Loteamento político

Juíza condena ex-assessor de Dornelles por fraudes

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18 de dezembro de 2009, 19h23

A juíza federal Valéria Caldi Magalhães, da 8ª Vara Federal Criminal do Rio de Janeiro, condenou 16 dos 22 acusados de fraudarem a Previdência Social em 1996. Nas 158 páginas da sentença, Valéria Caldi não economizou na pena. Considerado autor intelectual das fraudes, João Carlos Boechat Capita, ex-assessor do então ministro da Indústria e Comércio, hoje senador Francisco Dornelles (PP-RJ), além de uma pena de 20 anos, dois meses e dois dias de reclusão em regime fechado, foi multado em nada menos do que R$ 255.816.960 – 307 dias multa para cada um dos 448 peculatos cometidos contra a Previdência. Cada dia multa foi estipulado em quatro salários mínimo. Cabe recurso.

Também foi de 20 anos de prisão a pena para a gerente regional do INSS Maria do Carmo Batista de Almeida, a Carminha. Segundo a sentença, ela foi indicada para o cargo por influência do então ministro Dornelles e teve participação ativa na fraude que “teria beneficiado diretamente o partido político a que ambos (Dornelles e Boechat Capita) pertenciam”. Enquanto Boechat Capita foi condenado por peculato e formação de quadrilha, a pena de Carminha referiu-se apenas ao peculato. A multa que lhe foi aplicada é de R$ 31.977.120. Ela e outros seis acusados já tinham sido condenados por formação de quadrilha para fraude contra o INSS em outros processos na 2ª vara Federal, referente aos golpes aplicados em outra agência da Previdência.

Os chefes dos postos do INSS subordinados à gerência regional também receberam condenações altas em termos de multa. Antonio Gezilda Galdino Rocha e Silva, que comandava o posto Filomena Nunes foi condenada a – 11 anos 1 mês e 10 dias e ao pagamento de multa de R$ 339.822. Edmar Marcus Eduardo gentil Guedes, que respondia pelo posto do Quitungo, teve uma pena de prisão de 13 anos e um mês e uma multa de R$ 288.579. Já o chefe do posto André Azevedo, Jair Gonçalves de Almeida Filho, embora tenha sido condenado a 11 anos e um mês e dez dias, deve pagar multa de R$ 579.855. Elso de Souza, do posto Penha Circular, foi quem teve a menor pena: dois anos de reclusão. Os demais tiveram penas de reclusão e de multas variadas[1].

As fraudes no INSS ocorreram entre agosto e dezembro de 1996 quando, com uso de matrículas de servidores mortos ou aposentados, os funcionários do INSS comandados por Carminha criaram novas senhas para registrarem no sistema benefícios que não existiam. Foram criados 448 benefícios ao valor de até R$ 5 mil (máximo que uma gerência regional poderia autorizar). Com isto, segundo consta da sentença, o rombo na Previdência apenas com as fraudes deste grupo foi de R$ 2,6 milhões.

Valéria Caldi destaca na sentença: “O valor de cada liberação era bastante alto e incomum para os padrões da época, variando entre R$ 3.500,00 e R$ 5.000,00, em contraposição à média observada para aquele tipo de pagamentos (frise-se que de agosto a dezembro de 1996, o valor do salário mínimo era de R$ 112,00, portanto os pagamentos eram superiores a 30 salários mínimos)”.

No processo, que hoje está com 4.409 páginas, além de 115 apensos, 11 inquéritos e 24 processos administrativos anexados, foram autorizadas escutas telefônicas e quebras de sigilos bancários. Boechat Capita chegou a ser preso em 2002,quando os procuradores da República ligados à Força Tarefa de combate às fraudes Previdenciárias do Rio (da qual faziam parte ainda policiais federais e auditores da Previdência) denunciaram 55 pessoas por fraudes contra a Previdência, em três processo diferentes.

Na sentença a juíza bate firme na prática de loteamento político dos cargos públicos. Ela diz abertamente que “ficou evidenciado para este juízo uma total promiscuidade entre o público e o privado, entre os servidores fraudadores e seus comparsas cooptados para funcionar como procuradores nos saques dos benefícios”.

E prosseguiu: “Com efeito, hoje pode-se dizer notória a existência de uma prática nefasta de “loteamento político” de órgãos públicos em todas as esferas do Poder. Lamentavelmente, membros de todos os escalões – dos mais altos aos mais baixos dos Poderes da República – se acham no direito de tratar a coisa pública como se privada fosse. Assim, a escolha de seus dirigentes e ocupantes de cargos de chefia, gerência ou cargos em comissão se dá, na grande maioria dos casos, por indicações políticas que não consideram os critérios que deveriam ser utilizados em tais ocasiões: a capacidade e honestidade. Muitas vezes, tais indicações se prestam, justamente a viabilizar a prática de atos criminosos, tendo como móvel o ataque ao erário público”.


Para exemplificar, ela lembrou que já se sabia da fama de Maria do Carmo como fraudadora da Previdência quando ela foi indicada para o cargo de gerente regional da Agência da Previdência na Penha. Carminha já tinha sido afastada do posto Marechal Floriano — onde atendeu a esposa de Dornelles, criando um vínculo com o político e seu assessor — por suspeitas da sua chefia imediata. A juíza, na sentença, explicou:

“Maria do Carmo era contumaz fraudadora da Previdência Social e já na época de sua indicação para a gerência Penha havia elementos mais do que fortes para permitir o conhecimento desta circunstância por parte de Boechat e do Partido Político que ele integrava”. Em seguida, ela questiona: “A pergunta que não quer calar diante destas constatações é: qual o interesse de um partido político ou de algum(ns) de seus membros em nomear uma fraudadora do INSS para uma determinada Gerência? Poderia haver algum interesse legítimo na indicação de pessoas ímprobas para a ocupação de cargos estratégicos dentro de uma autarquia que movimenta milhões e milhões em recursos públicos? Obviamente, não. E a verdade veio à tona durante as investigações.”

Ela comentou as indicações políticas e suas finalidades. “Admitir, que várias destas indicações políticas para cargos do INSS especialmente gerências e chefias onde se exerce o trabalho de ponta de concessão de benefícios se prestam exclusivamente à prática de atividades criminosas não significa imaginar coisas, mas sem enxergá-las como eles efetivamente acontecem”.

E continuou: “Tal introdução se faz necessário, pois é fato incontroverso nestes autos, como se demonstrará adiante, que Maria do Carmo foi alçada à condição de gerente por indicação política do então deputado federal Francisco Dornelles, à época integrante do Partido da Frente Liberal (atual Partido Progressista). João Carlos Boechat Capita, pessoa diretamente ligada ao referido congressista, é acusado de ser um dos autores intelectuais da fraude que teria beneficiado diretamente o partido político a que ambos pertenciam”.

Na sentença, a juíza confirma a denúncia que apontou Boechat Capita como “um dos autores intelectuais da fraude que teria beneficiado diretamente o partido político a que ambos pertenciam". Segundo consta do processo, semanalmente a gerente Maria do Carmo levava à sede do PP onde trabalhava Boechat, uma sacola de supermercado com R$ 140 mil em dinheiro. Era o chamado “trabalho político”. Uma das pessoas a confirmar estas remessas de dinheiro foi Reginaldo Cavalcanti da Silva, o Reginho. Filho de servidor aposentado do INSS, ele circulava pela agência e postos como se fosse servidor, e teve papel de destaque não apenas nas fraudes deste grupo, mas também nas cometidas em outras agências e postos, tanto que foi investigado em diversos inquéritos. Em depoimento à Polícia ele disse: “Que ela (Maria do Carmo) havia sido colocada por políticos, pois precisava esse trabalho para levantar fundos para a campanha; que ela falou que Boechat, que era assessor de Francisco Dornelles, foi o responsável pela nomeação dela; que quem pediu a Maria do Carmo para fazer este trabalho político foi o próprio Boechat; que a principio Maria do Carmo pensou que fosse um valor bem menor do que ele estava querendo; (…) que deveria ser repassado para Boechat semanalmente cento e quarenta mil reais; (…) que quem levava o dinheiro para Boechat era o interrogando e Maria do Carmo; que entregavam o dinheiro para ele na av. Beira Mar 262. 7º andar, que lá funcionava um diretório do PPB. Que Boechat tinha uma sala; que o interrogando e Maria do Carmo entravam na sala de Boechat, colocavam uma sacola de mercado com o dinheiro em cima da mesa e ele puxava para dentro da gaveta; que esteve no escritório de Boechat cerca de onze ou doze vezes”.

A juíza não se convenceu quando a defesa de Boechat, a cargo do advogado George Tavares – que já decidiu recorrer da sentença – bateu na tecla da negativa de autoria. A defesa afirmou que Maria do Carmo e os demais que o denunciaram, o fizeram por pressão do delegado da Polícia Federal e dos procuradores da República. Um dos motivos do convencimento da juíza foi a confirmação de que Boechat, ao saber que Maria do Carmo estava sendo afastada da gerência regional, tentou influenciar politicamente pela sua permanência no cargo.


A juíza também se baseou na conversa entre Boechat e Dornelles, que foi grampeada com autorização judicial. Na sentença, ela transcreve seguinte diálogo:

Ministro: Me dia uma coisa: em 96 e 97

Boechat: Ãh!

Ministro: A sua declaração…

Boechat: Ãh!

Ministro: Ce…é…tinha…é..97 trinta mil e..e..96 vinte e sete mil recebidos de pessoas físicas. Aquilo foi aluguel?

Boechat: Não aquilo é…é…como é que se chama? Carnê Leão, né?

Ministro: Eu sei, mas é…carnê leão de quê?

Boechat: É…ué…ué…declara…cê pega dois …é ..é geralmente era dois mil e quinhentos por mês.

Ministro: Sei

Boechat: Aquilo era para compor renda.

Ministro: Sei

Boechat: Aí, descontava imposto de renda na…pagava imposto de renda.

Ministro: Eu sei, mas a pe…o…o … se perguntarem as pessoas que te pagaram? Foi por serviços prestados?

Boechat: É.

Ministro: Hein?

Boechat: É, aquilo ali.. aquilo é serviço prestado

Ministro: Sei. Recebido de pessoa física.

Boechat: É…É…

Ministro: Sei.

Boechat: Por serviços prestados. E tem os comprovantes, é … da… daquele Darf, Darg, Não sei que paga lá…

Ministro: Eu sei, mas tem o nome das pessoas que fizeram isto?

Boechat: Não, não, ali não.

Ministro: Não, mas você tem?

Boechat: Não, ai eu tenho que… compor isso. Aquilo ali é que …que o contador me orientou, que era para compor renda.

Ministro: Não, então vamos pensar em…em..termos …é ..pos ..mais desastrosos.

Boechat: Ãh!

Ministro: Se disser: “Foi a Carminha que deu?” To pensando no termo mais…mais …

Boechat: Sei.

Ministro: E se ela disser: “Eu dava tanto por mês”. Não tem condições de dizer que foi outra pe… não tem outra pessoa nisso. Não, né?

Em seguida, a juíza faz alguns questionamentos. “Nesse diálogo, Francisco Dornelles pergunta a Boechat “e se ela disser que dava tanto por mês’? Ainda que se admita que tal pergunta derivasse de uma preocupação fundada de ser injustamente incriminado, o mesmo não se pode dizer da seguinte: Por que Boechat foi questionado diretamente nos seguintes termos: ‘não tem condições de dizer que foi outra pessoa?’”.

E ainda: “Por que Boechat e Dornelles se preocuparam tanto em encontrar justificativas para os valores recebidos em dinheiro por Boechat no ano das fraudes e declarados no seu imposto de renda como rendimentos prestados sem a identificação das pessoas que fizeram os pagamentos?” Ela questiona também: “Por que Boechat e Dornelles estariam se preocupando com hipóteses extremas se elas fossem de fatos infundadas?”

As explicações dadas por Boechat, prossegue a juíza, em seu interrogatório e reiteradas por sua defesa técnica "são, evidentemente, inaceitáveis diante da prova acima esmiuçada. Veja-se que das conversas não se extrai nenhum temor a respeito de uma acusação mentirosa, leviana. Em nenhum momento se fala em “armação” ou “gravação editada”, ou se faz qualquer referência à possibilidade de Boechat ser prejudicado gratuitamente”.

Ela concluiu que João Carlos Boechat Capita efetivamente associou-se em caráter estável e permanente aos acusados, especialmente Maria do Carmo, Antonia Gezilda, Reginaldo, Jair e Edmar, "mantendo contato direto com os três primeiros durante o período da associação e da prática dos crimes por ele coordenados.”


 

:[1] Condenados por peculato e quadrilha: Joao Carlos Boechat Capita 20 anos, 2 meses e 20 dias e multa de R$ 255.816.960; Marcus Eduardo Gentil Guedes , 13 anos. 1 mês e 10 dias e multa de R$ 288.579; Elso De Souza , 2 anos de reclusão; Sérgio Luiz Pereira Rodrigues , 5 anos 8 meses, e multa de R$ 3.720; Reginaldo Cavalcante Da Silva Filho, 10 anos e 11 meses e multa de R$ 916.608; José Guzzo, 10 anos e 11 meses e multa de R$ 916.608; Emilia de Souza Pinto, 7 anos e 11 meses e multa de R$ 33.480; Paulo César Gomes, 7 anos e 11 meses e multa de R$ 33.480; José Carlos Aletto de Lima – peculato e quadrilha – 5 anos, 5 meses e 15 dias – R$ 10.571. Condenados por peculato que já estavam condenados por formação de quadrilha em outro processo: Maria do Carmo Batista De Almeida, 20 anos e multa de R$ 31.977.120; Antonia Gezilda Galdino Rocha e Silva, 11 anos 1 mês e 10 dias e multa de R$ 339.822; Jair Goncalves de Almeida Filho, 11 anos 1 mês e 10 dias e multa de R$ 579.855; Edmar Cruz de Almeida, 6 anos e oito meses e multa de R$ 798.560,00; Edilson da Silva , 2 anos e 11 meses (penas restritiva de direito) e multa de R$ 4.433;

Ilcemar Alves da Silva, 3 anos e 4 meses (pena restritiva de direito) e multa de R$ 3.968,00; Rosimeri Barbosa, 2 anos e 11 meses (pena restritiva de direito)e multa de R$ 3.751,00; Absolvidos: Ana Regina Simões Palhares; Marcia Valeria Masello Monteiro; Cristina Nunes Quintela; Sidney Martins Ferreira; Jose Carlos Paiva; Maria de Lourdes Soares Marques;

Processo nº 98.0035066-7

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