Direito de ficar

Brasil defende Direitos Humanos ao anistiar imigrante

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7 de fevereiro de 2009, 7h40

Não são recentes os vários fatos que vêm marcando as políticas inerentes à migração, sejam as de visível afronta aos direitos humanos, em que se procura criminalizar a migração irregular e, consequentemente, equipara aqueles que simplesmente buscam melhores condições de vida com os que são verdadeiros “bandidos”; sejam as de caráter essencialmente humanitário e que visam a facilitar a circulação e integração de pessoas.

Em homenagem à consciência do que sejam verdadeiramente direitos humanos, sinto-me no dever e na obrigação de manifestar-me contrariamente às recentes atitudes de países considerados de primeiro mundo, que dizem viver num Estado de Direito consolidado e, porém, adotam posturas da época das mais remotas civilizações.

A aprovação, em 2008, pelos países da União Européia do Pacto Europeu de Imigração e Asilo, também conhecido como Diretiva de Retorno, que visa a “controlar a imigração ilegal” e promover a entrada de “estrangeiros qualificados”, é um exemplo de que governos parecem ignorar o fato de serem signatários de instrumentos em que se comprometem a respeitar e primar pela proteção dos direitos humanos de qualquer pessoa, mas “usam” imigrantes como “simples degraus” para subir em épocas de crescimento econômico ou para descer em tempos de crise.

Com cláusulas de clara afronta aos direitos humanos, intentam responsabilizar criminalmente os imigrantes irregulares sem possibilidade de que este venha a retornar a qualquer dos países do Bloco, e prevê, entre outras medidas, que um estrangeiro pode ficar até 18 meses preso antes de ser expulso.

Alguns países tratam a situação jurídica dos imigrantes em leis de segurança pública, como se criminosos fossem. Certamente, o dia 5 de fevereiro de 2009 entrará para a história após a aprovação, pelo senado italiano, de legislação que expõe o imigrante, carente de socorro e com risco à sua integridade física, à delação pelos médicos que lhe prestarem atendimento, o que demonstra o descaso para com a vida humana, isto porque sabedores da possibilidade de delação e mesmo em estado grave, certamente não irão buscar o necessário auxílio médico.

O mundo não é de uma só Nação, e tenho a certeza de que se assim fosse esta sentiria falta das outras a ponto de anular a razão de sua própria existência, pois estariam ausentes a necessária troca de informações, experiências, conhecimentos, entre outros. O egoísmo, a intolerância e as mazelas de toda má sorte não devem coexistir no mesmo espaço.

Como país formado por imigrantes, o Brasil prova, a cada dia, como as diferenças na verdade prestam-se à construção de uma sociedade harmônica, sem preconceitos quanto à cor, raça, religião ou crença, reconhecida por ter pessoas trabalhadoras, verdadeiros vencedores dos obstáculos diários que a vida é capaz de oferecer.

Trazendo tal conceito para as políticas migratórias adotadas, há de ter-se em conta que os migrantes são, acima de tudo, seres humanos, titulares de direitos e deveres que devem ser respeitados, não só nas boas práticas que aqui existem, mas, também, por tratar-se de compromisso internacional contido nos vários instrumentos firmados pelo Governo brasileiro.

Nesse sentido, é sempre bom lembrar que o próprio texto constitucional brasileiro, especificamente no Título que trata Dos Direitos e Garantias Fundamentais, explicita que todos são iguais perante a lei, sejam brasileiros ou estrangeiros residentes.

Sob essa óptica, a Secretaria Nacional de Justiça, que possui, entre outras, a competência para tratar da situação jurídica de estrangeiros no Brasil, adotou uma série de medidas articuladas para tratar o tema de forma mais humanitária.

Uma delas foi o encaminhamento para a Casa Civil da Presidência da República do anteprojeto da nova Lei de Estrangeiros, em abril de 2008, para substituir o atual Estatuto do Estrangeiro (Lei 6.815, de 1980). O vigente instrumento possui resquícios da época em que foi elaborado, com previsões claramente voltadas para a segurança nacional e proteção do Estado. Amparado nos direitos humanos, o anteprojeto trata o tema de forma a cristalizar a postura do Brasil de rejeição a práticas antiimigratórias e criminalizadoras de simples irregularidade na estada dos estrangeiros.


Outra medida foi a edição e publicação de duas portarias que beneficiam estrangeiros residentes: as Portarias MJ 2.524 e 2.525, ambas de 17 de dezembro de 2008, publicadas no Diário Oficial da União do dia 18 de dezembro subsequente.

A Portaria 2.524 trata da expedição de Cédulas de Identidade para Estrangeiros (CIE), com validade indeterminada, para aqueles com mais de 51 anos ou deficientes físicos de qualquer idade, que, nos termos da Lei nº 9.505, de 15 de outubro de 1997, ficam dispensados da renovação da CIE, porém, continuavam a ser expedidas com o limite de nove anos, expondo seus portadores a situações constrangedoras tendo que justificar perante órgãos públicos e privados que, apesar de estar vencida a CIE, não havia a necessidade de renová-la. Agora, estes terão em sua carteira no local do prazo de validade o termo “indeterminada”.

A Portaria 2.525 autoriza os estrangeiros permanentes a utilizarem o mesmo canal de entrada e saída reservado a brasileiros, objetivando tratamento mais isonômico aos estrangeiros registrados como permanentes que, em sua maioria, se trata de cônjuge ou genitor de brasileiros, tudo em homenagem à especial proteção da família, eis que no momento do controle migratório era necessário separar a célula familiar, enquanto nossa Constituição não faz tal distinção.

Considerando que milhares de estrangeiros no Brasil encontram-se em situação migratória irregular, uma outra medida foi o encaminhamento pelo Ministério da Justiça, por meio da Secretaria Nacional de Justiça, à Casa Civil de proposta de Medida Provisória a ser encaminhada pelo Exmo. Presidente da República ao crivo do Congresso Nacional. O intuito é promover a regularização da estada dos estrangeiros que aqui já se encontram irregulares — comumente chamada de “anistia” —, e é medida do mais puro caráter humanitário.

Na verdade, independentemente de sua condição de entrada ou estada no Brasil, a maior parte dos estrangeiros que nesta situação se encontram vêm em busca de melhores condições de vida. Entretanto, por encontrar-se irregular e, portanto, sem documentos, acaba alienado dos mais elementares direitos civis, trabalhistas e previdenciários, transformando-se em forte candidato à exploração, seja laboral ou até mesmo criminosa, ou, ainda, aumentando nossas estatísticas de desempregados.

A proposta de Medida Provisória de “anistia” prevê que os estrangeiros que aqui se encontram em situação migratória irregular poderão requerer residência temporária de dois anos, que se formaliza com o registro provisório, podendo, ao final, antes de vencer o prazo autorizado, solicitar sua transformação em permanente.

À exceção dos direitos privativamente reservados aos brasileiros, o estrangeiro beneficiado com a “anistia” terá os mesmos direitos inerentes aos nacionais, entre eles a liberdade de circulação no território nacional, o acesso ao trabalho remunerado e o pleno direito à educação, à saúde pública e ao acesso à Justiça, inclusive a gratuita.

Quando se fala em anistia, o primeiro questionamento que vem à mente é a quantidade de estrangeiros a serem alcançados pela medida… Quantos seriam? Onde se encontram? Na verdade, por abranger uma condição implícita de irregularidade, “clandestinidade” e consequente fragilidade, quaisquer números apresentados, ainda que ditos “oficiais”, não são inteiramente confiáveis. Ademais, não faz diferença, já que estamos tratando de seres humanos que já se encontram no País, normalmente trabalhando e sobrevivendo em condições mais precárias que a maioria dos nacionais, e esperançosos de uma oportunidade para efetivamente integrarem-se à comunidade brasileira de forma justa e digna.

As três últimas anistias concedidas aos estrangeiros foram levadas a efeito sob a égide do atual Estatuto do Estrangeiro. Assim, entre os anos de 1981 e 1984, aproximadamente 27 mil estrangeiros em situação irregular registraram-se na Polícia Federal, sob a condição “provisório”, visando à obtenção da permanência definitiva, nos termos da Lei nº 7.180, de 20 de dezembro de 1983.


Posteriormente, foi promulgada a Lei nº 7.685, de 02 de dezembro de 1988, que dispunha sobre o registro provisório para estrangeiro em situação ilegal[1] no território nacional, e, apesar de sua divulgação deficiente, veio a regularizar aproximadamente 37 mil estrangeiros.

Por último, em 1998, o Congresso Nacional decretou uma nova anistia para os estrangeiros irregulares, sancionada na forma da Lei 9.675, de 29 de junho de 1998, que manteve os mesmos parâmetros utilizados pela citada lei de 1988. Em que pese a razoável repercussão e divulgação, inclusive por meio de publicidade institucional na imprensa escrita, no rádio e na televisão, alcançou cerca de 39 mil estrangeiros; entretanto, muitos outros, mormente aqueles que integravam famílias mais humildes e numerosas, viram-se impossibilitados de pagar as altas taxas estabelecidas e acabaram compelidos a permanecer na clandestinidade.

Destas experiências, estudou-se um novo instrumento normativo, aproveitando os aspectos positivos das anistias anteriores, a exemplo de sua essência humanitária e da isenção de multas, e corrigindo deficiências recorrentes, como os altos valores fixados para a expedição das carteiras de identidade, o rigorismo burocrático, a limitação do pleno direito ao exercício de atividades laborais e a deficiência na divulgação para a população interessada.

Importante ressaltar, ainda, que a proposta de “anistia” vem no exato momento em que os povos da América Latina buscam a sua efetiva integração econômica, social e cultural, com vistas à formação de uma comunidade latino-americana de nações, princípio fundamental da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, conforme disposto no parágrafo único do artigo 4º, a exemplo do Acordo sobre Residência para Nacionais dos Estados Partes do Mercosul, Bolívia e Chile, em vias de entrar em vigor, e que tem demonstrado ser um grande acerto da política internacional brasileira.

Também é certo que a grave situação vivida por milhares de estrangeiros irregulares que aqui já se encontram estabelecidos acaba por torná-los possíveis vítimas da exploração de “empresários” inescrupulosos, fomentando a criminosa indústria do tráfico de pessoas, como cediço, só menor que a do tráfico de drogas e de armas, materializando a relevância da medida.

Por esses motivos que o Governo brasileiro se posiciona mais uma vez com ações de cidadania e de respeito aos direitos humanos, na contramão de alguns governos que dizem cumprir seu papel, quando na verdade “lavam as mãos” obstaculizando, e até impedindo, a entrada destes com inaceitáveis gestos quase criminosos que se revestem de xenofobia e intolerância em grave desacordo com os compromissos internacionais assumidos em temas de direitos humanos.

Uma chamada “regulação dos fluxos migratórios” só será possível com muito diálogo em que autoridades discutam o que levam as pessoas a migrarem e combatam essas causas e não o seu fruto, que são os migrantes. Criminalizar a migração irregular só nos tenciona a caminhar para que, amanhã, a pessoa que pretende residir em determinado território faça-o de qualquer sorte, porém, burlando as leis daquele país. Com isso, só quem ganha são as organizações criminosas especializadas em falsificação de documentos e até no tráfico de pessoas e de migrantes que acabam por se fortalecer.

Até lá, a maior preocupação do Governo brasileiro é impedir que mais e mais pessoas vivam à margem da sociedade simplesmente por não estarem em situação migratória regular e, por isso, sabe-se da importância desse ato, que em breve se concretizará, que é tornar possível a regularização migratória destes, com regras claras, para que todos os que aqui se encontram sejam verdadeiramente alcançados com a medida.

Portanto, trata-se de implementação de um instrumento normativo focado na integral proteção dos direitos humanos elencados em nossa Constituição Federal, e que, de certo, encontra forte respaldo em toda sociedade brasileira, indignada com o recrudescimento das políticas migratórias com ar de xenofobia que vêm ganhando corpo nos países ditos economicamente mais desenvolvidos.

Hoje, impõe-se que a migração seja tratada como um direito do Homem, e a regularização migratória é o caminho mais curto, justo e viável para a integral inserção do imigrante na sociedade, permitindo os efetivos avanços sociais, culturais e econômicos, com respeito e justiça, buscados por todas as sociedades democráticas de direito.

[1] Atualmente, não há que se utilizar a expressão imigrante “ilegal” no Brasil, mas apenas imigrante “irregular”, pois não constitui crime o fato de um estrangeiro ingressar regularmente no País e, por razões diversas, como por exemplo, extrapolar o prazo de estada autorizado, pois, nesse caso, ele estará em situação irregular. O termo “clandestino”, também em desuso, refere-se àquele que não se submeteu ao controle migratório, ou seja, sem autorização.

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