Paquiderme cinquentenário

“Informatização é feita sobre estrutura antiga”

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27 de dezembro de 2009, 11h02

Prestes a deixar a presidência do maior tribunal do país, Roberto Antonio Vallim Bellocchi, de 68 anos, concedeu entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo em seu gabinete, no Tribunal de Justiça de São Paulo, assessorado por seis magistrados que o auxiliam cotidianamente. Nesses dois anos de gestão, 2008-2009, Bellocchi conta que travou intensa batalha em busca de recursos para suprir as necessidades do poder que dirige, e, para não deixá-lo cair na indigência e no tédio, enfrentou muitos desafios e empenhou-se na aprovação pela Assembleia Legislativa dos projetos que reputa vitais para a instituição. Criou fóruns e instalou comarcas por todo o estado. Mas ele reconhece que todo esse esforço é pouco diante do "grande déficit" com que se debate o tribunal. O TJ-SP tem 355 desembargadores, 2.010 juízes e 45 mil servidores às voltas com 19 milhões de ações na primeira instância.

"Há momentos em que o crime compensa", desabafou ele em entrevista ao jornalista Fausto Macedo. O presidente do TJ cobra "mudança urgente, brutal", na Lei de Responsabilidade Fiscal. "Antes da Lei Fiscal, o tribunal ficava com 7,6% da receita do Estado. Agora caiu para 4%. Tem de mudar a Lei Fiscal", argumenta o desembargador. Bellocchi admite que o Judiciário brasileiro é um "modelo superado, artesanal", mas exige respeito à toga. Defende 60 dias de férias para sua classe, porque acha "justo", e diz que "está doído, muito triste" com a sucessão de escândalos de corrupção.

Leia a entrevista.

Por que o déficit impressionante do Judiciário?
O estado de São Paulo é segundo colocado no país em volume de processos. O primeiro é o país inteiro. A Emenda 45, de 2004, extinguiu os tribunais de alçada, converteu quatro tribunais em um só. Cada tribunal trouxe seu acervo, daí o volume que se formou. Estamos informatizando. Enquanto não mudarem as leis que conferem prerrogativas processuais ao poder público em juízo nenhuma medida valerá a pena. O Estado tem prazo em quádruplo para contestar, prazo em dobro para recorrer, recurso obrigatório, não paga custas. E nunca se investiu adequadamente no Judiciário. O Judiciário é um Poder que incomoda por sua independência.

O que falta?
Aumentar o orçamento é absolutamente indispensável, já se pensando em duas ou três gestões para frente. Não adianta calcular de maneira econômica e linear. O TJ de São Paulo é o maior tribunal do mundo. Emitimos 12 mil certidões por mês. Antes da Lei Fiscal o tribunal ficava com 7,6% da receita do Estado. Agora caiu para 4%. Tem de mudar a Lei Fiscal.

Para onde vai o dinheiro do TJ?
Estamos executando meta fundamental que é a informatização, a partir de convênio com o governo do Estado. A verba chegou, R$ 70 milhões. Estamos informatizando as varas das execuções criminais, depois as das execuções fiscais. O orçamento caiu, de R$ 7 bilhões para R$ 5,7 bilhões. O que nos ajudou muito foram as verbas suplementares. Faço um ato de Justiça ao governador José Serra. Nos investimentos do tribunal em concursos, por exemplo, nunca faltou a verba necessária.

Então, onde está o problema?
Na área de pessoal. O TJ é prestador de serviço. Temos dificuldades para pagamento dos servidores que tanto se empenham. Precisa ter uma reavaliação de metas. A inflação afeta o poder de face e o poder nominal da moeda. Não adianta negar, basta percorrer supermercado para ver que há um processo de desgaste da moeda. Repercute nos salários congelados. Tem o teto, tem proibição disso e daquilo. Os vencimentos não são flexíveis. Os servidores sofrem, como os juízes. A Constituição está sendo descumprida. Querem economizar, mas são 2 mil processos que chegam todo dia. A perda é enorme. Admitimos mais de 2 mil servidores, na verdade reposição, em 2008. Veja que 770 escreventes ingressaram, 706 deixaram o TJ.

O Judiciário é modelo superado?
É. Teve origem europeia, através dos portugueses, das ordenações filipinas, manoelinas e afonsinas. Criou-se uma estrutura artesanal durante 100 anos, com lei de sucessão em cartório, oficial maior, escrivão, praxes de tabelião. Ingressei na magistratura em 1966. De lá para cá a evolução foi pouca. A informatização está se assentando sobre uma infraestrutura antiga. Sofremos com as críticas. O Judiciário paga preço alto com a descrença. Aqui se recorre de tudo, é cultural. Cada desembargador recebe 10 recursos interlocutórios todo dia e ainda assim produz 1.500 votos por ano. Não existe nada igual em lugar nenhum do mundo. A formalidade processual exagerada é causa da lentidão. Círculo vicioso. Não estamos dando conta do recado, mas eu afirmo que os juízes, todos eles, fazem demais, muito além do que é humano.

Recebe muito pedido de deputado?
Eles combatem muito no sentido de tentar beneficiar suas regiões de influência. Insistem na instalação de varas, criação de comarcas, na elevação de entrância. O tribunal entende isso com a maior naturalidade. É legítimo.

É justo ter 60 dias de férias?
É justo. O magistrado trabalha com situações estressantes, o raciocínio e a solidão. É um homem solitário e só trabalha com litígio. A nossa casa é o palco dos litígios. Temos colegas afastados por problemas gravíssimos de saúde mental e física. O juiz vive sozinho, decide sozinho. Sofre com tudo isso. Muitos magistrados tiram férias para colocar o serviço em dia. Levam os processos para casa. Os juízes sacrificam suas férias. Há uma emenda no Congresso restaurando janeiro como recesso forense. Precisa ser aprovada, é uma necessidade.

Dinheiro nas cuecas e nas meias de políticos o envergonha?
Isso dói. Imaginei que a teoria do mensalão tivesse sido superada com exemplos passados. Agora são três os mensalões. Virão outros? É difícil para um brasileiro, mormente para um homem há tantos anos na vida pública que conviveu com tantos quadros políticos respeitáveis. É triste ver o retrocesso dos costumes republicanos. É muito desagradável ver o regime republicano maculado por histórias de cuecas, meias, gravatas. Nos envergonha.

Por que essa gente nunca vai para a cadeia?
A investigação não é muito ágil e a própria lei que regula esses crimes é reinterpretada de vários lados. O problema é essa flexibilidade que marca vários tipos de conduta ilícita no que tange a essas leis que punem o colarinho-banco. Pode levar à prescrição.

O presidente Lula enviou ao Congresso projeto que inclui a corrupção no rol de crimes hediondos. Dá certo?
A corrupção, antes de ser um crime, é moral. Será que há necessidade de transformar em crime aquilo que a consciência rejeita? Já está no Código Penal.

Desapontado?
Há momentos, é duro dizer isso, difícil para o cidadão, para o magistrado mais ainda. Mas há momentos em que o crime compensa. É muito doloroso isso, mas há momentos na história brasileira em que o crime compensa. Porque vai levar à impunidade, ao esquecimento. O Brasil vai ter de rever um dia.

O povo voltou às ruas, os protestos em Brasília o preocupam?
O povo tem suas respostas, nem sempre da maneira que os detentores de poder esperam. O premiê italiano Silvio Berlusconi foi agredido. O povo pode querer outras respostas. Manifestação popular é oito ou oitenta, os extremos. Não há a linha intermediária da negociação.

O que fazer?
A legislação penal tem momentos em que é convidativa. Pratica o crime, passa um tempo, reduz aqui, reduz ali. O Brasil precisa rever sua política de direito penal e de direito processual penal. Antes que seja tarde.

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