar que a proposta da presidência do TJ é um contrassenso, caminha contra a corrente da boa gestão administrativa. Isso é confundir alhos com bugalhos, é pecar pelo raciocínio contraditório.

Como se sabe (e os juristas, de ordinário, geralmente não o sabem, porque isso não fez parte do currículo), para administrar uma casa, uma empresa ou uma organização é necessário conhecer regras básicas de gerência, possuir dados e bem interpretá-los. Os dados, dependendo das variadas fontes, são conflitantes. Passo a fazer referência a informações sobre a Justiça Estadual colhidas no relatório “Justiça em Números — Indicadores Estatísticos do Poder Judiciário” de 2006, editado pelo Conselho Nacional de Justiça, com base nos quais elaborei as planilhas anexas (arredondando os números).


1. A questão orçamentária.

É verdade que a verba destinada ao Judiciário paulista é (e sempre foi) insuficiente para cobrir as despesas necessárias. O tribunal queria para 2009 R$ 8,1 bilhões (7%) do orçamento estadual de R$ 116,1 bilhões; deve receber apenas R$ 4,9 bilhões (4,22%).

Segundo o relatório do CNJ, São Paulo (o maior PIB estadual do país) aparece com o pior 4º lugar na relação “Despesa do Judiciário % do PIB”: 0,53%, acima apenas do Amazonas, Pará, Santa Catarina e abaixo de todos os demais (v.g.: RJ = 0,59%; RS = 0,63%; MG = 0,73%; RN, MA, MT, SE, PI, PB em torno de 1%; RO = 1,43%; TO = 1,59%; DF = 1,70%, RR = 1,85) e abaixo também da média nacional (= 0,65%).

A despesa judiciária por habitante em SP é de R$ 93, abaixo do RS e ES (R$ 108), RJ (R$ 110), AC e RR (R$ 112), RO (R$ 117), MT (R$ 131), AP (R$ 141) e DF (R$ 408).

Sem nenhum suporte fático, portanto, a afirmação de que criar mais cargos “seria onerar demais o Estado que já se encontra em situação difícil e penosa”. Salvo engano, todos os Estados estão nessa situação, sem recursos suficientes para educação, saúde, saneamento, segurança, habitação etc. A “distribuição da Justiça” é serviço público a ser sacrificado?

Se a verba destinada ao Judiciário é reduzida pelo Executivo, de onde tirar o necessário para investir na Informática? São Paulo gastou em 2006 nesse item 1,94% do total de sua despesa judiciária, um pouco acima da média nacional (1,88%), mas abaixo do RS (2,17%), ES (2,19%), RJ (2,24%), PB (2,41%), MT (2,53%), CE (3,32%), SC (4,66%). Se aplicar mais nesse setor, terá de sacrificar algum outro. Mas os críticos não esclarecem isso.

2. A quantidade de magistrados por habitante (números redondos).

Em 2006, a média nacional era de um magistrado (1º e 2º graus) estadual para cada grupo de 17 mil habitantes e apenas Alagoas (24 mil), Bahia (23), Ceará (22), Goiás (19), Maranhão (21), Minas Gerais (20) e Pará (24) tinham menos juízes por habitante do que São Paulo (19 mil).

Todos os demais Estados estavam acima, v.g.: RJ (16 mil), SC (15 mil), RS e SE (14 mil), PI, RN (13mil), MT, MS, RR (11 mil), AP (9 mil), DF (8,8 mil), ES (8 mil).

3. Volume de Serviço — Carga de trabalho

Em contrapartida, o estoque de processos pendentes de julgamento no primeiro grau da Justiça Estadual do país era de 29 milhões, sendo que 42% (12 milhões) estavam em São Paulo, seguido de longe por RS (2,2 milhões), MG (1,9), PR (1,7), BA e SC (1,5), PE (1,3), GO (1,2), RJ (1 milhão), enquanto no DF (despesa de 1,70% do PIB) era de apenas 197 mil processos.

Somados os casos novos com os aguardando julgamento (critério CNJ), São Paulo tinha 16,5 milhões de processos em andamento no primeiro grau (41% do total estadual de 40 milhões), correspondendo 9.566 para cada juiz, enquanto esse último número era de 6.374 em SC; 5.760 no RS; 5.013 no PR; 4.153 na BA; 3.985 em PE; 3.960 em MG; 3.754 no PA; 3.644 no MS, e daí para menos nos demais estados, até 661 no Amapá; a média nacional estadual era de 4.771 processos por juiz.

No segundo grau, havia pouco mais de um milhão de processos nos tribunais estaduais (1.770 por Desembargador, na média geral), sendo 554 mil (52%) só em São Paulo (média de 2.919 por desembargador), enquanto que essa carga individual, com exceção do CE (4.026) e RS (3.555), era bastante inferior nos demais estados: 2.183 (BA), 1.800 (SC), 1.700 (MG, PE), 1.300 (ES, MS, PB, SE), 1.000 (DF, GO, RO), 900 (RJ), até 169 no Amapá.

Em paralelo, São Paulo proferiu quase 3 milhões (2.986 mil) de sentenças e 392 mil acórdãos, seguido pelo RS (1 milhão de sentenças e 335 mil acórdãos), Minas (673 mil e 99 mil), RJ (465 mil e 111 mil), SC (432 e 38), PR (351 e 45), Goiás (234 e 25), Bahia (198 e 13), DF (157 e 21), até o último colocado, Amapá (16 mil sentenças e 1.500 acórdãos).

4. Taxa de congestionamento (morosidade)

A média nacional de congestionamento no 2º grau é de 45%, variando de 22% no Acre até 95% no Piauí, sendo de 55% em SP, melhor que TO, AM, BA, PE, CE, PI, RN e pior do que todos os demais estados, v.g.: SC (51%), DF (40%), MG (38%), PR (32%), RS (24%), RJ (17%) até Goiás (10%).


Quer dizer, o Tribunal de Justiça, com 360 desembargadores e 73 juízes substitutos de segundo grau, não dá conta de apreciar os recursos de sentenças proferidas no primeiro grau, mesmo contando com o auxílio de 292 juízes convocados em sistema de mutirão (o atraso chegou a 5 anos e vem caindo graças a esse auxílio extraordinário). Só conseguirá suportar sozinho esse desmesurado volume de serviço, se aumentar a produtividade individual de seus integrantes permanentes (o que é humanamente impossível), ou se ampliar o quadro (além de outras providências (v. item 6, abaixo).

Caso contrário, os recursos permanecerão dormitando nas prateleiras por 5 anos ou mais (a tendência é piorar), em clara afronta ao princípio constitucional previsto no artigo 5º, LXXVIII, que alçou à categoria de direito e garantia fundamental a "razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação" e dentre esses meios "número de juízes na unidade jurisdicional proporcional à efetiva demanda judicial e à respectiva população" (art. 93, XIII) (Emenda Constitucional 45/2003). Aliás, a Loman, LC 35/79, já há muito prevê que será majorado o número de membros do tribunal se o total de processos distribuídos e julgados, durante o ano anterior, superar o índice de 300 feitos por juiz (artigo 106, § 2º). Como visto acima, os “casos novos” recebidos pelo TJSP somaram 496.908 processos (média de 1.380 por desembargador), o que justifica, até com sobra, a ampliação do quadro.

Não é diferente a situação no primeiro grau: havia mais de 16 milhões de processos em andamento em 2006, para 1.731 juízes (média de 9.566 processos por juiz). O quadro de magistrados é manifestamente insuficiente.

Outros tribunais perseguem a ampliação: no TRF-3 (SP e MS), a pretensão é de aumentar de 43 para 63 (quase 50%) o número de desembargadores federais (Revista Consultor Jurídico, 10/11/2008); o TJ-RS, com 125 desembargadores, estuda criar mais 45 cargos (Ultima Instância, apud Notícias Anamages, 30/07/08).

Para o Conselheiro do CNJ, desembargador Rui Stoco, “o Estado de São Paulo precisaria de pelo menos mais 100 desembargadores e pelo menos 600 magistrados” (Agência CNJ de notícias, 23/01/2009 e Notícias Anamages, 25/01/2009).

5. Descentralização do Tribunal.

Critica-se, igualmente, a proposta de criação de Câmaras Regionais (a Emenda Constitucional nº 45/2003, artigos 107, § 3º, 114, § 2º e 125, § 6º prevê a possibilidade de descentralização dos Tribunais Regionais Federais, Tribunais Regionais do Trabalho e dos Tribunais de Justiça em câmaras regionais) como forma de reduzir custos e melhorar a eficácia do atendimento do cidadão. O tema é há muitos anos debatido e jamais resolvido, em face da disputa entre os municípios para sediá-las.

Mais uma vez, São Paulo fica para trás: Chapecó, com 180 mil habitantes, no interior de Santa Catarina, será a primeira cidade do interior do país a receber uma câmara de julgamento de recursos do Tribunal de Justiça (Revista Consultor Jurídico, 27/01/2009).

6. Outras providências

Os críticos têm razão: é necessário melhorar a estrutura do Judiciário, tanto na parte material (instalações, equipamentos) como na de pessoal de apoio (escreventes, oficiais de justiça, assistentes) e ainda no gerenciamento (contratação de especialistas em administração, como a FGV).

Mas também é preciso perguntar o porquê do silêncio sepulcral a respeito de uma providência simples e altamente produtiva em termos gerenciais: a uniformização da jurisprudência através do instrumento “Súmula”, até hoje não adotado pelo TJ-SP mas existentes nos Tribunais Superiores e em vários outros Tribunais Estaduais (inclusive no extinto Primeiro Tribunal de Alçada Civil paulista).

O tema me é extremamente caro e a ele tenho dedicado especial atenção desde 2001 em estudos encaminhados reiteradamente a todos os integrantes do Conselho Superior da Magistratura desde então[1] e também à Comissão de Revisão do Regimento Interno do Tribunal de Justiça (novembro/2006).[2] Em recompensa a esse esforço, o presidente do TJ-SP, desembargador Roberto Vallim Bellocchi, me honrou ao designar-me membro Colaborador da Comissão de Estudos para Edição de Súmulas (Portaria TJ 7.564/2008), presidida pelo desembargador José Elias Tâmbara.


Resumindo o que analisado mais extensamente naqueles estudos, o objetivo da criação de Súmulas é, a um só tempo, (a) extinguir a “justiça lotérica” (hoje, cada Câmara decide a mesma tese de forma diferente das demais, embora cada uma delas represente o Tribunal) e (b) aumentar a produtividade, reduzindo a morosidade (para isso foi editada a Lei dos Recursos Repetitivos, Lei 11.672/2008, embora restrita ao STJ).

Há quem discorde da necessidade de uniformização da jurisprudência através da edição de Súmulas ou Enunciados. Assim o ministro Sidnei Beneti, do STJ, ex-desembargador do TJ-SP, no artigo “Doutrina de precedentes e organização judiciária” (Revista da Escola Paulista da Magistratura, janeiro/junho-2007, pg. 39/63), embora critique a “dispersão jurisprudencial” (desfechos distintos para questões idênticas dentro do mesmo Tribunal), sustenta que a única solução possível é “especialização temática” nos tribunais, “de maneira que um órgão, câmara ou grupo, e apenas um órgão, seja competente dentro do tribunal para o julgamento da matéria”, o que “tornará desnecessário trilhar o longo caminho da produção de súmulas que resumam os julgados”.

Apesar do brilhantismo com que defende tal posição, o que se percebe é que se trata de tese de caráter puramente acadêmico, própria do ilustre jurista e professor, mas sem nenhum caráter prático, sem apoio em técnicas gerenciais.

Analisando o Anuário da Justiça Paulista 2008, editado pela revista Consultor Jurídico, Vladimir Passos de Freitas, desembargador aposentado e ex-presidente do TRF da 4ª Região, no artigo “Segunda Leitura: O retrato do Tribunal de Justiça de São Paulo”, após defender a especialização de Câmaras e outras medidas, diz: “d) Edição de súmulas. É incompreensível que matérias pacificadas, consolidada a jurisprudência com o aval do STF ou do STJ, não estejam sumuladas, dispensando votos que reproduzem todos os argumentos já discutidos à saciedade. Vários TRFs e TJs, há muitos anos, têm súmulas.” (Revista Consultor Jurídico, 2/11/2008).

Essas e outras providências administrativas (v. nosso “Soluções Caseiras para Agilização das Decisões”, na nota de rodapé 1) não suprimem a necessidade de criação de novos cargos de magistrados e auxiliares. Se a população aumenta, aumenta a quantidade de doentes e aumentam os litígios, pondo-se necessários mais médicos e mais juízes (e infraestrutura correspondente). Simples assim.

Após pouco mais de 50 anos de serviço (21 na magistratura) e com alguma experiência administrativa no Poder Executivo, penso que ainda há solução para a crise do Judiciário.


[1] “A Reforma do Judiciário e a Morosidade da Justiça – Soluções Caseiras para Agilização das Decisões”, março/2005, versão atualizada do estudo publicado nos Cadernos Jurídicos da Escola Paulista da Magistratura, Volume 3, Número 10, Julho/Agosto-2002, pág. 85/94. Também “Súmulas da Jurisprudência Predominante do Tribunal de Justiça de São Paulo – Necessidade e Inevitabilidade de sua Instituição”, novembro/2006 e “A Reforma do Poder Judiciário, suas Causas e as Propostas para Enfrentá-la”, publicada em resumo na Revista Cidadania e Justiça Edição 92, março de 2008, pelo qual fui agraciado (sem o merecer) com o troféu Dom Quixote (mesma revista, edição 93).

[2] Críticas ao Projeto de Regimento Interno, 11/08/2008.

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