Jurisprudência das liberdades

STF garantiu presunção de inocência, não aboliu prisão

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18 de fevereiro de 2009, 20h09

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O Supremo Tribunal Federal estabeleceu e vem reafirmando, ao longo da última década, o que o decano da corte, ministro Celso de Mello, chama de jurisprudência das liberdades. Fazem parte dessa coleção de julgados decisões como a que garante que ninguém seja jogado no cárcere sem condenação definitiva. Ou a que define que o cidadão não deve ser algemado sem que tenha oferecido qualquer tipo de resistência ou represente risco de fuga ou ameaça à segurança pública. Ou, ainda, a que proclama que o Estado, suas autoridades e os seus agentes não podem tratar as pessoas ainda sujeitas a investigações criminais ou a processos penais como se já fossem culpadas.

Decisões que, na verdade, deveriam ser perfeitamente naturais em um Estado que vive sob regime democrático e que respeita os direitos individuais. Para garantir esses direitos, contudo, o Supremo tem enfrentado polêmicas e resistências de toda sorte. Mas os ataques estão longe de atingir o ânimo de quem foi incumbido de atuar na guarda e defesa da Constituição e dos princípios e valores que nela se acham proclamados.

“A reação a certos avanços significativos da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, em matéria de direitos e garantias individuais, é natural”, afirma Celso de Mello. Para o ministro — que completa 20 anos de STF em agosto deste ano — o importante é que a corte continua firme no propósito de fazer valer, para qualquer cidadão, o respeito aos direitos, liberdades e garantias que lhe foram dados pela Constituição de 1988.

De acordo com o decano, “qualquer pessoa arbitrariamente desrespeitada ou ilicitamente despojada de seus direitos tem consciência de que pode invocar, perante juízes e tribunais, a proteção a ela dispensada pela Constituição, sendo-lhe possível o acesso ao Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, onde encontrará resposta apta a neutralizar os agravos e os abusos que tenha sofrido”.

Celso de Mello recebeu a revista Consultor Jurídico em seu gabinete no Supremo. A conversa foi marcada para fazer o perfil do ministro para o Anuário da Justiça 2009, que será lançado em maio. Na entrevista, o ministro lembrou que a decisão do Supremo, tomada há duas semanas, não aboliu a prisão cautelar. O que o tribunal reafirmou é que, enquanto a Justiça não disser, definitivamente, que um cidadão é culpado, ele não pode ser assim rotulado por qualquer pessoa, inclusive por juízes, membros do Ministério Público, autoridades e agentes policiais.

“Na verdade, o Supremo Tribunal Federal fez prevalecer a autoridade da Constituição, proclamando que ninguém pode ser considerado culpado, para efeito de punição definitiva, sem prévio trânsito em julgado da condenação penal. A garantia do estado de inocência, contudo, não impedirá a utilização dos instrumentos de tutela cautelar penal, como a decretação da prisão temporária ou da prisão preventiva”, lembrou.

O ministro falou, também, sobre pedidos de Habeas Corpus feitos por presos sem advogados e que ensejaram decisões que mudaram a jurisprudência da corte, o que, segundo ele, revela a absoluta impessoalidade das decisões. Lembrou leis de regimes ditatoriais que vigoraram no Brasil, segundo as quais o cidadão era considerado culpado até prova em contrário.

Leia a entrevista

ConJur — O Supremo decidiu há duas semanas que ninguém deve cumprir pena sem condenação definitiva e que advogados podem ter acesso aos autos de investigação criminal. As duas decisões provocaram muitas críticas do Ministério Público e de alguns setores da magistratura. Como o senhor encara essas reações?

Celso de Mello — Com a máxima naturalidade, notadamente porque vivemos em uma sociedade fundada em bases democráticas, sob cuja égide se mostra plenamente legítimo que qualquer pessoa exponha, com liberdade, as suas convicções e opiniões sobre qualquer matéria. Apenas entendo que essas reações contra os significativos avanços da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em matéria de direitos e garantias individuais verdadeira jurisprudência das liberdades emanam de setores certamente comprometidos com a doutrina da lei e ordem ou ideologicamente condicionados pelas formulações do direito penal do inimigo. Tenho para mim que o discurso e a ação daqueles que se apóiam, para efeito de justificar a prisão cautelar, em tópicos retóricos fundados em juízos conjecturais, de índole meramente especulativa, culminam por transgredir os princípios proclamados pela ordem democrática na qual se estrutura o Estado de Direito. Mais do que isso, essa concepção de mundo revela, com toda vênia, uma preocupante visão autoritária e nulificadora do regime das liberdades públicas consagrado em nosso sistema constitucional.


ConJur — O tribunal vem estabelecendo uma agenda bastante ativa no sentido da garantia de direitos individuais.

Celso de Mello — O Supremo tem a exata percepção de como a proteção e a defesa da supremacia da Constituição são fundamentais para a vida do país, de seu povo e de suas instituições. A Constituição estabelece, de maneira muito nítida, limites que não podem ser transpostos pelo Estado e seus agentes no desempenho da atividade de persecução penal. Atos de investigação penal e de persecução criminal em juízo estão necessariamente subordinados a determinadas restrições que são impostas pela própria Constituição em homenagem a postulados essenciais à preservação da integridade do regime das liberdades públicas. Quando a Suprema Corte, apoiando-se na presunção de inocência, afasta a possibilidade de o Judiciário decretar, arbitrariamente, por antecipação, sem qualquer base empírica justificadora de sua real necessidade, a prisão de qualquer pessoa, limita-se, em tais julgamentos, a dar ênfase e a amparar um direito fundamental que assiste a qualquer cidadão: o direito de ser presumido inocente até que sobrevenha condenação penal irrecorrível.

ConJur — Então, qual o motivo da reação à decisão?

Celso de Mello — O fato é que essa incompreensível repulsa à presunção de inocência, com todas as gravíssimas conseqüências que daí resultam, mergulha suas raízes em uma visão absolutamente incompatível com os padrões do regime democrático. Por isso mesmo, o Supremo Tribunal Federal repele vigorosamente os fundamentos daqueles que, apoiando-se em autores como Enrico Ferri, Raffaele Garofalo, Emanuele Carnevale e Vincenzo Manzini, vislumbram algo “absurdamente paradoxal e irracional” na “pretendida presunção de inocência” (a frase é de Manzini). Esses aspectos todos, a propósito do estado de inocência das pessoas em geral, foram muito bem examinados e discutidos por ocasião do julgamento, pelo Plenário do Supremo, da ADPF 144/DF, de que eu próprio fui relator.

ConJur — Há razão na crítica de que, ao privilegiar o princípio da presunção da inocência, o Supremo está inviabilizando a prisão de acusados perigosos?

Celso de Mello — O Supremo Tribunal Federal, ao decidir como o fez, não inviabilizou a prisão cautelar — como a prisão temporária e a prisão preventiva — de indiciados ou réus perigosos, pois expressamente reconheceu, uma vez presentes razões concretas de real necessidade, a possibilidade de utilização, por magistrados e tribunais, das diversas modalidades de tutela cautelar penal, em ordem a preservar e a proteger os interesses da coletividade em geral e dos cidadãos em particular. A jurisprudência que o Supremo Tribunal vem construindo em tema de direitos e garantias individuais confere expressão concreta, em sua formulação, a uma verdadeira agenda das liberdades, cuja implementação é legitimada pelo dever institucional, que compete à Corte Suprema, de fazer prevalecer o primado da própria Constituição da República. Não custa rememorar que essa prerrogativa básica — a de que todos se presumem inocentes, até que sobrevenha condenação penal transitada em julgado — está consagrada não só nas Constituições democráticas de inúmeros países, como o Brasil, mas, também, em importantes declarações internacionais de direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa Humana (1948), a Convenção Européia para a Salvaguarda dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais (1950), a Carta dos Direitos Fundamentais da União Européia (2000), a Carta Africana dos Direitos Humanos e dos Povos (1981), a Declaração Islâmica sobre Direitos Humanos (1990), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966) e a Convenção Americana de Direitos Humanos (1969).

ConJur — Já houve um tempo em que os réus tinham de enfrentar a máquina estatal para provar que eram inocentes?


Celso de Mello — Lembro-me de que, no passado, sob a égide autoritária do Estado Novo, editou-se o Decreto-lei 88/37, que impunha ao acusado o dever de provar, em sede penal, que não era culpado. Essa regra legal consagrou uma esdrúxula fórmula de despotismo explícito, pois exonerou absurdamente o Ministério Público, nos processos por delitos contra a segurança nacional, de demonstrar a culpa do réu. O decreto, de 20 de dezembro de 1937, consagrava, nos processos por delitos contra a segurança do Estado, uma regra absolutamente incompatível com o modelo democrático, como se vê da parte inicial de seu texto: “presume-se provada a acusação, cabendo ao réu prova em contrário (…)”.

ConJur — Valia a presunção de culpa.

Celso de Mello — É por isso que o Supremo tem sempre advertido que as acusações penais não se presumem provadas, pois — como tem reconhecido a jurisprudência da corte — o ônus da prova incumbe, exclusivamente, a quem acusa. Isso significa que não compete ao réu demonstrar a sua inocência. Ao contrário. Cabe ao Ministério Público comprovar, de forma inequívoca, para além de qualquer dúvida razoável, a culpabilidade do acusado. Tenho salientado, em julgamentos de que fui relator no Supremo Tribunal (HC 83.947/AM, por exemplo), que já não mais prevalece em nosso sistema jurídico a regra que, em dado momento histórico do processo político brasileiro — Estado Novo —, criou para o réu, com a falta de pudor que caracteriza os regimes despóticos, a obrigação de ele provar a sua própria inocência.

ConJur — Há 30 ou 40 anos, o Brasil viveu tempos tristes exatamente porque não existiam essas garantias.

Celso de Mello — Com a ruptura do processo constitucional em 1964, instaurou-se, em nosso país, um regime que privilegiou a doutrina da segurança nacional em detrimento do regime das liberdades públicas. Foi um período (1964-1985) em que o Judiciário e o Legislativo foram profundamente afetados em suas prerrogativas institucionais. O modelo político e o sistema jurídico, fundados nos atos institucionais — de que o AI-5 constituiu paradigma repulsivo, verdadeira lex terribilis —, outorgaram aos detentores do poder competências extraordinárias, cuja prática golpeou duramente as franquias individuais. Adotaram-se, então, mecanismos institucionais que só acentuaram o desprezo governamental pelas liberdades públicas e pela ordem democrática.

ConJur — E como ficou a ordem jurídica nesse contexto?

Celso de Mello — A ordem jurídica fundada nos atos institucionais suprimiu o coeficiente democrático de nossas instituições políticas e foi responsável pela vedação do controle jurisdicional dos atos de governo, além de haver abolido o acesso ao Habeas Corpus quanto a determinados tipos de infrações penais. Esse verdadeiro antijudiciarismo do regime — para usar uma feliz expressão do professor Waldemar Ferreira, empregada a propósito do Estado Novo — foi bem realçado pelo ominoso AI-5. Não obstante as condições extremamente adversas existentes naquele período, em que declinaram as liberdades individuais, tão gravemente sufocadas pelos curadores do regime e pelos epígonos do despotismo e do pretorianismo político então dominante, o Poder Judiciário, mesmo assim, sempre encontrou meios de proteger os cidadãos contra a prepotência, os abusos e a violência arbitrária que marcaram, de modo indelével, aqueles tempos sombrios e que afetaram, de maneira profunda, gerações de brasileiros que viveram sob o signo da opressão, da insegurança e da intolerância. Cabe observar que o Estado Novo e o regime político implantado em 1964 demonstraram o seu receio e temor ao Poder Judiciário, tanto que não hesitaram em suprimir garantias e remédios previstos e assegurados em anteriores Constituições democráticas que o Brasil teve.

ConJur — O senhor poderia dar um exemplo?

Celso de Mello — A Carta Política de 1937 simplesmente desconstitucionalizou a previsão — até então constante da democrática e inovadora Constituição de 1934 — do Mandado de Segurança e da Ação Popular. O AI-5, por sua vez, além de suspender os predicamentos da magistratura, também impossibilitou o acesso ao remédio do Habeas Corpus nos casos de crimes contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular.


ConJur — E qualquer coisa era enquadrada em crime contra a segurança nacional. Houve alguma reação do Judiciário na ocasião?

Celso de Mello — O Supremo Tribunal Federal reagiu ao abuso inominável que constituiu a supressão, pelo AI-5, do acesso ao remédio constitucional do Habeas Corpus, o que motivou — ante a impossibilidade da proteção imediata e célere ao direito de ir, vir e permanecer — a prática de incontáveis arbitrariedades. Em decorrência dessa cláusula infame, instauraram-se — com nítido intuito de perseguição arbitrária — inquéritos policiais e IPMs, em cujo âmbito se procedeu ao enquadramento abusivo de cidadãos como supostos autores de crimes contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular, não obstante inexistente qualquer prova idônea nesse sentido. O Supremo Tribunal, no entanto, ao julgar o RHC 55.418/RS, cujo relator foi o ministro Soares Muñoz, proferiu decisão de grande relevo, pois entendeu cabível a superação da inconcebível restrição fundada no artigo 10 do AI-5, ao reconhecer a possibilidade de o Judiciário verificar, em cada impetração, a ocorrência de enquadramento abusivo nos delitos a que anteriormente me referi.

ConJur — Nem tudo podia ser enquadrado como crime contra a segurança nacional.

Celso de Mello — Em mencionado julgamento, o Supremo advertiu que não bastava, para efeito de impossibilitar a utilização do Habeas Corpus, a mera alegação de que o crime atribuído ao paciente se enquadrava no artigo 10 do AI-5. Com essa decisão, o tribunal neutralizou os excessos decorrentes de enquadramentos abusivos em crimes contra a segurança nacional e impediu — ao reconhecer a possibilidade de o Judiciário afastar, pontualmente, em cada caso ocorrente, essa inaceitável restrição de acesso ao Habeas Corpus — que o arbítrio do poder e de seus agentes se expandisse de forma incontrolável. Esse episódio revela a importância que assume a independência judicial para a vida de um país e a de seus cidadãos. É que, sem juízes independentes, não há cidadãos livres. Reside, aí, nessa delicada equação, o alto significado que assume a instituição judiciária para a preservação dos direitos dos cidadãos. Não há, na história das sociedades políticas, qualquer registro de um povo que, despojado de um Judiciário independente, tenha conseguido preservar os seus direitos e conservar a sua própria liberdade.

 

ConJur — O Judiciário não poderia examinar o mérito do Habeas Corpus, mas poderia verificar se a acusação foi classificada como crime contra a segurança só para barrar o acesso à Justiça. É isso?

Celso de Mello — O STF reconheceu admissível a verificação, pelo magistrado competente, da existência, ou não, em cada caso ocorrente, de enquadramentos abusivos que, promovidos por agentes e órgãos policiais, objetivavam impedir, com essa manobra artificiosa e ilegítima, o acesso ao Judiciário mediante Habeas Corpus. Se identificada a abusividade da qualificação jurídica arbitrariamente procedida pelos organismos de repressão — advertiu o Supremo nesse precedente —, e constatado que se tratava de fato não subsumível a qualquer das infrações penais referidas no artigo 10 do AI-5, legitimar-se-ia, então, o controle jurisdicional, mediante Habeas Corpus, dos atos de persecução criminal. Foi uma reação hermenêutica do Supremo, destinada a neutralizar as gravíssimas conseqüências decorrentes do AI-5 em matéria de Habeas Corpus.

 

ConJur — Mas há quem reclame hoje porque o STF concede Habeas Corpus. Estamos regredindo?

Celso de Mello — O remédio constitucional do Habeas Corpus representa um instrumento da maior importância na proteção e preservação da liberdade de qualquer pessoa que sofra arbitrariedades praticadas pelo Estado no contexto de persecuções penais. Trata-se de meio destinado a neutralizar a ilegalidade e o abuso de poder. Só podem temer o Habeas Corpus aqueles agentes ou autoridades do Estado que insistem em praticar ilicitudes ou em desrespeitar os direitos e garantias que o nosso ordenamento jurídico assegura, no plano constitucional, a qualquer cidadão, independentemente de sua condição social, financeira, funcional, política ou pessoal, sendo irrelevante, ainda, para efeito do amparo judicial, a natureza do crime cuja prática tenha sido atribuída àquele que sofre a persecução estatal. O Supremo Tribunal Federal, ao decidir as causas com fundamento na Constituição — e nesta, apenas —, tem revelado a sua fiel adesão aos princípios que conformam a ordem democrática, velando, incessantemente, pela defesa e proteção dos direitos e garantias das pessoas em geral. A esterilização do Habeas Corpus representa medida inaceitável no regime democrático e traduz pretensão daqueles que recusam, autoritariamente, aos indiciados e aos réus, a condição, que lhes é indisponível, de sujeitos de direitos.


ConJur — Inclusive aos pobres?

Celso de Mello — O Habeas Corpus, no contexto dessa jurisprudência das liberdades, representa a fórmula de garantia de um direito básico que assiste a qualquer pessoa, independentemente de sua condição social, regendo-se, as decisões emanadas da Suprema Corte, todas proferidas sob amplo escrutínio público, pelo critério da impessoalidade. As decisões beneficiam, muitas vezes, inúmeras vezes, pessoas destituídas de recursos financeiros e desprovidas, até mesmo, de advogados.

ConJur — Há exemplos disso?

Celso de Mello — Decisões importantes, como aquela que reconheceu, contra o meu voto, o direito à progressão de regime aos condenados por crimes hediondos — ou a estes equiparados —, têm sido proferidas pelo Supremo em sede de Habeas Corpus. Recordo-me, claramente, de um caso em que o Habeas Corpus foi impetrado em papel almaço, por sentenciado que redigiu a sua petição no fundo do cárcere, sem qualquer assistência técnica de advogado. Não obstante todas essas condições adversas, a ordem foi concedida em favor de tal paciente, que havia sido condenado por crime contra a liberdade sexual, e declarada a inconstitucionalidade de certa norma da Lei dos Crimes Hediondos (HC 82.959/SP). Lembro-me, ainda, do julgamento, pelo Supremo, dessa mesma questão constitucional, suscitada em momento anterior por eminentes advogados, agindo na condição de impetrantes (HC 69.603/SP), e que, a despeito da excelência de seu trabalho jurídico, não obtiveram, para o seu cliente, que figurava como paciente naquele processo de Habeas Corpus, o reconhecimento do mesmo direito à progressão de regime.

ConJur — O Supremo Tribunal Federal concede cerca de 30% dos pedidos de Habeas Corpus que julga. Muitos deles, para trancar denúncias ineptas apresentadas pelo Ministério Público. Como o senhor, que vem justamente do MP, enxerga isso?

Celso de Mello — O Ministério Público é uma instituição da maior importância para a sociedade, pois atua como verdadeiro defensor do povo. Na realidade, o Ministério Público foi o órgão que mais se enriqueceu juridicamente, que mais se fortaleceu institucionalmente, ao longo do processo constituinte de 1987 e 1988. São imensas as responsabilidades que, hoje, recaem sobre o Ministério Público, consideradas as justas expectativas que nele são depositadas pelas pessoas e pela comunidade em geral. Reconheço que o MP tem sido absolutamente fiel à sua alta missão institucional. Orgulho-me, como antigo membro do Ministério Público paulista, onde permaneci por 20 anos, e como cidadão desta República, de tão notável instituição nacional, que tem sabido agir — com grande independência, com elevada responsabilidade social, com extrema diligência e com inquestionável idoneidade profissional — na proteção da ordem jurídica, dos interesses sociais e individuais indisponíveis e da legalidade democrática. Pois só é digna e suscetível de defesa, pelo MP, a legislação impregnada de caráter democrático, repudiados, em conseqüência, aqueles atos estatais revestidos de conteúdo autoritário, tese que eu próprio, como promotor de Justiça, já sustentara em artigo escrito em 1982.

ConJur — E os excessos?

Celso de Mello — Eventuais excessos, ocorridos aqui ou ali, serão coibidos pelo Poder Judiciário, que existe, precisamente, para neutralizar situações de abuso de poder ou de ilegalidade emanadas do aparelho de Estado. A questão das denúncias ineptas tem sido bem resolvida pelo Supremo Tribunal, pois ninguém — absolutamente ninguém — pode ser acusado com fundamento em denúncia inepta. O Supremo tem reafirmado em diversos julgamentos esse entendimento, que deita raízes em antigos e valiosos precedentes. É importante relembrar, por isso mesmo, segundo essa diretriz jurisprudencial (HC 83.947/AM, por exemplo), que o sistema jurídico vigente no Brasil — tendo presente a natureza dialógica do processo penal acusatório, hoje impregnado, em sua estrutura formal, de caráter essencialmente democrático — impõe ao Ministério Público a obrigação de expor, de maneira precisa, objetiva e individualizada, a suposta participação das pessoas na prática delituosa que lhes é imputada. A inépcia de qualquer denúncia compromete, gravemente, a integridade do postulado essencial do direito penal da culpa e da garantia constitucional do due process of law, dentre outras prerrogativas jurídicas eminentes asseguradas às pessoas submetidas a atos de persecução penal. De tudo isso resulta que o ordenamento positivo brasileiro repudia, por incompatíveis com o postulado da dignidade da pessoa humana, de inquestionável centralidade em nosso modelo constitucional, as acusações genéricas e, também, aquelas desprovidas de fundamento empírico idôneo.


ConJur — O resultado da investigação seria muito mais efetivo se algumas autoridades não tentassem pular etapas, certo?

Celso de Mello — Tenho salientado, em decisões, na linha do que sempre sustentei como membro do MP paulista, que o poder não se exerce de forma ilimitada. No Estado Democrático de Direito, não há lugar para o poder absoluto. Essa asserção, por mais óbvia que seja, precisa ser sempre reafirmada, notadamente porque ainda militam no aparelho de Estado os nostálgicos do poder autoritário. Mostra-se essencial, portanto, que o Supremo Tribunal Federal enfatize que as investigações penais de qualquer fato delituoso, por mais grave que ele possa ser, não prescindem do necessário e incondicional respeito, por parte de magistrados, membros do Ministério Público e autoridades e agentes policiais, dos direitos e garantias de que são titulares as pessoas que vivem nesta República, ainda que submetidas a atos de persecução criminal. Na realidade, a observância, pelo poder público, dos direitos e garantias individuais, como a presunção de inocência, constitui fator de legitimação da própria atividade estatal e dos atos de investigação penal.

ConJur — Mas a presunção de inocência não poderia se esgotar a partir do momento em que um tribunal de segunda instância confirma a sentença condenatória?

Celso de Mello — O postulado do estado de inocência, ainda que não se considere como presunção em sentido técnico, encerra, em favor de qualquer pessoa sob persecução penal, o reconhecimento de uma verdade provisória, com caráter probatório, que repele suposições ou juízos prematuros de culpabilidade, até que sobrevenha — como o exige a Constituição do Brasil — o trânsito em julgado da condenação penal. Só então deixará de subsistir, em favor da pessoa condenada, a presunção de que é inocente. Há, portanto, um momento claramente definido no texto constitucional, a partir do qual se descaracteriza a presunção de inocência, vale dizer, aquele instante em que sobrevém o trânsito em julgado da condenação criminal. Antes desse momento, o Estado não pode tratar os indiciados ou réus como se culpados fossem. A presunção de inocência impõe ao poder público um dever de tratamento que não pode ser desrespeitado por seus agentes e autoridades. Acho importante acentuar que a presunção de inocência não se esvazia progressivamente, à medida que se sucedem os graus de jurisdição, a significar que, mesmo confirmada a condenação penal por um tribunal de segunda instância, ainda assim subsistirá, em favor do sentenciado, esse direito fundamental, que só deixa de prevalecer — repita-se — com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, como claramente estabelece, em texto inequívoco, a Constituição da República.

ConJur — Pouco antes das eleições municipais, o senhor relatou o julgamento que definiu que cidadãos não podem ter a candidatura barrada porque respondem a processo penal ou porque têm condenação pendente de recurso. A discussão de fundo é a mesma, certo?

Celso de Mello — Sim, pois a presunção de inocência atua como verdadeiro obstáculo constitucional a decisões estatais que possam afetar o exercício de direitos básicos, como o direito à liberdade e o direito de participação política na gestão dos negócios públicos e na condução das atividades governamentais. A mera existência de procedimentos estatais em curso — como inquéritos policiais, processos penais, argüições de inelegibilidade ou ações civis por improbidade administrativa — não pode gerar conseqüências incompatíveis com a presunção de inocência, porque esta só se desfaz com o reconhecimento definitivo, em ato irrecorrível, da culpabilidade ou da inelegibilidade de alguém. Não é por outro motivo que a própria Constituição, ao dispor sobre a suspensão dos direitos políticos, com a privação temporária do direito de sufrágio (direito de votar) e do direito de investidura em mandatos eletivos (direito de ser votado), impõe, como requisito inafastável, a existência de “condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos”. É o que está no artigo 15, inciso III, da Constituição Federal. O fato relevante, em tal matéria, é um só: episódios processuais ainda não definidos porque deles ausente sentença judicial transitada em julgado, não podem repercutir, de modo irreversível, sobre o estado de inocência que a própria Constituição garante e proclama em favor de qualquer pessoa.


ConJur — O senhor considera que essa foi uma de suas decisões mais importantes do ano passado?

Celso de Mello — Entendo que se revestiu de grande importância o julgamento, pelo Plenário do STF, da ADPF 144/DF, de que eu próprio fui relator. Esse processo, instaurado nos últimos dias de junho de 2008, sofreu julgamento final, com exame do mérito, em 6 de agosto de 2008, registrando-se, nele, extensa discussão sobre o tema pertinente ao reconhecimento do estado de inocência como um dos direitos fundamentais que qualquer pessoa pode opor, legitimamente, ao Estado.

ConJur — Quais as conseqüências dessa decisão do ponto de vista da jurisprudência?

Celso de Mello — O status poenalis e o estatuto de cidadania não podem sofrer — antes que sobrevenha o trânsito em julgado de condenação judicial — restrições que afetem a esfera jurídica das pessoas em geral e dos cidadãos em particular. Essa opção do legislador constituinte pelo reconhecimento do estado de inocência claramente fortaleceu o primado de um direito básico, comum a todas as pessoas, de que ninguém, absolutamente ninguém, pode ser presumido culpado em suas relações com o Estado, exceto se já existente sentença transitada em julgado. É por isso que o Supremo tem repelido, por incompatíveis com esse direito fundamental, restrições de ordem jurídica, somente justificáveis em face da irrecorribilidade de decisões judiciais. O fato é que não podem repercutir, contra qualquer pessoa, sob pena de transgressão ao postulado constitucional que consagra o estado de inocência, situações jurídico-processuais ainda não definidas por decisão irrecorrível do Poder Judiciário. Isso significa que inquéritos policiais em andamento, processos penais, argüições de inelegibilidade ou processos civis por improbidade administrativa ainda em curso ou, até mesmo, condenações criminais sujeitas a recursos, inclusive aos recursos excepcionais, não podem ser considerados, enquanto episódios processuais suscetíveis de pronunciamento absolutório, como fatores de descaracterização desse direito fundamental proclamado pela própria Constituição da República.

ConJur — O senhor rememora isso em seu voto.

Celso de Mello — Procedi a um amplo exame desse direito fundamental — o direito de ser presumido inocente até o trânsito em julgado da condenação judicial —, perquirindo-lhe as origens históricas e relembrando, não obstante a sua consagração, no século XVIII, como um dos grandes postulados iluministas (para Beccaria, A um homem não se pode chamar culpado antes da sentença do juiz ...), que essa prerrogativa não era desconhecida pelo direito romano, como resultava de certas presunções então formuladas (“innocens praesumitur cujus nocentia non probatur”), valendo mencionar o que se continha no Digesto, que estabelecia, em benefício daquele que era processado, verdadeiro favor rei, que enfatizava, ainda que de modo incipiente, essa idéia-força que viria a assumir grande relevo com a queda do Ancien Régime. Rememorei, ainda, não só as múltiplas conseqüências jurídicas decorrentes desse postulado essencial e conatural ao regime democrático, mas, também, a posição externada, no Supremo e no TSE, por eminentes ministros, como os ministros Leitão de Abreu e Xavier de Albuquerque, cujos votos, mesmo proferidos sob a égide de uma ordem jurídica claramente autoritária, deram ênfase a essa inestimável prerrogativa assegurada aos cidadãos em geral.

ConJur — O Supremo tem homenageado o legado deixado por ministros como esses que o senhor cita?

Celso de Mello — Quando discursei, em nome do STF, na posse do ministro Gilmar Mendes como presidente da corte, ressaltei que o espírito do Supremo Tribunal Federal, que nos envolve, juízes do passado e do presente, confere-nos uma identidade comum, reafirmada, a cada momento, pelos desafios, pelas crises e pelos dilemas de gerações de magistrados, que, tendo assento na corte suprema, foram sempre capazes de se opor, em instantes cruciais da vida política nacional, a estruturas autoritárias que buscavam monopolizar, com arrogância e avidez de poder, o controle institucional do Estado e o domínio político da sociedade civil. O legado do Supremo Tribunal, transmitido, continuamente, de geração a geração, a todos os juízes que o integraram e que hoje o compõem, é imenso e é indestrutível, pois dele resulta a lição de que o respeito à ordem constitucional legítima, a proteção das liberdades e a repulsa ao arbítrio qualificam-se, ontem como hoje, como fins superiores que devem sempre inspirar a conduta daqueles que realmente pretendem construir e consolidar, em nosso país, o Estado Democrático de Direito. É por isso — e em atenção a esse legado — que qualquer pessoa arbitrariamente desrespeitada ou ilicitamente despojada de seus direitos tem consciência de que pode invocar, perante juízes e tribunais, a proteção a ela dispensada pela Constituição e pelas leis da República, sendo-lhe possível o acesso ao Supremo Tribunal Federal, órgão de cúpula do Poder Judiciário, onde encontrará resposta apta a neutralizar os agravos e os abusos que tenha sofrido.

ConJur — O senhor completa 20 anos como ministro do Supremo este ano. Como o senhor vê a abertura gradual que ocorreu na corte?

Celso de Mello — A corte tem sido permanentemente fiel à altíssima responsabilidade institucional que lhe foi confiada pela Assembléia Nacional Constituinte, exercendo, com isenção e independência, a função eminente de guardião e garante da Constituição, sempre reafirmando o seu respeito, o seu apreço e a sua lealdade ao texto sagrado da Constituição democrática do Brasil. Já salientei, em outros momentos, que o Supremo Tribunal Federal, nas diversas composições de sua existência republicana, tem tido a notável percepção de que precisamente por ser o guardião da Lei Fundamental da República, detentor do “monopólio da última palavra” em matéria constitucional não pode renunciar ao exercício desse encargo, pois, se a suprema corte falhar no desempenho da gravíssima atribuição que lhe foi outorgada, a integridade do sistema político, a proteção das liberdades públicas, a estabilidade do ordenamento normativo do Estado, a segurança das relações jurídicas e a legitimidade das instituições da República restarão profundamente comprometidas. Nisso tudo consiste o imenso privilégio que eu, oriundo, para honra minha, do Ministério Público paulista, tenho experimentado no Supremo: o de haver participado, ao lado de tão eminentes juízes, dos importantes julgamentos que esta corte realizou ao longo destes últimos 20 anos, período que corresponde ao processo de consolidação da nova e democrática ordem constitucional soberanamente promulgada por uma Assembléia Constituinte eleita, de modo legítimo e em clima de absoluta liberdade, pelo povo de nosso país.

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