Legislar e julgar

Supremo deve aumentar a autonomia dos estados

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14 de fevereiro de 2009, 7h37

O Supremo Tribunal Federal caminha para dar mais autonomia aos estados no controle de constitucionalidade das leis municipais. Hoje, alguns ministros já entendem que cabe ao Tribunal de Justiça julgar leis municipais que contrariem trechos da Constituição Estadual que fazem referência à Constituição Federal. Municípios e estados costumam argumentar que os TJs estariam invadindo competência do Supremo, uma vez que as Constituições Estaduais, em alguns dispositivos,  apenas reproduzem o que está previsto na Carta Federal.

O entendimento que prevalecia na corte era o fixado em 1992. Durante o julgamento da Reclamação 370, o relator, ministro Octavio Gallotti, afirmou que os Tribunais de Justiça não tinham competência para julgar ADIs contra leis criadas com base na Constituição Federal, ainda que de forma indireta (quando a Constituição Estadual faz remissão apenas à Federal). Para ele, a reprodução das normas constitucionais obrigatórias “em termos estritamente jurídico” era “ociosa”.

No ano passado, essa jurisprudência começou a cair. Em dezembro, o ministro Celso de Mello arquivou uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 100) contra Lei Complementar 116/08 do município de Palmas (TO), que institui a contribuição para o custeio do serviço de iluminação pública. Segundo ele, a ADPF só pode ser usada quando não houver outras formas efetivas de atestar a constitucionalidade de leis e, neste caso, tinha. Ele reconheceu a competência exclusiva do Tribunal de Justiça para analisar Ação Direta de Inconstitucionalidade contra a referida norma.

De acordo com o ministro, a ação foi proposta por partido político porque o Tribunal de Justiça de Tocantins se manifestou incompetente para analisar a norma, que se baseia em dispositivo da Constituição Estadual que trata de uma transcrição literal de norma da Constituição Federal. Os desembargadores concluíram que, se decidissem sobre a lei, estariam invadindo a competência do Supremo Tribunal Federal de analisar e interpretar a Constituição Federal. Celso de Mello concluiu que, ao fazer a remissão, a carta estadual incorpora a federal. Portanto, o tribunal de segunda instância é o órgão competente para julgar ação contra atos municipais e estaduais.

Em setembro, o ministro Gilmar Mendes já tinha votado no mesmo sentido. Na Reclamação 4.432, o presidente do Supremo analisou recurso também contra decisão do TJ de Tocantins. Desta vez, no entanto, os desembargadores suspenderam a vigência de leis complementares e de um decreto de Palmas sobre taxa de coleta de lixo.

O município argumentava que dispositivos reproduzidos da Constituição Federal não servem de parâmetro para a declaração de inconstitucionalidade de leis do município, “pois dessa forma estar-se-ia conferindo ao Tribunal de Justiça a competência para exercer a fiscalização abstrata da constitucionalidade de leis em face da Constituição Federal”.

Gilmar Mendes considerou que é sempre competência dos TJs analisar se lei municipal contraria a Constituição Estadual, ainda que essa reproduza a Federal. Gilmar Mendes afirmou a autonomia dos estados. Para ele, se a norma constitucional federal reproduzida fosse revogada, a norma estadual persistiria “por ter eficácia no seu âmbito de atuação”.

Na sua decisão, o presidente da suprema corte fez referência aos estudos do professor Léo Ferreira Leoncy sobre a autonomia das normas remissivas em relação à Constituição Federal.

Autonomia ampliada

O professor Leoncy reconhece a mudança de jurisprudência do STF. Ele afirma que, até as decisões de Celso de Mello e Gilmar Mendes, os ministros do Supremo chamavam para si a responsabilidade pela análise de normas municipais e estaduais. Para ele, no entanto, essa responsabilidade sempre foi dos TJs. É normal o legislador se referir ao texto da CF ao invés de fazer repetições incômodas ou cansativas. “Quando o legislador faz isso, no fundo, ele está incorporando as normas do outro sistema normativo a que ele faz referência.” A consequência disso é que o TJ analisa a Constituição Estadual, não a Federal. “Os TJs passam a ser guardiões indiretos da CF. Mas nada impede que depois da decisão em ADI, as partes recorram ao Supremo”, lembra o professor, que é autor do livro Controle de Constitucionalidade Estadual.

Até a edição da Constituição Federal de 88, a possibilidade de os estados inovarem no texto de suas constituições era muito pequena. Com a chamada Carta Cidadã, eles ganharam mais espaço para criar, embora em muitos casos tenham se limitado a reproduzir ou fazer mera remissão às normas constitucionais federais, em especial as chamadas normas de observância obrigatória.

De acordo com o professor Léo Ferreira Leoncy, o próprio Supremo contribuiu para reduzir ainda mais a autonomia estadual concedida pela Carta de 88, com interpretações restritivas de seus dispositivos. “Essa postura abafou entendimentos mais favoráveis a um modelo federal mais pluralista.” Hoje, ministros como Celso de Mello, Gilmar Mendes, Joaquim Barbosa e Menezes Direito têm ajudado a mudar essa situação, diz.

Para Leoncy, os estados deveriam ter mais liberdade para poder dar toques regionais às suas constituições. “Quando permitimos que as instâncias de poder que estão mais próximas do povo deliberem sobre seus próprios destinos e anseios, maiores são as chances de atendimento às necessidades reais da população e das instituições locais. Nesse modelo, a democracia sai fortalecida”, defende.

A Constituição do Maranhão, por exemplo, aproveitou o espaço concedido pelo constituinte federal para criar o juiz itinerante. “Muito antes que se pensasse na Emenda Constitucional 45, que criou a Justiça itinerante, o Maranhão já trazia este modelo em sua Constituição, de forma inovadora”, conta o professor, que é estudioso da autonomia dos estados-membros no Direito Constitucional brasileiro.

Segundo Leoncy, Mato Grosso introduziu na sua Constituição Estadual o embrião do que mais tarde viria a ser o Conselho Nacional de Justiça, criado pela mesma Emenda 45/04. À época, o Supremo derrubou a proposta de Mato Grosso, sob o argumento de que a fórmula traduziria retrocesso e violência constitucional. Anos depois, o STF mudou de posição e permitiu que um modelo parecido fosse criado pela Constituição Federal.

O professor cita outro exemplo da criatividade do constituinte estadual. “Nos processos de cassação de mandato parlamentar, o fato de o voto ser sigiloso é muito criticado por dar espaço a toda sorte de negociatas e acordos. Mas o STF vem declarando inconstitucionais normas de constituições estaduais que propõem o voto aberto com o argumento de que essa prerrogativa é parte necessária do modelo constitucional da perda de mandato”, acrescentou. Atualmente, apenas a Constituição do estado de São Paulo mantém o voto aberto.

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