Erro de competência

Entendimendo da Súmula 366 do STJ é incoerente

Autor

  • Elias Cabral de Souza Lima

    é assessor de desembargador do Tribunal de Justiça de Rondônia e aluno do curso de pós-graduação lato sensu em Direito Ambiental da Escola da Magistratura do Estado de Rondônia.

3 de fevereiro de 2009, 15h30

A Justiça do Trabalho é aquela que se ocupa dos litígios decorrentes da relação entre empregador e empregados, sendo que sua competência é regida pelo artigo 114 da Constituição Federal.

Referido dispositivo sofreu alterações com a Emenda Constitucional 45 de 2004 que, diante da necessidade de racionalizar a tramitação do processo judicial como um todo, estabeleceu matérias que, por sua própria natureza e fundamentos, passariam a ser apreciadas pela Justiça Obreira.

Dentre estas alterações, temos a inserção do inciso VI ao artigo 114 da Constituição Federal, o qual estabelece que compete à Justiça do Trabalho processar e julgar as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho.

A dúvida surgida a partir de então era estabelecer que situações jurídicas eram passíveis de se levar à Justiça do Trabalho, a fim de se pleitear reparação por dano moral ou material.

No caso específico das ações por acidente de trabalho, anteriormente à modificação da competência da Justiça Trabalhista, estas eram resolvidas no âmbito da Justiça Comum estadual, uma vez que decorreriam e teriam fundamento no ilícito civil previsto no artigo 186 do Código Civil Brasileiro. E isto era pacífico, consoante reiterada jurisprudência do STJ, conforme se infere do seguinte julgado:

AGRAVO REGIMENTAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUSTIÇA ESTADUAL E JUSTIÇA DO TRABALHO. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO. ACIDENTE DE TRABALHO. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA ESTADUAL. 1 – Compete à Justiça Estadual processar e julgar ação objetivando indenização em razão de acidente de trabalho. 2 – Agravo regimental improvido. (AgRg no CC 41.954/RJ, Rel. Ministro Fernando Gonçalves, Segunda Seção, julgado em 22/09/2004, DJ 06/10/2004 p. 172)

Contudo, tal posicionamento, a nosso sentir, nunca se mostrou correto, porquanto a questão relativa a acidentes de trabalho sempre teve relação umbilical com a seara trabalhista e não poderia, sob qualquer pretexto, ser resolvida no âmbito da Justiça Comum.

Tal constatação decorre do fato de o acidente de trabalho estar relacionado à inobservância, seja pelo empregador ou pelo empregado, das normas relativas à medicina e segurança no trabalho, relação esta que foi evidenciada com propriedade por Valentim Carrion, em citação feita por Adalberto Martins:

A segurança e medicina do trabalho é a denominação que trata da proteção física e mental do homem, com ênfase especial para as modificações que lhe possam advir do seu trabalho profissional. Visa, principalmente, às doenças e aos acidentes do trabalho. (in Manual Didático de Direito do Trabalho, Malheiros Editores, 2003, p. 292).

Como dito acima, não obstante esta demonstração de que o tema relativo a acidente de trabalho tem íntima ligação com a seara trabalhista, os feitos que discutiam os danos daí decorrentes eram resolvidos pela Justiça Comum.

Com a superveniência da EC 45/04, surgiram vários questionamentos sobre a competência suscitados perante os tribunais superiores, tendo decidido o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do CC 7.204, que as ações de indenização por acidente de trabalho eram de competência da Justiça Trabalhista e que as ações em trâmite perante a Justiça Comum, sem sentença proferida até o advento da citada Emenda, deveriam ser remetidas à Justiça do Trabalho.

Porém, uma situação peculiar ainda suscitava dúvidas: era aquela em que a ação não era interposta pelo trabalhador, mas por herdeiro deste em caso de morte em razão do acidente.

O Superior Tribunal de Justiça, por força do disposto no artigo 105, inciso I, alínea “d”, da Constituição Federal, recebeu diversos conflitos de competência discutindo o tema, culminando com a edição da Súmula 366 em novembro de 2008, a qual tem a seguinte redação:

Compete à Justiça estadual processar e julgar ação indenizatória proposta por viúva e filhos de empregado falecido em acidente de trabalho (CORTE ESPECIAL, julgado em 19/11/2008, DJe 26/11/2008).

Sem embargo de tal posicionamento, entendemos, data venia, que tal conclusão sequer poderia ter sido objeto de súmula, uma vez que implica manifesta invasão de competência e ofensa à Constituição Federal.

A citada súmula, em última análise, acaba por apresentar interpretação ao artigo 114 da Constituição, ou seja, não trata de ofensa a lei infraconstitucional, mas regula matéria cuja competência para apreciar e definir o entendimento final é do Supremo Tribunal Federal. Diga-se, ainda, que cria uma situação jurídica complicada, pois a Justiça Comum, em casos de acidente de trabalho, se eventualmente suscitar conflito de competência, terá a matéria decidia pelo STJ com base em súmula, sendo que a interpretação do dispositivo constitucional somente poderia ser feita, frise-se, pelo STF.

É digno de nota, ainda, o fato de que o Supremo Tribunal Federal já decidiu que pouco importa que a ação de indenização por acidente do trabalho tenha sido ajuizada por herdeiro da vítima, esta é de competência da Justiça do Trabalho. Veja-se a ementa de dois precedentes da Corte Suprema sobre a matéria:

EMENTA: CONSTITUCIONAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. CONVERSÃO EM AGRAVO REGIMENTAL. CONSTITUCIONAL. COMPETÊNCIA PARA JULGAR AÇÕES DE INDENIZAÇÃO DECORRENTE DE ACIDENTE DE TRABALHO PROPOSTA PELOS SUCESSORES. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA LABORAL. AGRAVO IMPROVIDO. I – É irrelevante para definição da competência jurisdicional da Justiça do Trabalho que a ação de indenização não tenha sido proposta pelo empregado, mas por seus sucessores. II – Embargos de declaração convertidos em agravo regimental a que se nega provimento. (RE 482797 ED, Relator(a): Min. RICARDO LEWANDOWSKI, Primeira Turma, julgado em 13/05/2008, DJe-117 DIVULG 26-06-2008 PUBLIC 27-06-2008 EMENT VOL-02325-06 PP-01109)

EMENTA:I.Embargos de declaração convertidos em agravo regimental. II.Competência. Justiça do Trabalho. Ação de indenização por danos resultantes de acidente do trabalho, proposta contra o empregador perante a Justiça estadual, que pendia de julgamento de mérito quando do advento da Emenda Constitucional 45/04. 1. Ao julgar o CC 7.204, 29.06.2005, Britto, Inf.STF 394, o Supremo Tribunal, revendo a entendimento anterior, assentou a competência da Justiça do Trabalho para julgar as ações de indenização por danos, morais ou materiais, decorrentes de acidente de trabalho, ajuizadas após a EC 45/04. 2. A nova orientação alcança os processos em trâmite pela Justiça comum estadual, desde que pendentes de julgamento de mérito (v.g. AI 506.325-AgR, 23.05.2006, 1a T, Peluso; e RE 461.925-AgR, 04.04.2006, 2a T, Celso), o que ocorre na espécie. 3. Irrelevante para a questão da competência que se cuide de ação proposta por viúvo de empregada das embargantes, falecida em decorrência do acidente de trabalho: trata-se de direito patrimonial, que, com a morte do trabalhador, se transmitiu aos sucessores. 4. Agravo regimental desprovido. (RE 509353 ED, Relator(a): Min. SEPÚLVEDA PERTENCE, Primeira Turma, julgado em 25/06/2007, DJe-082 DIVULG 16-08-2007 PUBLIC 17-08-2007 DJ 17-08-2007 PP-00057 EMENT VOL-02285-08 PP-01660)

Em outra oportunidade já nos manifestamos pela validade e importância da verticalização de jurisprudência, inclusive com a edição e aplicação de súmulas, o que somente contribui para a segurança jurídica. Contudo, humildemente, entendemos que a situação evidenciada no presente trabalho deve ser revista, porquanto se está permitindo que matéria de cunho constitucional esteja sendo definitivamente decidida em tribunal superior, que não detém competência para tanto.

Entendemos que o direito decorrente do acidente de trabalho é de natureza patrimonial e, portanto, passível de transmissão aos herdeiros do trabalhador, de sorte que, uma vez a ação tendo como causa de pedir um acidente ocorrido no curso da relação de trabalho, a matéria deve ser resolvida no âmbito da Justiça Trabalhista.

Ressalta tal interpretação o fato de que, nesses casos, será discutida a causa do evento danoso, se o empregador agiu com culpa ou não, se forneceu equipamentos adequados à segurança do trabalhador, se fiscalizou sua utilização, se os materiais empregados na proteção do trabalhador eram ou não adequados e suficientes à prevenção do acidente, bem como se decorreu de culpa exclusiva ou mesmo concorrente da vítima.

Diga-se, ainda, que os efeitos do pronunciamento judicial favorável à vítima ou seu sucessor desaguará em discussões acerca de prova dos vencimentos do trabalhador, situação que tem reflexos, no caso dos herdeiros, na fixação de eventual pensão devida pelo passamento de seu ente e, muitas vezes, mantenedor da subsistência.

Isto demonstra ser inegável o equívoco da Súmula 366 do STJ, pois permite uma situação dúplice para uma mesma causa de pedir, uma vez que, se a ação por acidente de trabalho for proposta pelo trabalhador, terá seu trâmite perante a Justiça Obreira e, caso ajuizada por um sucessor seu, a solução do litígio se dará na Justiça Comum, sendo que, em ambos os casos, os questionamentos acerca da responsabilidade pelo evento danoso e suas consequências serão os mesmos, conforme delineado acima.

Assim, com base nestas breves linhas, concluímos que a questão relativa a acidentes de trabalho está ligada à seara trabalhista e eventual dano que daí decorra, seja ele moral ou material, deve ser objeto de apreciação pela Justiça Obreira, ainda que a ação para ressarcimento seja ajuizada pelos herdeiros da vítima.

 

REFERÊNCIAS:
BRASIL. Congresso Nacional. Constituição Federal. Brasília, DF, 1988.
Lei n. 5.869, de 11 de janeiro de 1973 (Código de Processo Civil).
MARTINS, Adalberto. Manual Didático de Direito do Trabalho, Malheiros Editores, 2003, p. 292.

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