Sem competência

Anulada ação investigada em esfera estadual

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17 de fevereiro de 2009, 9h27

A Vara Federal de Caçador (SC) anulou ação penal contra três acusados de crimes tributários porque, na fase de investigação, houve mandado de busca e apreensão expedido por juiz estadual. E a competência para julgamento de crimes tributários é federal.

De acordo com o juiz federal Frederico Valdez Pereira, da Vara Federal de Caçador, as ações violaram os incisos LIII e LIV do artigo 5º da Constituição, que dispõem: ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente; e ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal.

Os réus são acusados de sonegação fiscal e agiotagem pelo Ministério Público Federal. Tais fatos aconteceram de março de 2001 a junho de 2005, quando o mandado de busca e apreensão foi executado. Pereira aponta que na época da expedição já existia a Vara Federal de Caçador. Ou seja, não havia motivo para procurar a Justiça Estadual. E se caso não houvesse a Justiça Federal na cidade, a competência seria da cidade vizinha de Joaçaba, como prevê o artigo 109 da Constituição.

Para ele, “o réu tem o direito de não ser denunciado, de não ser processado e de não ser condenado com apoio em elementos probatórios obtidos ou produzidos de forma ilegítima e compatível com os limites constitucionais e ético-jurídicos que restringem a atuação do Estado em sede de persecução penal”.

Leia a íntegra:

AÇÃO PENAL Nº 2005.72.11.001206-2/SC

AUTOR

:

MINISTERIO PUBLICO FEDERAL

Réu

:

LORI CAMPOS DE LIMA

 

:

CLAUDIA CARVALHO

Réu

:

MAGDA OZOGOVSKI

ADVOGADO

:

EDSON DE SOUZA CARNEIRO

 

SENTENÇA

O Ministério Público Federal denunciou Lori Campos de Lima, Magda Ozogovski e Cláudia Carvalho, qualificados na denúncia. Narrou que Lori efetuou ilegalmente empréstimos de valores a terceiros, mediante a cobrança de juros extorsivos, auferindo considerável ganho de capital, sem apresentar ao Fisco a declaração dos referidos valores, afirmando-se isento. As acusadas Magda e Cláudia prestavam colaboração a Lori, intermediando os valores emprestados pelo denunciado a terceiros. Fatos que se verificaram entre os anos de 03/2001 a 06/2005. Lori Campos de Lima foi enquadrado no art. 1º, inc. I, da Lei nº 8.137/90, e art. 4º, ‘a’, da Lei nº 1.521/51. Magda e Cláudia foram enquadradas no art. 4º, ‘a’, da Lei nº 1.521/51.

A denúncia foi recebida em 02.05.2008 em relação ao acusado Lori (fl. 583).

Sobreveio audiência com a realização de transação penal em relação à imputação do art. 4º da Lei nº 1.521/51 para os três denunciados; na seqüência foi efetuado o interrogatório do acusado Lori (fl. 591).

Na instrução foram inquiridas 3 (três) testemunhas da acusação e 1 (uma) testemunha da defesa.

Em alegações finais, o MPF sustentou estar comprovada a materialidade do delito contra a ordem tributária imputado ao denunciado Lori campos, bem como a sua responsabilidade pelo cometimento do delito. Postulou a condenação na forma narrada na denúncia.

A defesa do réu Lori sustentou que inexiste comprovação dos fatos referidos na denúncia. Teceu considerações genéricas e doutrinárias acerca do Imposto de Renda. Aduziu que não houve os ganhos de capital mencionados na inicial. Pugnou pela absolvição.


Foram atualizados os antecedentes e os autos vieram conclusos para sentença.

É o relatório. Passo a decidir.

 Preliminar: Prova Ilícita

Embora não tenha sido mencionado pela defesa, a primeira questão que merece apreciação nos autos é sobre a ilicitude da prova oriunda do cumprimento do mandado de busca e apreensão.

Isto porque a promoção da autoridade policial (fls.10-11) mencionou que o objeto da busca e apreensão seria a coleta de elementos probatórios e de instrumentos da prática dos crimes de contrabando e descaminho; referindo ainda que a suspeita fundada recaia sobre a atuação do investigado com mercadorias oriundas do Paraguai, que se constituiriam de equipamentos diversos, eletroeletrônicos, armas, munições e outros produtos, os quais repassa a usuários.

O próprio Delegado de Polícia Civil subscritor do requerimento de busca referiu que "muito embora delito de competência da Justiça Federal, entendo caber à Justiça Estadual a atuação na ausência da mesma cobrindo assim lacuna jurisdicional".

Quanto à impropriedade da referência feita pela autoridade não é preciso maiores digressões: por óbvio que o fato de o Município de Caçador não ser sede de Subseção Judiciária da Justiça Federal não faria com que a Justiça Estadual passasse a ter competência jurisdicional sobre as causas previstas no art. 109 da Constituição da República; tratando-se de crimes cujo processo e julgamento sejam de competência da Justiça Federal, caberá à sede da Subseção Judiciária com jurisdição sobre o território de Caçador a competência sobre o fato, que antes era no Município de Joaçaba.

Somente essa referência acima já seria suficiente para se concluir pela inconsistência do requerimento de busca e apreensão formulado pela autoridade policial, no entanto desde agosto de 2004 a cidade de Caçador é sede de Subseção Judiciária da Justiça Federal, detendo competência Constitucional para processar e julgar os crimes de contrabando e descaminho ocorridos no território de sua jurisdição.

Os fundamentos exarados pela autoridade policial, além de impróprias, viciam também a decisão jurisdicional que deferiu o requerimento determinando a expedição do mandado de busca e apreensão na residência do acusado. Isso porque o requerimento da polícia formulado no dia 12.04.2005 foi deferido pelo juiz estadual no mesmo dia (fl.29), sem que tenha se verificado nenhuma outra diligência ou fato que pudesse alterar o quadro fático apresentado ao julgador pelo Delegado.

A decisão judicial de restringir na espécie os direitos constitucionais do imputado à intimidade e à inviolabilidade do domicílio foi proferida por juiz absolutamente incompetente em razão da matéria, uma vez que o objeto da investigação policial e os elementos de prova e do cometimento de crimes que se pretendia buscar na casa do denunciado eram provenientes da suposta prática de contrabando e descaminho: eram bens oriundos do Paraguai.

Assim foi informado pela autoridade policial subscritora do requerimento de busca e apreensão ao magistrado que deferiu a ordem, a qual não só informou que o objetivo da diligência era colher elementos da prática dos crimes de contrabando e descaminho, como foi mais longe ao referir que tinha conhecimento que a competência jurisdicional na espécie era da Justiça Federal.

A Constituição da República prevê no art. 5º a garantia da proteção domiciliar, como projeção do direito à intimidade:

XI – a casa é asilo inviolável do indivíduo, ninguém nela podendo penetrar sem consentimento do morador, salvo em caso de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro, ou, durante o dia, por determinação judicial;

Nos incisos LII e LIV do mesmo art. 5º da CF/88 estão elencados os princípios Constitucionais do juiz natural e do devido processo legal:

LIII – ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente;

LIV – ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;

E o inciso LVI prevê a impossibilidade de se utilizar no processo provas obtidas por meios ilícitos:


LVI – são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meios ilícitos;

Desse quadro jurídico traçado pela Constituição, tem-se que o réu tem o direito de não ser denunciado, de não ser processado e de não ser condenado com apoio em elementos probatórios obtidos ou produzidos de forma ilegítima ou incompatível com os limites constitucionais e ético-jurídicos que restringem a atuação do Estado em sede de persecução penal.

A prova ilícita – por qualificar-se como elemento inidôneo de informação – é repelida pelo ordenamento constitucional, apresentando-se destituída força probante.

Nesse sentido o ensinamento de ADA PELLEGRINI GRINOVER:

"A cláusula constitucional do due process of law – que se destina a garantir a pessoa do acusado contra ações eventualmente abusivas do Poder Público – tem, no dogma da inadmissibilidade das provas ilícitas, uma de suas projeções concretizadoras mais expressivas, na medida em que o réu tem o impostergável direito de não ser denunciado, de não ser julgado e de não ser condenado com apoio em elementos instrutórios obtidos ou produzidos de forma incompatível com os limites impostos, pelo ordenamento jurídico, ao poder persecutório e ao poder investigatório do Estado. (Novas Tendências do Direito Processual, p. 60/82, 1990, Forense Universitária)

Firmada essa premissa, constata-se nos presentes autos que todas as demais provas – inclusive os lançamentos de créditos tributários efetuados pela receita Federal – surgiram e tiveram embasamento fundamental a partir da análise dos objetos e documentos colhidos na diligência de busca e apreensão deferida por autoridade absolutamente incompetente. Em verdade, toda a investigação criminal deriva daquela prova inicial.

O Termo de Verificação e Encerramento de Ação Fiscal (fls. 449-452) refere que a conclusão pela existência de acréscimo patrimonial a descoberto do réu, que redundou no lançamento de ofício dos valores decorrentes do imposto de renda sonegados ao Fisco, embasou-se nos valores e títulos de crédito apreendidos em poder de Lori Campos, sendo que foi solicitado ao réu que comprovasse a origem dos valores apreendidos em seu poder (apreensão esta decorrente do mandado de busca e apreensão expedido por autoridade absolutamente incompetente).

Vê-se que os demonstrativos de variação patrimonial do contribuinte nos anos de 2001, 2002, 2004 e 2005 foram feitos, basicamente, com base nos títulos de crédito e demais informações obtidas na diligência de busca e apreensão. Destaca-se o seguinte trecho do Termo de Verificação e Encerramento da Ação Fiscal:

"Nestes demonstrativos estão listados todos os valores que o contribuinte detinha em seu poder na data da apreensão dos mesmos, os valores referentes as notas promissórias e, também, os valores relativos a aquisição de terrenos (Documentos de Operações Imobiliárias as fls. 30/3 e escritura pública de rescisão as fls. 32/3) e pagamentos de multas aduaneiras (Dossiê integrado as fls. 34/5" (fl.450)

Diga-se isso, em virtude da necessária análise quanto à contaminação dos demais elementos de prova produzidos nos autos, principalmente em relação ao crime contra a ordem tributária, em relação ao qual houve todo o procedimento fiscal de lançamento.

Conforme referido acima, não se trata propriamente de contaminação, uma vez que os procedimentos administrativo-tributários se embasaram precipuamente nos documentos apreendidos na residência do acusado. Não se trata de novo elemento de prova indissociável da diligência viciada pela ilicitude, mas sim uma conseqüência originada diretamente da busca e apreensão.

Tanto que nas quebras de sigilo bancário-financeiro do acusado não se obtiveram maiores subsídios para fins de instruir as conclusões da Receita Federal. Portanto nem é necessária uma análise mais aprofundada quanto à existência ou não de contaminação dos outros meios de prova.

Na espécie tem-se diretamente a aplicação da doutrina norte-americana, inserida na jurisprudência brasileira pelo Supremo Tribunal Federal: a teoria fruits of the poisonous tree.


Admitem-se algumas exceções a essa conclusão da contaminação dos demais meios de prova pela prova originariamente ilícita, no entanto tais não se aplicam ao acaso, porque, conforme afirmado acima, as diligências de apuração dos tributos sonegados ao fisco, em face de falsas declarações anuais de isento, embasaram-se precipuamente nos documentos obtidos mediante a execução da ordem de busca e apreensão expedida por juiz incompetente.

Ainda que se admitisse a verificação das exceções à referida teoria, muito bem expostas em voto do eminente Desembargador Federal Nefi Cordeiro (TRF4, HABEAS CORPUS, 2005.04.01.033419-0, Sétima Turma, DJ 14/09/2005), tenho que o fato de a autoridade policial que firmou o requerimento ter expressado a incompetência da Justiça Estadual para a matéria retira a indispensável boa-fé do agente público responsável pela diligência, pois era de pleno conhecimento da polícia, e também do magistrado que deferiu a ordem, que a matéria era de competência da Justiça Federal, sendo que estariam violando garantias constitucionais da inviolabilidade do domicílio, do juiz natural e do devido processo legal deliberadamente.

Não é admissível a chancela de tais atos que acarretam a ilegalidade da prova produzida, sob pena de se desconsiderar princípios básicos do sistema jurídico brasileiro. Ainda que se lamente profundamente os efeitos dessa decisão no caso específico, em que se está aparentemente diante de réu que desmerece a ordem legal vigente de forma corriqueira, não se pode chegar ao pólo oposto de referendar o descumprimento de princípios constitucionais básicos por agentes públicos de forma deliberada para produzir prova contra investigado.

Neste sentido, ADA PELLEGRINI GRINOVER, ensina que, sendo as provas ilícitas, constitucionalmente consideradas como inadmissíveis, não podem ser tidas como prova em processo judicial, pois:

"Já se afirmou que a atipicidade constitucional, com relação às normas de garantia, acarreta, em regra, como conseqüência sanção de nulidade absoluta. O menos que se poderia dizer, portanto, é que o ingresso da prova ilícita no processo, contra constitutionem, importa a nulidade absoluta dessas provas, que não podem ser tomadas como fundamento por nenhuma decisão judicial.

Mas aqui o fenômeno toma outra dimensão: as provas ilícitas, sendo consideradas pela Constituição inadmissíveis, não são por esta tidas como provas. Trata-se de não-ato, de não-prova, que as reconduz à categoria da inexistência jurídica. Elas simplesmente não existem como provas; não têm aptidão para surgirem como provas, daí sua total ineficácia". (Ada Pellegrini Grinover, Antonio Scarance Fernandes e Antonio Magalhães Gomes Filho – As Nulidades no Processo Penal, Editora Revista dos Tribunais, 6ª edição, p. 143)

Assim, reconhecendo a ilicitude da prova e sua impropriedade para o presente feito, bem como para se sustentar qualquer juízo em face do acusado, impõe-se a anulação do feito desde a origem.

DISPOSITIVO

Ante o exposto, extingo o processo em virtude na nulidade da ação penal desde o recebimento da denúncia, sem prejuízo da renovação da persecução penal, desde que não embasada em provas ilícitas.

Após o trânsito em julgado: cumpra-se do disposto no art. 327 do provimento nº 02/2005 da Corregedoria-Geral da Justiça Federal da 4ª região.

Após, remetam-se os autos ao setor de distribuição para que seja alterada a situação do denunciado para arquivado, baixa na distribuição e arquivamento.

Publique-se, registre-se e intimem-se.
Caçador, 12 de fevereiro de 2009.
FREDERICO VALDEZ PEREIRA Juiz Federal

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