Entendimento único

Não há mais bases para prisão de depositário infiel

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17 de fevereiro de 2009, 10h35

 Recente decisão do Plenário do Supremo Tribunal Federal deixou estável que, desde a ratificação, pelo Brasil, do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos (artigo 11) e do Pacto de São José da Costa Rica (Convenção Americana sobre Direitos Humanos aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo 27/92, e promulgada pelo Decreto 678/92), não haveria mais base legal para a prisão civil do depositário infiel, prevista no artigo 5º, LXVII, mas apenas para a prisão civil decorrente de dívida de alimentos.

O entendimento firmado, desta forma, tem como pano de fundo a questão da validade da prisão civil do depositário infiel, expressamente proscrita pela Convenção Americana de Direitos Humanos, a qual assegura que: “ninguém deve ser detido por dívida. Este princípio não limita os mandados de autoridade judiciária competente expedidos em virtude de inadimplemento de obrigação alimentar” (artigo7º). Porém é expressamente acolhido pela Constituição Federal: “Não haverá prisão civil por dívida, salvo do responsável pelo inadimplemento voluntário e inescusável de obrigação alimentícia e a do depositário infiel”.

O conflito entre tais diplomas legais conduziu ao questionamento da hierarquia assumida pelos tratados e convenções internacionais de proteção dos direitos humanos em nosso ordenamento jurídico, tendo por fundamento o artigo 5º, parágrafo 2º, da Constituição.

Antes do advento da Emenda Constitucional 45/2004, a controvérsia acabou sendo submetida à apreciação do Supremo Tribunal Federal, o qual havia cristalizado interpretação no sentido de que esses tratados teriam posição subalterna no ordenamento jurídico, de modo que não poderiam prevalecer sobre norma constitucional expressa, permanecendo a possibilidade de prisão do depositário infiel. Nesse sentido: “Prisão civil de depositário infiel (CF, artigo 5º, LXVII): validade da que atinge devedor fiduciante, vencido em ação de depósito, que não entregou o bem objeto de alienação fiduciária em garantia: jurisprudência reafirmada pelo Plenário do Supremo — mesmo na vigência do Pacto de São José da Costa Rica 1 — à qual se rende, com ressalva, o relator, convicto da sua inconformidade com a Constituição. 2

Acabando com essa celeuma, a EC n. 45/2004, que acrescentou o parágrafo 3º ao artigo 5º da CF, passou a prever expressamente que os tratados e convenções internacionais serão equivalentes às emendas constitucionais, somente se preenchidos dois requisitos: que tratem de matéria relativa a direitos humanos e que sejam aprovados pelo Congresso Nacional, em dois turnos, pelo quorum de três quintos dos votos dos respectivos membros (duas votações em cada Casa do Parlamento, com três quintos de quorum em cada votação).

Obedecidos tais pressupostos, o tratado terá índole constitucional, podendo revogar norma constitucional anterior, desde que em benefício dos direitos humanos, e tornar-se imune a supressões ou reduções futuras, diante do que dispõe o artigo 60, parágrafo 4º, IV, da CF, (as normas que tratam de direitos individuais não podem ser suprimidas, nem reduzidas nem mesmo por emenda constitucional, tornado-se cláusulas pétreas).

Tal situação trouxe dúvidas quanto aos tratados e convenções internacionais promulgados antes da EC 45/2004, isto é, sobre a necessidade ou não de submetê-los ao quorum qualificado de aprovação, como condição para tornarem-se equivalentes às emendas constitucionais.

Ficaria, então, a questão se o Pacto de São José da Costa Rica, promulgado em 1992, anteriormente à emenda 45, para tornar-se equivalente às emendas constitucionais e proibir a prisão do depositário infiel, necessitaria ser aprovado pelo Congresso Nacional pelo quorum de três quintos dos votos dos respectivos membros.

Em dezembro de 2008, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, no HC 87585/TO, o relator ministro Marco Aurélio decidiu que com a introdução do Pacto de São José da Costa Rica, que restringe a prisão civil por dívida ao descumprimento indispensável de prestação alimentícia (artigo 7º, 7), em nosso ordenamento jurídico, restaram revogadas as normas estritamente legais definidoras da custódia do depositário infiel, prevista na Constituição. Segundo consta do Informativo 531 do STF, prevaleceu, no julgamento, a tese do status de supralegalidade da referida Convenção, inicialmente defendida pelo ministro Gilmar Mendes no julgamento do RE 466.343/SP. (HC 87.585/TO, relator: ministro Marco Aurélio). No referido julgado, restaram vencidos, no ponto, os ministros Celso de Mello, Cezar Peluso, Ellen Gracie e Eros Grau, que a ela davam a qualificação constitucional, reconhecendo o entendimento expendido pelo primeiro no voto que proferira nesse recurso. O ministro Marco Aurélio, relativamente a essa questão, se absteve de pronunciamento.

No RE 349703/RS e no RE 466343/SP a mesma orientação acima foi seguida. No entanto, vale mencionar que, no RE – 466343, o ministro Celso de Mello, embora tenha concluído pela inadmissibilidade da prisão civil do depositário infiel, defendeu a tese de que os tratados internacionais de direitos humanos subscritos pelo Brasil teriam hierarquia constitucional e não status supralegal.

Assim, consoante o Informativo 498 do STF: “No ponto, destacou a existência de três distintas situações relativas a esses tratados:

—1. os tratados celebrados pelo Brasil (ou aos quais ele aderiu), e regularmente incorporados à ordem interna, em momento anterior ao da promulgação da CF/88, revestir-se-iam de índole constitucional, haja vista que formalmente recebidos nessa condição pelo parágrafo 2º do artigo 5º da Constituição Federal.

—2. os que vierem a ser celebrados por nosso país (ou aos quais ele venha a aderir) em data posterior à da promulgação da EC 45/2004, para terem natureza constitucional, deverão observar o procedimento do parágrafo 3º do artigo 5º da Constituição Federal.

—3. aqueles celebrados pelo Brasil (ou aos quais nosso país aderiu) entre a promulgação da CF/88 e a superveniência da EC 45/2004, assumiriam caráter materialmente constitucional, porque essa hierarquia jurídica teria sido transmitida por efeito de sua inclusão no bloco de constitucionalidade. RE 466.343/SP, relatado pelo ministro Cezar Peluso, 12 de março de 2008 (RE-466.343)”.

De qualquer modo, independentemente do status que assumiriam os tratados e convenções internacionais de direitos humanos, no ordenamento jurídico brasileiro, é possível concluir, segundo a decisão mencionada no HC 87.585/TO, que o Pacto de São José da Costa Rica, subscrito pelo Brasil, torna inaplicável a legislação com ele conflitante, não havendo mais base legal para a prisão civil do depositário infiel, sendo admitida apenas na hipótese de dívida alimentar.

Notas de Rodapé

— 1. (HC 72.131, 22/11/1995 e RE 206.482,27/5/1998)

— 2.(STF, 1ª T., RE 345.345/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. 25-2-2003, DJ 11 abr. 2003, p. 926).

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  • Brave

    é promotor de Justiça da Cidadania, professor universitário e criminalista com diversas obras publicadas de direito penal, processual penal e constitucional.

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