Decisões em agravo

A multa e o direito de julgamento pelo colegiado

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10 de dezembro de 2009, 15h59

O Código de Processo Civil, que é de 1973, vem passando por sucessivas reformas buscando atender, de um lado, ao reclame social no sentido de que os processos sejam cada vez mais céleres e econômicos, e de outro, do próprio Poder Judiciário, para dar vazão ao número sempre crescente de demandas instauradas e que posteriormente aportam, mediante recursos, nos tribunais. Conquanto seja inegável o bom propósito com que vêm sendo implementadas as reformas, a que autorizou a aplicação de multas em caso de recursos inadmissíveis ou infundados causa preocupação, pois, na forma como vem sendo utilizada, inclusive pelo Excelso Pretório, compele o cidadão a conformar-se com decisão monocrática proferida pelo relator do processo, retirando-lhe o direito constitucional de ter a questão julgada por órgão colegiado do tribunal.

É necessário esclarecer, de início, que não se está a defender aqui a proliferação de recursos de intuito protelatório, assoberbando o Poder Judiciário e tornando ineficaz a Justiça. O que se pretende é uma reflexão quanto à existência ou não de direito constitucional a julgamento por órgão colegiado dos tribunais e se na busca da concretização desse direito caberia a imposição de multa.

Conquanto a autorização legal para a imposição de multa não seja nova, resultante do acréscimo do parágrafo 2º ao artigo 557 do CPC, por intermédio da Lei 9.756/98, recentemente passou a ter larga aplicação, mormente pelo Egrégio Supremo Tribunal Federal, que passou, nos Agravos Regimentais interpostos de decisões proferidas pelos relatores, a sistematicamente impor multa de 5% (cinco por cento) do valor corrigido da causa, com fundamento nos artigos 557, parágrafo 2º, 14, II e III e 17, VII, do CPC, sob os fundamentos de caráter abusivo, litigância de má-fé, dentre outros. É exemplo de decisão nesse sentido:

“AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO. CONCURSO DE CREDORES. DEPÓSITO DO PREÇO DA ARREMATAÇÃO. IMPOSSIBILIDADE DA ANÁLISE DA LEGISLAÇÃO INFRACONSTITUCIONAL. OFENSA CONSTITUCIONAL INDIRETA. AGRAVO REGIMENTAL AO QUAL SE NEGA PROVIMENTO. Imposição de multa de 5% do valor corrigido da causa. Aplicação do art. 557, § 2º, c/c arts. 14, inc. II e III, e 17, inc. VII, do Código de Processo Civil” (AI 601.826 AgR SP, Relatora Min. CÁRMEN LÚCIA, Agte. Banco do Brasil S.A., Agvdo. Fornasa e outros, DJe 084, publicado em 08.05.09, Ement. Vol. 2359-09, pág. 1731).

A imposição sistemática de multas na quase totalidade das decisões proferidas em razão de Agravos Regimentais parece, data vênia, destinada a inspirar no advogado o temor de lutar pelo direito de ter a demanda julgada por órgão colegiado do tribunal, causando tais multas, dissabores aos profissionais, mormente àqueles que exercem a advocacia na condição de empregado. Conforme leciona Barbosa Moreira, “na tradição da Justiça brasileira, sempre coube ao relator processar o feito e prepará-lo para o julgamento; não, porém, julgá-lo. Essa era tarefa que de ordinário se confiava por inteiro ao colegiado”[1]. No mesmo sentido, o professor Cândido Dinamarco lembra que “aos relatores competia basicamente lançar o relatório nos autos, proferir primeiro o voto e redigir o acórdão quando vencedor[2].

Na verdade, essa função restrita do relator se justificava pela garantia processual até então tida como cerne do princípio do duplo grau de jurisdição: de que “as decisões de segunda instância sempre se proferem em juízos colegiados, de que participam, pelo menos, três magistrados”[3]. Tal garantia fora conceituada pelo jurista Pontes de Miranda[4], da seguinte forma:

“A regra, para os recursos, é a colegialidade das decisões. Quer dizer: a pluralidade de julgadores, com o fim político de assegurar diversos exames no mesmo tempo, além do duplo ou múltiplo exame, no tempo, pelo juiz do primeiro grau e os demais juízes superiores. A ciência ensina-nos, hoje, que a assembléia não nos veio da reflexão: foi a reflexão que veio da assembléia. Portanto, o homem é que é produto da assembléia. Essa prioridade do exame múltiplo ao mesmo tempo, em relação ao exame de um só, se transforma em superioridade sempre que desejamos maior certeza. A colegialidade para decisão dos recursos obedece a esse pendor íntimo do homem quando se deseja guiar pela ‘razão’.”

Conquanto tenha o direito processual sofrido intensa alteração, visando à celeridade, é importante ressaltar, lembrando que a missão do Poder Judiciário é a pacificação social e realização da Justiça, que o ao se iniciar a primeira onda de reforma do CPC, com a atribuição de poderes ao relator para negar seguimento a recurso, foi discutida a constitucionalidade da alteração ao artigo 557 do CPC, tendo o Excelso Pretório entendido que “tem legitimidade constitucional a atribuição conferida ao Relator para arquivar ou negar seguimento a pedido ou recurso intempestivo, incabível ou improcedente e, ainda, quando contrariar a jurisprudência predominante do tribunal ou for evidente a sua incompetência (RI/STF, art. 21, § 1º; Lei 8.038/90, art. 38), desde que, mediante recurso -— Agravo Regimental, por exemplo — possam as decisões ser submetidas ao controle do colegiado” (ADI-MC-AgR 1507/RJ, Relator MIN. CARLOS VELLOSO, DJ 06-06-1997, pág. 24873, Ementário vol. 1872-02, pág. 299; MI-AgR 595/MA, Relator Min. CARLOS VELLOSO, DJ 23-04-1999, pag. 15, Ementário vol. 1947-01, pag. 01, RTJ vol. 69-02, pag. 445; MI-AgR 375/PR, RELATOR MIN. CARLOS VELLOSO, DJ 15-05-1992, pág. 6781, Ementário vol. 1661-01, pag. 44, RTJ vol. 139-01, pág. 53).

Várias outras decisões foram tomadas nesse sentido, percebendo-se que a constitucionalidade da atribuição legal de julgamento monocrático, atribuído ao relator, dependia da possibilidade da submissão de tais decisões ao colegiado. Sucede que, se embora a lei assegure ao jurisdicionado a possibilidade de atribuir ao colegiado o julgamento, sem o que não teria amparo constitucional tal decisão, se ao fazê-lo tem a imposição de multa, ou mesmo o risco da sua imposição, como sucedeu nos casos citados e em inúmeros outros, na verdade, sob a justificativa de maior celeridade e efetividade do Poder Judiciário, está sendo retirado o direito que o cidadão tem de julgamento pelo órgão colegiado. Evidentemente, se existir mesmo o risco da imposição de multa, tal poder conferido ao relator é incompatível com o devido processo legal, com os meios de defesa e recursos a ela inerentes (art. 5º, LV da CF), sendo inconstitucional a regra contida no art. 557, § 2º do CPC.

Deveras, o artigo 102, da Lei Maior dispõe que “compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe:” acrescentado, o inciso III “julgar, mediante recurso extraordinário, as causas decididas em única ou última instância, quando a decisão recorrida”, não constando do referido dispositivo atribuição, a relator, de poderes para julgar recurso extraordinário isoladamente. Foi por isso que os precedentes plenários aqui lembrados, terem firmado o entendimento de que a constitucionacilade do parágrafo 2º do artigo 557 do CPC, acrescentado pela Lei 9.756/98, foi admitida em razão da possibilidade de recurso para o órgão colegiado, reconhecendo tal direito. Assim é direito do jurisdicionado, inerente ao devido processo legal e ampla defesa, pelo qual não pode sancionado, sob pena de se estar retirando o acesso ao Poder Judiciário e descumprindo o artigo 5º XXXV e LIV e LV da CF., submeter as questões ao órgão colegiado sem a imposição de multa.

A imposição de multas não pode inspirar o temor de recorrer nem impedir que o jurisdicionando tenha acesso ao colegiado da Excelsa Corte para o julgamento dos recursos. Esse temor existe. Tanto é verdade o temor inspirado pelas multas que o recorrente, embora formule os presentes embargos de declaração com o sincero objetivo de que seja essa relevante questão apreciada pela Corte, em contraste com as decisões plenárias aqui citadas e com o próprio artigo 102, III, da CF, o faz com receio de que seja incompreendido, datíssima vênia, e que possa advir agravamento da sanção já imposta. Este tema, embora aqui não se cuide mais de apreciação das condições do Recurso Extraordinário, reveste-se de relevância jurídica e interesse social, pois ultrapassa o interesse subjetivo da parte nesta lide, como é evidente.


[1] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Algumas inovações, cit., p. 322.

[2] DINAMARCO, Cândido Rangel. O relator, a jurisprudência, cit., p. 128.

[3] MARQUES, José Frederico. Manual de Direito Processual Civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 1976, vol.3., 2ª parte, p. 103

[4] PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Comentários ao Código de Processo Civil: arts. 496-538. São Paulo: Forense, 1975, tomo VII, p. 11

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