Retardo nas ações

Justiça também traz casos de assédio processual

Autor

12 de dezembro de 2009, 7h02

O vocábulo assédio remete à ideia de uma conduta intencional e repetitiva por parte de um agente e, ao mesmo tempo, perturbadora e prejudicial por parte de uma vítima. Assim é no Assédio Sexual onde o agente, aproveitando-se de sua condição de ascendência ou de superioridade hierárquica, chantageia a vítima a fim de obter favorecimentos sexuais egoísticos. Também é assim na figura do assédio moral, ou mobbing, em que o agente persegue a vítima de forma reiterada, através de práticas de psicoterror, como apelidos jocosos e estigmatizantes, discriminações negativas ou desprezo acintoso sempre com o escopo de minar a autoestima da vítima e, por conseguinte, excluí-la do mundo do trabalho.

A figura do assédio processual não é diferente. Como o próprio nome sugere, o assediante atua dentro da relação jurídica processual, objetivando retardar a prestação jurisdicional e/ou prejudicar dolosamente a parte contrária através do exercício reiterado e abusivo das faculdades processuais, geralmente sob a dissimulada alegação de estar exercendo o seu direito de contraditório e de ampla defesa.

Com efeito, assinala Mauro Paroski, o que caracteriza o assédio processual “não é o exercício moderado dos direitos e faculdades processuais, mas o abuso e o excesso no emprego de meios legalmente contemplados pelo ordenamento jurídico, para a defesa de direitos ameaçados ou violados”. (1)

Nesse sentido é a decisão da juíza Mylene Pereira Ramos, da 63ª Vara do Trabalho de São Paulo, Processo 02784200406302004: "Praticou a ré ‘assédio processual’, uma das muitas classes em que se pode dividir o assédio moral. Denomino assédio processual a procrastinação por uma das partes no andamento de processo, em qualquer uma de suas fases, negando-se a cumprir decisões judiciais, amparando-se ou não em norma processual, para interpor recursos, agravos, embargos, requerimentos de provas, petições despropositadas, procedendo de modo temerário e provocando incidentes manifestamente infundados, tudo objetivando obstaculizar a entrega da prestação jurisdicional à parte contrária."

Não se ignore que a celeridade processual sempre foi um valor proeminente no processo civil e trabalhista (artigo 765, da CLT e artigo 125, II, do Código de Processo Civil). Com o advento da Emenda Constitucional 45 esta axio foi guindada ao status de cláusula pétrea em nossa Constituição Federal, conforme se vê da nova redação ao artigo 5º., LXXVIII, in verbis: “a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.

Consoante as atentas lições de Cândido Rangel Dinamarco, o direito moderno não se satisfaz com a garantia da ação como tal e por isso é que procura extrair da formal garantia desta algo de substancial e mais profundo. Assim, acrescenta o jurista paulista, “o que importa não é apenas oferecer ingresso em juízo, ou mesmo julgamento de mérito; indispensável é que, além de reduzir os resíduos de conflitos não jurisdicionalizáveis, possa o sistema processual oferecer aos litigantes resultados justos e efetivos, capazes de reverter situações injustas. Tal é a ideia de efetividade da tutela jurisdicional, coincidente com a plenitude do acesso à justiça e a do processo civil de resultados” (2)

Logo, não há como o operador jurídico cogitar que o assédio processual careça de regulamentação legal para ser aplicado. “Assédio processual. Indenização. Retardamento do processo. Conduta reprovável”. (TRT, 9ª Região, 00511-2006-562.09.00-3 – AC 33280/2008 – 9ª Região – Tobias de Macedo Filho – Juiz Relator. DJPR: 16/09/2008).

O aparato principiológico da Carta Constitucional não só alberga como fomenta a aplicação de qualquer instituto que colime imprimir a razoável duração do processo, devendo o agente ser responsabilizado por todos os prejuízos de ordem material e imaterial daí decorrentes. Ademais, acentua Mauro Cappelletti, em alguma medida toda interpretação judicante é criativa, mostrando-se inevitável um mínimo de discricionariedade na atividade jurisdicional, máxime para efetivar a norma processual e os direitos sociais (3).


Nesse sentido já vem decidindo alguns pretórios civis e trabalhistas: “Configurado está o assédio processual quando a parte, abusando do seu direito de defesa, interpõe repetidas vezes medidas processuais destituídas de fundamento com o objetivo de tornar a marcha processual mais morosa, causando prejuízo moral à parte que não consegue ter adimplido o seu direito constitucional de receber a tutela jurisdicional de forma célere e precisa. A exclusão da pena de litigância de má-fé em recursos relacionados à presente questão, anteriormente interpostos, em nada influencia a configuração do assédio processual in casu, posto que só a análise de todos os atos que formam a relação processual permite verificar a conduta da parte e o seu intento procrastinatório. A quantificação do dano moral pela prática do assédio processual deve observar o número de incidentes praticados com intuito procrastinatório, bem como o tempo despendido na espera processual.” (TJMT – 6ª Câmara Cível – Relator Desembargador Mariano Alonso Ribeiro Travassos – Recurso de Apelação Cível nº. 89150/2007 – Classe II – 20 – Comarca de Lucas do Rio Verde – julgado em 10.09.2008 – disponibilizado no DJE nº. 7941 em 17.09.2008 e publicado em 18.09.2008).

“A prática do assédio processual deve ser rechaçada com toda a energia pelo Judiciário. Os Tribunais brasileiros, sobretudo os Tribunais Superiores, estão abarrotados de demandas retóricas, sem a menor perspectiva científica de sucesso. Essa prática é perversa, pois além de onerar sobremaneira o erário público torna todo o sistema brasileiro de justiça mais lento e por isso injusto. Não foi por outro motivo que a duração razoável do processo teve de ser guindado ao nível constitucional. (…) O processo é um instrumento dialógico por excelência, o que não significa que possa admitir toda ordem de argumentação”. (TRT, 3ª. R., 4ª. T., Processo : 00760-2008-112-03-00-4 RO, Rel. Jose Eduardo de RC Junior, DJMG 21/2/09)

A indenização que será devida à parte prejudicada deriva da simples aplicação do instituto da responsabilidade civil, ex vi do artigo 927 do Código Civil: “aquele que, por ato ilícito (artigos 186 e 187), causar dano a outrem, fica obrigado a repará-lo”.

Não se negue que a prática de assédio processual enquadra-se no conceito de abuso de direito, in casu no exercício abusivo do direito de defesa e de petição ao Poder Judiciário. Sobre o tema é oportuna a transcrição do artigo 187 do Código Civil: “Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes”. Com previsão mais específica, assinale a regra do artigo 16 do Código de Processo Civil: “responde por perdas e danos aquele que pleitear de má-fé como autor, réu ou interveniente”.

Logo, “pelo fato de uma das partes cometer ato ilícito endoprocessual, aqui nomeado de assédio processual, causando danos a outrem, deverá repará-los na justa medida dos prejuízos que causar” (4).

Ante a sua proximidade, urge distinguir as figuras do assédio processual e da litigância de má-fé. A litigância de má-fé contém suas hipóteses de caracterização, expressa e casuisticamente, previstas em lei (artigos 17 e 600 do CPC), inclusive em relação à multa, estipulada pelo legislador entre 1% a 20% do valor atribuído à causa (artigo 18, CPC), e em até 20% do valor atualizado da execução (artigo 601, CPC). Observa-se que em ambas as hipóteses o legislador fez questão de dizer que tais valores não prejudicam a fixação de outras sanções de natureza processual, material ou indenizatória.

O assédio processual, por sua vez, não deixa de ser também uma litigância maliciosa do agente, contudo mais ampla porque caracterizada pela sucessão intensa de atos processuais que, em conjunto, sinalizam para o propósito deliberado e ilícito de obstruir ou retardar a efetiva prestação jurisdicional e/ou prejudicar a parte ex-adversa.


No caso do assédio não há multa, mas a fixação de uma indenização que possa reparar os prejuízos materiais e/ou compensar os danos morais decorrentes. E nem se defenda a aplicação analógica da multa prevista nos artigos 18 e 601, sob pena de ofensa à ordem constitucional na parte que preceitua inexistir pena sem prévia cominação legal (artigo 5º, XXXIX).

Na litigância de má-fé a multa legal deve ser fixada dentro do próprio processo, enquanto no assédio processual a indenização poderá ser buscada a posteriori, em ação autônoma, ou arbitrada pelo próprio julgador que a declarou dentro dos chamados efeitos reflexos da sentença, os quais, nas lições de Pontes de Miranda, “são repercussões eventuais da decisão que, mesmo que não previstas em lei, decorrem da própria eficácia natural da sentença” (5).

A rigor o destinatário da multa e da indenização é a parte ex-adversa que sofreu o prejuízo da prática do assédio, conforme dispõem o artigo 927 do Código Civil e o artigo 18 e 601 do CPC. Contudo, em casos especiais, mormente em sede de Ação Civil Pública, a indenização e/ou a multa poderão ser revertidas em prol de um fundo gerido por um Conselho Federal ou Estadual, a exemplo do FAT, conforme prevê o artigo 13 da Lei 7347/85.

É verdade que o Estado também tem interesse na celeridade processual, contudo a sua compensação financeira pelo retardamento ou obstrução provocado pelo agente já se encontra presente na incidência das respectivas custas processuais sobre os valores da multa e/ou indenização deferidas em juízo, ressalvada a fattispecie prevista no parágrafo único do artigo 14 do CPC (6).

Referências
1. Paroski, Mauro Vasni. Reflexões sobre a morosidade e o assédio processual na Justiça do Trabalho. Fonte: www.jus2.uol.com.br/doutrina. Acesso: 1/10/2009.
2. DINAMARCO, Cândido Rangel. Fundamentos do Processo Civil Moderno. 4. ed., São Paulo: Malheiros, 2001, t.2, p. 798.
3. CAPPELLETTI, Mauro. Juízes Legisladores? Tradução de Carlos Alberto Álvaro de Oliveira. Porto Alegre: Sérgio Fabris Editor, 1993; Reimpressão 1999; pág. 42.
4. PAIM, Nilton Rangel Barreto. HILLESCHEIM, Jaime. O assédio processual no processo do trabalho. Revista LTr – Legislação do Trabalho; Vol. 70, n. 09, Setembro de 2006, pág. 1112.
5. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcante. Comentários aos CPC, tomo V. 5ª. edição, Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999, pág. 49. Registre-se a distinção de Pontes de Miranda acerca dos efeitos anexos e dos efeitos reflexos da sentença: “Efeitos anexos são aqueles efeitos previstos em lei, tais como a obrigação de recolher tributos do imposto de renda em decorrência da condenação; ou mesmo o próprio recolhimento previdenciário. Efeitos reflexos são repercussões eventuais da decisão que, mesmo que não previstas em lei, decorrem da própria eficácia natural da sentença. Os efeitos anexos ou reflexos são efeitos secundários da sentença, que não integram a coisa julgada material.
6.
Art. 14, CPC: – São deveres das partes e de todos aqueles que de qualquer forma participam do processo:
I – expor os fatos em juízo conforme a verdade;
II – proceder com lealdade e boa-fé; III – não formular pretensões, nem alegar defesa, cientes de que são destituídas de fundamento; IV – não produzir provas, nem praticar atos inúteis ou desnecessários à declaração ou defesa do direito. V – cumprir com exatidão os provimentos mandamentais e não criar embaraços à efetivação de provimentos judiciais, de natureza antecipatória ou final. Parágrafo único. Ressalvados os advogados que se sujeitam exclusivamente aos estatutos da OAB, a violação do disposto no inciso V deste artigo constitui ato atentatório ao exercício da jurisdição, podendo o juiz, sem prejuízo das sanções criminais, civis e processuais cabíveis, aplicar ao responsável multa em montante a ser fixado de acordo com a gravidade da conduta e não superior a 20% do valor da causa; não sendo paga no prazo estabelecido, contado do trânsito em julgado da decisão final da causa, a multa será inscrita sempre como dívida ativa da União ou do Estado.

Autores

  • Brave

    é advogado, mestre e doutor pela UFPR, professor da pós-graduação da Faculdade de Direito de Curitiba e da Universidade Cândido Mendes no RJ, presidente da Academia Paranaense de Estudos Jurídicos e autor de obras jurídicas editadas pela Editora LTR.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!