Imigração e Direito

O fenômeno migratório: um retrato atual

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31 de dezembro de 2009, 11h38

A migração internacional pode ser facilmente definida como o direito de o cidadão deslocar-se, seja deixando determinado Estado (emigração), seja ingressando em outro com intenção de nele estabelecer-se (imigração).

Há muito se discute o direito de migrar em contraponto ao direito de o Estado proibir, de um modo geral, o ingresso de estrangeiros em seu território.

Desde os tempos mais remotos constata-se uma gama de razões que impulsionam a migração, seja espontânea ou compulsória, que no primeiro caso justifica-se desde a necessidade de expandir o comércio para o exterior, passando pela própria natureza migrante do indivíduo, até o controle demográfico. A migração compulsória impulsiona-se pelo caráter impositivo, por motivos de convulsões sociais, perseguições de cunho político, religioso, de origem e raça,  por banimento ou opressões outras que não permitam ao cidadão o exercício da defesa da própria vida no Estado de origem.

É bem verdade que durante razoável período da História a imigração caracterizava-se pela liberdade de locomoção, mas durante o século XX iniciaram-se as restrições à imigração com o surgimento do “sistema de cotas”, que estabeleceu limites numéricos para a admissão em determinados Estados. Posteriormente, a incidência de impostos, seguidos de limitações em razão do estado de saúde do migrante, origem e condição pessoal também constituíram-se fatores restritivos à migração.

Com o advento da Globalização situações inusitadas trouxeram preocupações mais amplas, que, estabelecendo escalas de “valores”, mostram terem sido elevados a patamares que transcendem a condição pessoal do migrante para se justificarem em conceitos que vão desde o acentuado conteúdo nacionalista até mesmo ao legítimo direito de defesa da ordem interna e dos interesses nacionais.

Ocorre que, segundo o entendimento de alguns doutrinadores, a globalização provoca dialeticamente o “localismo”, que pode ser traduzido no sentimento de medo dos povos perderem sua identidade, e em razão disto, supervaloriza-se os traços culturais internos em detrimento da integração em seu sentido mais amplo.

Países que no passado tiveram expressivas emigrações tornaram-se países de destino e, por esse motivo, se desenvolveram, mas, contrario senso, passaram a impor regras restritivas, inclusive criminalizando a imigração irregular, e, consequentemente, criando políticas elitistas de seleção de estrangeiros. Para tais práticas, a justificativa se ampara na necessidade de se proteger o mercado interno visando não elevar suas estatísticas de desemprego e até mesmo como forma de prevenir possíveis ataques terroristas.

Que cada país tenha seu direito soberano de fixar regras de controle do ingresso, permanência e saída de estrangeiros de seu território é inegável. O que não se pode admitir é que no século XXI pessoas ainda estejam sendo exploradas laboral e sexualmente, presas, rejeitadas e destituídas de direitos, não detendo uma adequada proteção dos Estados pelo simples fato de serem imigrantes irregulares.

Há algum tempo sabe-se que para uma regulação dos fluxos migratórios é necessário promover uma ampla discussão entre os países de origem, de destino e de trânsito, com a participação, claro, dos próprios migrantes, para se identificar os fatores que levam as pessoas a migrarem, visando sejam combatidas essas causas e não os migrantes.

Imaginar que a “governabilidade dos fluxos migratórios” resume-se em fechar fronteiras, expulsar imigrantes e proteger seu mercado interno da mão-de-obra estrangeira não parece razoável no mundo atual, onde não são impostas barreiras, por exemplo, aos avanços científicos e tecnológicos.

Ademais disto, simplesmente criminalizar a imigração irregular é fortalecer organizações criminosas especializadas em falsificação de documentos e tráfico de pessoas e de migrantes, já que a pessoa que pretende residir em determinado território e que vê tal procedimento dificultado, acabam tornando-se vítimas de indivíduos inescrupulosas que prometem e vendem facilidades inexistentes.


As vulnerabilidades e discriminações dos migrantes derivam de como é exercido o poder de soberania em cada país, tendo como raiz a definição dos direitos básicos dos nacionais e estrangeiros. O conceito de cidadão e a necessidade de respeito aos direitos básicos do homem devem ser os mesmos a todos os residentes num país, independente da nacionalidade. Esse princípio está assim sacramentado em nossa Constituição no artigo 5º, como cláusula pétrea, ou seja, de eficácia absoluta, que, de tão rígido, não é passível de alteração.

Nos últimos dois anos, o Governo brasileiro avançou, em muito, com práticas e compromissos internacionais para que o tema migração e direitos humanos sejam tratados em conjunto. Para tanto, a Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, que possui, entre outras, a competência para tratar da situação jurídica de estrangeiros no Brasil, adotou uma série de medidas articuladas.

Após amplo e democrático debate, foi elaborado por uma Comissão instituída pelo Ministro da Justiça um anteprojeto de lei que visa substituir o atual texto legal, conhecido como Estatuto do Estrangeiro – Lei nº 6.815, de 19 de agosto de 1980, alterada pela Lei nº 6.964, de 09 de dezembro de 1981 – que até pela época em que foi concebida, possui resquícios de segurança nacional e proteção do mercado interno. Encaminhado ao Congresso Nacional em ato solene do senhor Presidente da República em julho de 2009, o Projeto de Lei (PL) nº 5.655, de 2009, representa um esforço para que o Brasil possa adequar-se à realidade migratória contemporânea.

Alicerçado nos direitos humanos, o PL prevê como princípios norteadores da política migratória a adoção de medidas facilitadoras para regular os fluxos migratórios, rechaçando comportamentos xenófobos, deportações em massa, entre outras práticas abusivas advindas de situação migratória irregular como, por exemplo, a exploração de mão-de-obra que a reduz a condições análogas à de escravidão e outras formas de delitos transnacionais.

Entre as previsões mais humanitárias destaca-se a previsão de que não será negado o acesso à educação básica, à saúde, à assistência social e sanitária a qualquer estrangeiro que se encontre no Território Nacional, independentemente de sua situação migratória além de prever a possibilidade de concessão de residência ao estrangeiro que tenha sido vítima de tráfico de pessoas e se encontre em situação migratória irregular, sendo-lhe assegurado o retorno ao país de origem ou outro país que indique na hipótese de não desejar a residência.

Ademais, o PL cria a figura da residência, permitindo, assim, que todos os vistos temporários ou permanentes sejam concedidos na forma de residência. O resultado prático é que se o estrangeiro atender aos requisitos para sua concessão e estiver no Território Nacional poderá solicitar no Brasil a residência, não sendo mais necessário deixar o país e ingressar com novo visto.

Sancionada em 02 de julho de 2009, a Lei nº 11.961, popularmente conhecida como “Anistia”, regularizou mais de 40 mil estrangeiros em situação irregular. A medida permite ao estrangeiro os mesmos direitos e deveres previstos na Constituição Federal aos nossos nacionais, à exceção daqueles privativos de brasileiros natos. Entre esses direitos, destacam-se a liberdade de circulação no território nacional e o pleno acesso ao trabalho remunerado, à educação, à saúde pública e à Justiça.

O objetivo era beneficiar os estrangeiros que muitas vezes aqui chegam em busca de novas oportunidades ou melhores condições de vida, mas, em razão da própria situação de irregularidade e, consequente, falta de documentos, deparam-se com realidades diferentes e não conseguem se regularizar, vivendo à margem da sociedade privados dos mais elementares direitos inerentes ao homem e por essas razões se vêem muitas vezes obrigados a  procurar meio ilegal de sobrevivência.


Revestindo-se de caráter essencialmente humanitário, a medida também se converte em uma resposta clara, imediata e eficiente à comunidade internacional, que se volta para ações de inaceitável intolerância aos migrantes, e confirma a sensibilidade com que o Governo brasileiro tem abordado as questões migratórias, demonstrando claramente ao mundo nossa preocupação com os cidadãos que vem de fora e o quanto somos avessos ao tratamento discriminatório dado a essas pessoas por alguns países que, no discurso, dizem-se respeitadores e baluartes dos direitos humanos.

No âmbito regional, importantes instrumentos foram recentemente ratificados e promulgados no Brasil: o Acordo de Residência Mercosul (Decreto 6.964/2009) e o Acordo de Residência Mercosul, Bolívia e Chile (Decreto 6.975/2009). Negociados em 2002 pela Secretaria Nacional de Justiça (SNJ) por ocasião da Reunião de Ministros do Interior do Mercosul, somente agora foram finalizados os tramites necessários à sua vigência internacional por todos os países.

 Com os Acordos, nacionais brasileiros, argentinos, paraguaios, uruguaios, bolivianos e chilenos poderão livremente fixar residência no território de qualquer desses países ou nele regularizar-se, ficando isentos de multas ou outras sanções administrativas inerentes à sua situação migratória, assegurados os mesmos direitos civis e sociais dos nacionais do país de residência.

Os pedidos de residência ao amparo do Acordo já podem ser formulados em qualquer unidade da Polícia Federal, e consiste na concessão de uma residência temporária de dois anos, que, noventa dias antes de expirar, poderá ser transformada em permanente por solicitação do interessado.

Outro importante Acordo negociado e recentemente aprovado pela Resolução CMC nº 18/08, é o que de Documentos de Viagem, que dispensa a utilização de passaporte para os nacionais dos dez países que compõe o Mercosul ampliado. O Acordo até então em vigor só contemplava os Estados Parte do Mercosul, e permitia exigências além do expressamente previsto no texto legal, o que muitas vezes dificultava os procedimentos de controle migratório, principalmente de brasileiros nos outros países.

No plano internacional extra-regional, merece destaque as tratativas entre Brasil e Reino Unido levadas a efeitos a partir de julho de 2008, quando os Ministros das Relações Exteriores e do Interior do Reino Unido solicitaram a implementação de uma série de medidas a serem concretizadas nos seis meses subsequentes, sob pena de introduzirem um regime de vistos ao Brasil, hoje inexistente. Isto porque, segundo aquelas autoridades, foram identificados abusos contra o sistema de imigração daquele país perpetrados por visitantes brasileiros.

Tal atitude foi adotada pelo Reino Unido em relação a uma série de países,  ampla e internacionalmente noticiada. Como consequência, o Brasil posicionou-se no sentido de que a imposição de vistos seria um retrocesso no tema migratório, mas que julgava oportuno estabelecer diálogos bilaterais como forma de regular o fluxo migratório de nacionais entre os dois países.

Assim, em uma primeira reunião bilateral foi definida a necessidade de ampliar a cooperação entre autoridades brasileiras e britânicas para impedir a fraude na utilização de passaporte e outros documentos falsos; intercâmbio de experiências, informação e treinamento sobre a prevenção ao tráfico de pessoas e de migrantes e aos crimes associados à migração; aprimoramento dos mecanismos de controle de entrada de estrangeiros e das comunicações entres autoridades consulares e migratórias e promoção de campanhas de informação visando divulgar os benefícios e as oportunidades da imigração legal e os riscos da imigração irregular.

Por ocasião de uma segunda reunião em dezembro de 2008, decidiu-se pela manutenção do atual sistema de dispensa de vistos consulares para os nacionais de ambos países, e negociou-se um instrumento para a cooperação em assuntos migratórios, objetivando o intercâmbio de experiências, informações e demais formas para tratar, de forma efetiva, da questão dos fluxos migratórios irregulares, incluindo a prevenção e a repressão do tráfico ilícito de migrantes. O Memorando de Entendimentos foi assinado em 24 de março de 2009, e os problemas e conseqüências advindas da migração irregular continuam na agenda dos dois países.


Todos os dias, e em qualquer parte do mundo, há pessoas sendo humilhadas, sofrendo, indefesas, todas as formas de abusos praticados pelo poder do crime organizado e rogando pela ajuda de alguém. Não bastasse isso, ainda tem que se submeterem ao constrangimento Estatal, que, por vezes, ignora as violações dos direitos humanos de que está sendo vítima o migrante para fazer valer a política constritiva, fato este que prejudica, inclusive, a própria segurança interna das instituições. Os governos tem a obrigação de refletir sobre o tema e assumir um compromisso, um pacto, não apenas diplomático ou técnico, mas inclusive pessoal, de foro íntimo, eis que todos tem responsabilidades.

Vale destacar também, que a Lei brasileira que trata do Instituto do Refúgio é reconhecida pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados – Acnur e pela própria comunidade internacional como uma das mais modernas, avançadas e humanitárias do planeta.

O Brasil, sendo um país formado eminentemente por imigrantes, com sua população mestiça, composto por pessoas de várias raças, nacionalidades, grupos sociais, etnias e religiões, constitui um exemplo de que essas diferenças em nada representam óbices à plena integração das pessoas, à criação de um sentimento favorável ao imigrante, e à tolerância. O Governo brasileiro reconhece a importância do tema e da evidente contribuição dos imigrantes à formação de uma sociedade e sua imprescindibilidade para o desenvolvimento econômico, cultural e social.

Há algum tempo diz-se que o Brasil havia deixado de ser um país de imigração para ser um país de emigração. Com a recente crise que assolou o mundo e fragilizou as economias de várias nações, da qual o Brasil saiu-se muito bem, foi possível verificar o retorno de vários brasileiros, que ainda puderam comemorar a alta na taxa de emprego.

Não há como quantificar precisamente nossos nacionais lá fora. Há muito a estimativa encontra-se estagnada entre 3 a 3.5 milhões de brasileiros que representa menos de 2% de nossa população. Em contrapartida, nos últimos dois anos foram autorizados mais de 80 mil contratos de trabalho para estrangeiros no Brasil; uma média de mais de 100 milhões de dólares todos os anos são trazidos inicialmente por novos investidores estrangeiros; além dos vistos concedidos no exterior, a critério do Ministério das Relações Exteriores, e os pedidos de permanência decididos na Secretaria Nacional de Justiça do Ministério da Justiça, que facilmente somam uma média de 50 mil por ano.

Por essas e outras razões, constatamos que hoje o Brasil volta a ser hoje, um país muito mais de imigração do que de emigração.

Por fim, espera-se que as autoridades e a sociedade possam compreender que os temas aqui abordados estão presentes em todos os momentos de nossas vidas, gerando reflexos das mais variadas naturezas tanto no contexto pessoal como no aspecto social, isto porque que transcendem os limites do individualismo para assumirem relevância de interesse internacional, e fazem do ser humano, um ser humanitário.

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