Gargalo carcerário

Falência do sistema se resolve com penas alternativas

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7 de fevereiro de 2009, 7h14

Estima-se que 30% da população carcerária esteja recolhida indevidamente em presídios. Levantamento do Depen (Departamento Penitenciário Nacional), de julho de 2008, revelou que para cada quatro presos, só um cumpre pena alternativa. Existem, hoje, cerca de 450 mil presos no Brasil. Desse total, 96% são extremamente pobres e não dispõem de assistência Judiciária de qualidade, informa o Conselho Nacional de Justiça.

Os principais problemas enfrentados pelos presos — além do déficit de Justiça por falha no processo de execução penal — são a degradação do ambiente, superlotação, falta de assistência médica e falta de trabalho dentro das prisões. O caos do sistema penitenciário foi revelado pelos mutirões promovidos pelo CNJ. Em apenas cinco presídios brasileiros, cerca de 1.300 pessoas foram libertadas por estarem presas irregularmente.

Em um dos oito presídios do estado do Maranhão, foram descobertas pessoas presas temporariamente há mais de três anos, ainda sem denúncia do Ministério Público, e tantas outras com algum tipo de benefício vencido. Estima-se que 180 mil pessoas estejam cumprindo prisão temporária no país. Só no Maranhão, dos quase dois mil casos analisados pelo CNJ, 590 tinham direito a algum benefício. É o retrato do caos.

 De acordo com especialistas, a decisão do STF e as excelentes medidas do CNJ ainda são pouco. O problema da falência do sistema penitenciário deve ser combatido por meio de políticas públicas, aponta o criminalista Antonio Gonçalves, do Antonio Gonçalves Advogados Associados. Segundo ele, a Lei de Execuções Penais (Lei 7.210/84 ) é obsoleta “e sua inoperabilidade reflete diretamente no sistema prisional”. O advogado segue a linha de que a solução seria promover reforma na Lei de Execuções e privatizar os presídios do país.

Gonçalves acrescenta que o CNJ deveria se preocupar também em levantar uma discussão para reformar a Lei de Execuções porque os mutirões são bons, mas são medidas paliativas. O advogado afirma, ainda, que as pessoas são presas para indenizar a sociedade de um delito cometido, mas é a própria sociedade que paga novamente a conta. “Se os presídios fossem privatizados, esses presos seriam ressocializados, já que todos são trabalhadores em potencial”, disse.

O presidente da seccional paulista da OAB, Luiz Flávio Borges D’Urso, discorda do raciocínio. De acordo com ele, a Lei de Execuções Penais é de primeiro mundo. D’Urso defende que não há reparo algum para se fazer no diploma legislativo. “A lei é bastante avançada. O problema do sistema prisional não está na legislação e sim na falta de administração e cumprimento da lei”. O criminalista Luis Flávio Gomes concorda com o presidente da Ordem. Acrescenta apenas que o problema da superlotação dos presídios acontece porque só pobres vão para cadeia. “E como só têm pobres não existe uma preocupação em humanizar os presídios. Não há nenhuma iniciativa para resgatar a dignidade dos detentos.”

Na década de 90, o presidente da OAB paulista defendeu uma tese sobre privatização do sistema prisional. Para isso, foi buscar experiências do exterior. D’Urso fez avaliações dos presídios terceirizados e privatizados. Depois de analisados, defendeu qual o modelo se adequaria ao Brasil. Na sua tese, ele rejeitou o modelo privado. Segundo ele, é inconstitucional delegar à iniciativa privada um poder próprio do Estado.

Por esse motivo, defende apenas a terceirização dos serviços carcerários. Para ele, o modelo ideal para o Brasil é a experiência francesa, onde os presídios são administrados pelo Estado junto com iniciativa privada. Ele explica também que a execução penal tem duas fases: a penal jurisdicional e a material. A jurisdicional é o poder que o Estado tem de punir o homem e este poder é indelegável. Reforça que a Constituição não permite passar isso para a iniciativa privada.

Já a função material da execução penal pode ser delegada a terceiros, que consiste no fornecimento de comida, roupa, assistência, médica, assistência jurídica e até segurança. Segundo D’Urso, ainda no começo da década de 90, o país teve uma experiência similar no presídio de Guarapuava, no Paraná. A segunda medida foi em Juazeiro do Norte (CE), e outras mais recentes em outros pontos do Brasil. Ele afirma que, apesar das dificuldades, as experiências tem se mostrado vitoriosas. O presidente da OAB-SP acrescenta que o país pode caminhar nessa linha sem qualquer vedação constitucional. “Essa terceirização continua, agora, com as PPPs (Parcerias Público-Privadas). Essa pode ser a saída para o drama do sistema carcerário”, disse.

Para o conselheiro do CNJ Jorge Antonio Maurique, a falta de estrutura judicial e de aparelhamento para acompanhar a demanda de presos é o grande gargalo do sistema carcerário. Ele defende aplicação mais intensa de penas alternativas e o maior controle da população carcerária. Sobre o mutirão, o conselheiro diz que ele cria uma cultura de compromisso das varas de execução. O próximo passo do CNJ, segundo ele, é aperfeiçoar as medidas implementadas para tentar minimizar o caos do sistema.

O criminalista Alberto Zacharias Toron, observou que é preciso analisar as falhas do sistema penitenciário em dois níveis. Num primeiro plano, são as ineficiências do sistema a começar nas condições de habitabilidade dos presos. “Ainda que esses presos queiram trabalhar, não tem trabalho nos presídios. Eles ficam à mercê da corrupção de gangues e facções lá dentro. Faltam condições para educação dessa população carcerária”.

O segundo plano, de acordo com Toron, se refere ao plano jurídico penal. Ele aponta que há desorganização e muita lentidão da administração. “Tenho a sensação de que o problema não é fortuito. Atrás dessa lentidão tem uma ideologia de controle, a de manter o preso no cárcere”, disse. O advogado não concorda que as medidas do CNJ atacam apenas as conseqüências. Segundo ele, as medidas vão ao limite do que é possível ser feito pelo órgão. “O Conselho pode adotar medidas administrativas para ajudar no caos, mas não pode invadir a esfera jurisdicional porque aí seria omiscuir a liberdade de decisão do juiz".

Alberto Toron também falou de informatização. Apontou que com a nova resolução do CNJ (66/2009) de acompanhar as prisões temporárias, os juízes terão de informar antes de decretá-las. “Agora já existe um organismo de controle formal. Os juízes vão pensar duas vezes”. Isso pode evitar prisões desnecessárias. Ele lembrou que o STF, TST, CNJ, órgãos de cúpula, são quase 100% informatizados, mas que os de base, como as varas de execução, ainda carecem de informatização plena. “É preciso mudar a cultura, pois a tecnologia isolada não ajuda o caos do sistema”.

Quanto à privatização de presídios, ele entende que o Estado poderia fazer experiências para ver se funciona efetivamente. Segundo ele, do jeito que está ruim, talvez a medida ajudaria na dignidade do preso. “A privatização pode significar melhora na administração, uma coisa mais racional. É preciso criar projetos pilotos. Não sou cegamente favorável à privatização, mas, mais de 20 anos se passaram desde que a Lei das Execuções entrou em vigor e o Estado está muito aquém de cumprir suas obrigações legais e constitucionais".

O advogado criminalista Luis Guilherme Vieira, membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, órgão ligado ao Ministério da Justiça, aponta também que uma das medidas contra o caos prisional é aplicar mais penas alternativas. Para ele, é preciso reservar a cadeia para quem não tem condições de permanecer em convivência social. Vieira aponta que o caos do sistema não está ligado a um problema de governo, mas sim de Estado “É preciso criar uma política efetiva para combater o problema”.

O criminalista discorda totalmente da ideia de privatizar os presídios. “São Paulo e Rio de Janeiro não são Manhattan. Chega de importar modelos que não são adequados para a nossa realidade. Se a Lei de Execuções fosse cumprida ,o sistema não estaria assim. É preciso também parcimônia do Judiciário ao decretar as prisões”. 

Controle das prisões

Para tentar acabar com as injustiças cometidas por falha na administração carcerária, o CNJ aprovou recentemente a Portaria 66/09, que vai impedir que presos fiquem reclusos indevidamente. A norma foi publicada no dia 30 de janeiro no Diário Oficial. Na prática, a cada trimestre os juízes deverão encaminhar dados às corregedorias sobre a situação das prisões temporárias. A medida foi proposta pela conselheira Andréa Pachá.

O regulamento possibilita também que juízes tenham conhecimento dos processos parados há mais de três meses, cujos acusados estejam presos. “A resolução cria um controle para efetivar a atuação do juiz”, justificou Pachá na ocasião.

De acordo com o presidente do CNJ e do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, o Brasil possui um número “elevadíssimo” de prisões temporárias. O ministro citou como exemplos os dados do Maranhão com 74% dessas prisões, Bahia 73%, Minas Gerais 72% e Amazonas com 67%.

“São números extremamente altos”, disse. De acordo com ele, não há dados precisos sobre esses casos, mas a estimativa é de que as prisões temporárias correspondam a mais de 50% nos estados. Para ele, a resolução possibilitará a supervisão de uma área muito sensível dos direitos humanos. “Vamos acompanhar uma demanda quanto ao respeito aos direitos humanos e o combate á impunidade”, afirmou.

Para tentar amenizar o problema, o CNJ lançou também o programa Começar de Novo, que busca a reinserção de presos no mercado de trabalho. O programa é focado na promoção de cursos de qualificação de detentos que estão prestes a deixar a prisão e, para isso, acordos foram firmados com as Indústrias de São Paulo e com o Sistema S (Senai, Sesi, Sesc e Senac).

O CNJ também pretende informatizar todas as varas de execução. A capital Belém (PA) foi a primeira a receber uma vara de execução penal totalmente informatizada. A inauguração foi no último mês de janeiro. O sistema que será utilizado pelas varas é uma adaptação do projeto criado pela Justiça sergipana e vai complementar o Ifopen — programa de coleta de dados com acesso online ao Departamento Penitenciário Nacional (Depen), ligado ao Ministério da Justiça.

 

Na quinta-feira (5/2), o Supremo tomou uma decisão que pode ajudar a melhorar esse quadro. Por sete votos a quatro, os ministros decidiram que um condenado só poderá ser preso com o processo transitado em julgado. Os ministros entenderam que a execução provisória da prisão não pode ser feita enquanto houver recursos pendentes. A decisão foi embasada no inciso LVII do artigo 5º da Carta Magna, que estabelece o princípio da presunção de inocência.

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