Ativismo judicial

Poder Judiciário não pode legislar positivamente

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11 de fevereiro de 2009, 7h00

“Assim, deve ser garantido que o legislador somente promulgue leis, não exerça atos administrativos, ou do governo, ou profira sentenças, que o Executivo só concretize a lei e não as promulgue, e que a Justiça só aplique o direito e não crie disposições jurídicas”.[i]

Ao legislador, que, no Parlamento, representa a força invisível da presença pública, incumbe a feitura da lei que, em regra, deve valer de modo abstrato, ou seja, para todos.

É por isso que se diz que o povo é o construtor do direito, que tem, na lei, sua fonte primacial. É dessa idéia que se descortina, aqui, o importante princípio do devido processo legal, seja quando da elaboração da própria lei, seja quando de sua interpretação e aplicação in concreto.

Ao juiz, portanto, na condição de intérprete autêntico da Lei (Kelsen), incumbe-lhe a criação da norma — ou do direito — que deve valer, em regra, tão só para o caso concreto.

A questão, então, como se faz polêmica, é entender até que ponto a norma jurídica concretizada pode trazer, no seu bojo, contornos de abstração aptos a influenciar novos provimentos judiciais.

A questão, portanto, em outras palavras, é compreender até que ponto, sob o manto da interpretação, permite-se a indisfarçável criação do próprio direito com eficácia que a todos vincule.

Eis a tensão que se vê entre o ser e o dever ser, ou entre o direito posto e o direito pressuposto (Eros Grauii]), e que se acentua ainda mais agora, diante das inovações legais que se impuseram como modo de superar as crises de efetividade ou de força normativa da ordem constitucional.

Quando o Supremo Tribunal Federal produz determinada decisão em sede de Habeas Corpus, por exemplo, essa decisão deve valer apenas para as partes desse caso in concreto?

E se tal decisão — ou seu fundamento determinante em sede de controle difuso — confirmar a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo, decorrerá dessa confirmação obrigatoriedade para que todos a cumpram?

O que dizer, então, da edição de súmula vinculante com eficácia constitucional erga omnes? O que dizer ainda da Reclamação que, como recurso, é posta à disposição de todos com o objetivo de fazer valer as decisões do próprio STF? E o que dizer, enfim, da súmula impeditiva de recursos ou mesmo do precedente sumular que permite ao juiz extinguir ou arquivar de modo antecipado o processo sem julgamento do mérito?

Eis, destarte, questões que retratam nosso dilema shakespeariano.

Se, contra o legislador, pode-se vetar a lei; se, contra o Executivo, pode-se coibir arbitrariedades; O que se poderá fazer contra o Judiciário quando, a pretexto de julgar, extrapola os limites da separação dos Poderes, criando, disfarçadamente, normas jurídicas de eficácia abstrata?

Quem, senão o próprio Judiciário, pode impedir sua atuação como legislador positivo?

O que se tem como certo, portanto — do ponto de vista positivo —, é que o legislador constituinte derivado, ainda que de modo contraproducente, em busca de efetividade, promulgou a Emenda Constitucional 45/04, da qual decorreram inúmeras leis ordinárias, dentre as quais, a Lei 11.276/06, cujo artigo 2o alterou a redação do artigo 518 do Código de Processo Civil para:

Art. 518 (…)

§ 1o – O juiz não receberá o recurso de apelação quando a sentença estiver em conformidade com súmula do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal.

Nesta esteira, a Lei 11.277/06 acresceu, no CPC, o artigo 285-A, com a seguinte dicção:

Art. 285-A – Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.

§ 1o – Se o autor apelar, é facultado ao juiz decidir, no prazo de cinco dias, não manter a sentença e determinar o prosseguimento da ação.


§ 2o – Caso seja mantida a sentença, será ordenada a citação do réu para responder ao recurso.

Ora, o que seriam, assim, como acima se fez mencionar, os “casos idênticos”? Seriam casos de litispendência ou da própria coisa julgada?

Imagine-se, desse modo, diante das normas ut supra, a situação absurda de determinado autor que, inconformado com sentença em processo do qual sequer houve citação, decida reclamar. Aí então é possível que o juiz não receba tal recurso, desde que sua sentença esteja em conformidade com súmula do STF ou do STJ.

Tal situação absurda, repito, afronta, induvidosamente, de uma só vez, vários princípios constitucionais como, por exemplo, o de acesso à Justiça, o do devido processo legal, o do contraditório e o da ampla defesa.

Cito, a propósito, a Lei 9.756/98 que, mesmo anterior à EC 45/04, deu nova redação ao artigo 557 do CPP, não falando, ali, apenas de súmula, mas de jurisprudência dominante:

Art. 557 – O relator negará seguimento a recurso manifestamente inadmissível, improcedente, prejudicado ou em confronto com súmula ou com jurisprudência dominante do respectivo tribunal, do Supremo Tribunal Federal, ou de Tribunal Superior.

Como se vê, as decisões do STF têm sempre muita importância no contexto geral do direito. Já se sabe, ademais, que o STF, em processos objetivos, não pode legislar positivamente, podendo, quando muito, assim o fazê-lo de modo negativo, quando decide ou quando fundamenta os motivos determinantes em decisão, por exemplo, de ação direta de inconstitucionalidade de lei ou de atos normativos.

É claro que, em tais processos ditos objetivos, a decisão definitiva do STF terá eficácia erga omnes e efeitos vinculantes.

Entretanto, nos processos de natureza subjetiva, tal eficácia e tal efeito não podem ocorrer. Por quê?

Porque, em primeiro lugar, a própria Constituição Federal pontua, no inciso II do artigo 5o, que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.

Ora, em virtude de lei não é a mesma coisa que em virtude de decisão judicial. Eis a essência do princípio da legalidade que difere do princípio da reserva legal.

E porque, em segundo lugar, é da essência da decisão judicial — salvo quando em processos objetivos — criar normas com eficácia entre partes sob pena de, em se admitindo tal eficácia erga omnes, desrespeitar, com relação a quem se faça interessado, a ampla defesa e os recursos a ela inerentes.

Não pode prevalecer, por conseguinte, o argumento de que a reserva de plenário, de que trata o artigo 97 da CF, possibilite eficácia erga omnes e efeito vinculante à decisão, em processo de controle difuso, que declare a inconstitucionalidade de lei ou de ato normativo.

Esta tormentosa questão, contudo, queda sub judice no âmbito do STF. Trata-se da Reclamação 4.335.

Com relação às súmulas, sejam vinculantes ou não, digo, de igual modo, que súmulas não são leis, pois o Poder Judiciário não pode legislar positivamente, do mesmo modo como não pode deixar de proferir provimento para a solução de conflitos que lhe são encaminhados.

O ativismo judicial de que aqui trato avança desbragadamente na direção de sua índole vinculativa. Isso não é bom. É contra a própria essência do Estado Democrático de Direito.

A teoria pura do Direito[iii], como idealizada por Hans Kelsen, em contraposição à ideia do Direito Natural, tende a significar a própria teoria do positivismo jurídico. O positivismo deu azo à discricionariedade ou ao decisionismo, ou seja, o intérprete solipsista em busca da norma jurídica.

Porém, o juiz, quando cria a norma jurídica diante do caso difícil ou fácil que tem de decidir, não pode se valer tão só do julgamento moral que sua consciência dita.

Sabe-se, enfim, que o pós-positivismo permitiu a reaproximação do Direito com os valores morais, propiciando, também, os paradigmas dos princípios e da consideração de imperiosa ênfase da relação “sujeito-sujeito”, e não mais “sujeito-objeto”, ou seja, da imprescindível intersubjetividade.


O juiz, portanto, quando aplica a norma, não o faz unicamente como produto de sua vontade e de sua discricionariedade. O juiz deixa de ser a expressão de “boca da lei”, para avançar na busca do Estado Democrático de Direito, pela riqueza de cada caso, ou seja, pelo insondável mundo das intersubjetividades.

Tal avanço não tem nada a ver com ativismo judicial. O Direito deixa de ser mero regulador para ser transformador dos direitos sociais e fundamentais.

“A doutrina diz como o Direito deve ser. A Justiça diz como o Direito é”. Neste sentido, é certo imaginar que o Judiciário, quando, por índole política, elege a decisão que entenda mais correta e que atenda aos reclamos do Estado Democrático de Direito, adquire, assim, ares de autêntico Poder democrático.

O Direito, portanto, resultante do “ato de interpretar, não é produto nem da objetividade plenipotenciária do texto e tampouco de uma atitude solipsista do interprete: o paradigma do Estado Democrático de Direito está assentado na intersubjetividade.” (Lenio Streck).[iv]

Encerro, enfim, este despretensioso estudo, com a convicção de que o Estado, representado por seus poderes funcionais (Executivo, Legislativo e Judiciário), pode e deve exercer império sobre os cidadãos. Entretanto, o homem, na riqueza de suas relações intersubjetivas e na grandeza de sua dignidade humana — a que se insere o Estado Democrático de Direito — impõe-se em primazia sobre os interesses do próprio ente estatal.

É por isso que o princípio da segurança jurídica, por exemplo, é um superprincípio do qual não se pode prescindir quando de qualquer provimento judicial.

O ativismo judicial, portanto, como aqui superficialmente abordado, não pode sobrepor-se ao paradigma do Estado Democrático de Direito que se assenta na intersubjetividade, como ensina Lenio Streck.

Referências:

[i] Teoria do Estado. Doehring, Karl. (apresentação de Ingo Sarlet). Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2008, pág. 284.

 [ii] Grau, Eros Roberto. O direito posto e o direito pressuposto. São Paulo: Malheiros Editores, 2005. 6a edição.

 [iii] Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. (5a edição revista da tradução de J.Cretella Junior). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007.

 [iv] Streck, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Rio de Janeiro: Editora Lúmen Júris, 2008. pág. 216.

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