Políticas adequadas

Combate às drogas e Estado Democrático de Direito

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9 de dezembro de 2009, 5h42

No dia 25 de agosto de 2009 a Corte Constitucional Argentina descriminalizou a posse de droga para uso próprio. Na ocasião, ao julgar recurso extraordinário interposto no caso Arriola e outros,[1] entendeu aquela Suprema Corte, por unanimidade, que o artigo 14, parágrafo 2º, da Lei 23.737/89, ao considerar crime a posse de pequena quantidade de droga destinada ao consumo pessoal de pessoa maior de dezesseis anos, afronta o artigo 19 da Constituição Argentina, que recomenda:

Artículo 19- Las acciones privadas de los hombres que de ningún modo ofendan al orden y a la moral pública, ni perjudiquen a un tercero, están sólo reservadas a Dios, y exentas de la autoridad de los magistrados. Ningún habitante de la Nación será obligado a hacer lo que no manda la ley, ni privado de lo que ella no prohíbe.

No Brasil, o artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/06) estabelece:

Art. 28.  Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas: I – advertência sobre os efeitos das drogas; II – prestação de serviços à comunidade; III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.

Com efeito, o tratamento atualmente dispensado pela legislação brasileira àquele que possui droga para consumo próprio, em relação ao previsto na revogada Lei 6.368/76, se mostra mais benevolente, por não prever a aplicação de pena privativa de liberdade, sequer por conversão, quando descumprida a originalmente imposta, de natureza diversa.

Entretanto, a interpretação/aplicação da lei penal num Estado que adote o perfil constitucional Democrático de Direito, caso do Brasil, muito mais do que uma análise subsuntiva, apropriada à hermenêutica pré-Kelseniana, requer uma abordagem a partir dos valores e princípios agregados na Constituição, que projetam suas forças normativas sobre todo o ordenamento jurídico, através do fenômeno denominado constitucionalização do direito. Nesse sentido assevera Barroso:

Os valores, os fins públicos e os comportamentos contemplados nos princípios e regras da Constituição passam a condicionar a validade e o sentido de todas as normas do direito infraconstitucional. Como intuitivo, a constitucionalização repercute sobre a atuação dos três Poderes, inclusive e notadamente nas suas relações com os particulares.[2]

No mesmo sentido alerta Streck:

Um texto jurídico (um dispositivo, uma lei, etc.) jamais é interpretado desvinculado da antecipação de sentido representado pelo sentido que o intérprete tem da Constituição.

Destarte, uma “baixa compreensão” acerca do sentido da Constituição – naquilo que ela sugnifica no âmbito do Estado Democrático de Direito – inexoravelmente acarretará uma “baixa aplicação”, problemática que não é difícil de constatar na quotidianidade das práticas dos operadores do Direito em terra brasilis. Por isto, pré-juízos inautênticos (no sentido de que fala Gadamer) acarretam sérios prejuízos ao jurista.[3]

Assim, tomando por base a constitucionalização do direito e os valores e princípios constitucionais, atuantes como vetores interpretativos que assegurem a unidade da Constituição, resta a pergunta: a pessoa que, no Brasil, for surpreendida com droga, destinada ao consumo próprio, merece a atenção do Direito Penal? De forma mais clara: é possível a criminalização dessa pessoa à luz dos valores constitucionais extraídos a partir do perfil constitucional acolhido na Constituição de 1988 — a saber: Democrático de Direito?

Tomando por marcos os princípios da lesividade e da insignificância, extraídos do fundamento da dignidade da pessoa humana, vetor maior a regular o labor do jurista, é a resposta a esse questionamento que se busca.

Na verdade, a conduta tida por criminosa, para além da adequação típica formal, merece análise à luz dos princípios de Direito Penal emergentes do Estado Democrático de Direito, a partir do fundamento da dignidade da pessoa humana, que impõe uma atuação seletiva e subsidiária do Direito Penal, para a proteção apenas dos valores tidos como indispensáveis à ordem social, a exemplo da vida, da liberdade e da propriedade, quando efetivamente ofendidos (tipicidade material).

Assim, há que se averiguar a tipicidade material da conduta tida por criminosa, pois “crime não é apenas aquilo que o legislador diz sê-lo (conceito formal), uma vez que nenhuma conduta pode, materialmente, ser considerada criminosa se, de algum modo, não colocar em perigo valores fundamentais da sociedade”.[4]

Nesse sentido, o princípio da lesividade determina que a conduta perpetrada pelo agente criminoso somente demandará a atenção do Estado, por meio do Direito Penal, quando ultrapassar o âmbito do próprio agente. Assim, questões que prejudiquem o agente em si, não merecem, segundo o princípio em tela, a atenção do Direito Penal.

Referido princípio vem sendo amplamente sustentado pela doutrina contemporânea, comprometida com as bases do Estado Democrático de Direito, que procura se divorciar da cultura conservadora de antanho. Na afirmação de Batista, o princípio da lesividade pode ser trabalhado em quatro pontos, a saber:

a) proibição de incriminações que digam respeito a uma atitude interna do agente;
b) proibição de incriminações de comportamentos que não excedam ao âmbito do próprio autor;
c) proibição de incriminações de simples estados ou condições existenciais;
d) proibição de incriminações de condutas desviadas que não afetem qualquer bem jurídico.[5]

Comentando o sustentado por Batista, assevera Greco:

Na verdade, podemos resumir todas as vertentes anunciadas por Nilo Batista em um único raciocínio: o Direito Penal só pode, de acordo com o princípio da lesividade, proibir comportamentos que extrapolem o âmbito do próprio agente, que venham atingir bens de terceiros, atendendo-se, pois, ao brocardo nulla lex poenalis sine injuria.[6]

Ao comentar o princípio da lesividade, Greco cita Gomes e tece considerações sobre o uso de drogas:

É portanto, em razão do princípio da lesividade, de observância obrigatória, que o Direito Penal está impedido de proibir, por exemplo, a automutilação, pois a conduta daquele que se quer mutilar não ultrapassa a pessoa do agente e não atinge, conseqüentemente, bens de terceiros.

Várias infrações penais têm sido questionadas, negando-se, inclusive, sua validade, quando submetidos ao “teste da lesividade”. Segundo Luiz Flávio Gomes, todos os tipos penais que prevêem delitos de perigo abstrato não se sustentariam. No mesmo sentido, adverte Mariano Silvestroni que “os delitos de perigo abstrato não podem ser admitidos em um direito penal baseado no princípio da lesividade.

A mera presunção de que certas condutas podem afetar a terceiros não basta para legitimar a ingerência punitiva se essa afetação não se produz realmente no caso concreto. Do mesmo modo, as contravenções penais de vadiagem, mendicância, embriaguez e, ainda, o que se tem mais discutido ultimamente, o crime previsto no art. 28 da Lei n.º 11.343/2006, que prevê o consumo de drogas.[7]

Ainda sobre o consumo de drogas, arremata Jiménez, penalista Ibero:

O consumidor de qualquer das substâncias qualificadas como drogas tóxicas, estupefacientes ou psicotrópicas, está atuando uma faceta de sua liberdade com relação à disposição de sua saúde de forma autônoma, ainda quando esta sofra menoscabos pelo prazer do consumo de narcóticos”[8]

A propósito, os crimes previstos na Lei de Drogas buscam proteger a saúde pública.

Noutro giro, o caso também comporta apreciação com base no princípio da insignificância.

Conforme consagrado, a configuração do delito consiste na tipicidade penal, a qual, no entendimento de Reale Júnior, pode ser definida como “a congruência entre a ação concreta e o paradigma legal ou a configuração típica do injusto”.[9]

A doutrina contemporânea, tomando por baliza os valores contemplados no Estado Democrático de Direito, divide a tipicidade penal em formal e conglobante. Discorrendo sobre mencionada divisão, preconiza Greco:

Tipicidade formal é a adequação perfeita da conduta do agente ao modelo abstrato (tipo) previsto na lei penal. (…)

Para que se possa falar em tipicidade conglobante, é preciso verificar dois aspectos fundamentais: a) se a conduta do agente é antinormativa; b) se o fato é materialmente típico.[10]

O fato materialmente típico é aquele que efetivamente lesiona um bem jurídico penalmente protegido, colocando em risco a paz social.

Assim, para que reste configurado o crime, além da adequação formal ao tipo penal, a conduta do agente deve ainda, efetivamente, atingir um bem jurídico penalmente protegido. Nesse norte:

Como registra Vico Mañas com precisão, a postura de um juízo de tipicidade formal não satisfaz a moderna tendência de reduzir ao máximo a área de influência do Direito Penal de seu reconhecido caráter subsidiário, já que manifesta a sua ineficiência como único meio de controle social. (…)

De fato, o objeto do Direito Penal deve ser descoberto com olhos postos sobre suas valorações e finalidades. Há que concluir que dos fenômenos observáveis na realidade deve extrair-se aqueles que são relevantes para valoração jurídico-penal. Desta maneira, a estrutura do fenômeno prévio ao Direito obriga a observar sua natureza no momento de configurar as regras jurídicas. E isso se dá em duas etapas: no processo de escolha das condutas potencialmente ofensivas aos bens jurídicos mais relevantes e na confirmação da ofensa material significativa ou de perigo potencialmente relevante de dano ao bem jurídico tutelado.

O juízo de tipicidade, para que tenha efetiva significância e não atinja fatos que devam ser estranhos ao Direito Penal, por sua aceitação pela sociedade ou dano socialmente irrelevante, deve entender o tipo, na sua concepção material, como algo dotado de conteúdo valorativo, e não apenas sob seu aspecto formal, de cunho eminentemente diretivo.

Para dar validade sistemática à irrefutável conclusão político-criminal de que o Direito Penal só deve ir até onde seja necessário para a proteção do bem jurídico, não se ocupando de bagatelas, é preciso considerar materialmente atípicas as condutas lesivas de inequívoca insignificância para a vida em sociedade.[11]

A ausência de tipicidade material, e em conseqüência da própria tipicidade penal, guarda relação com o citado principio, matriz interpretadora da norma penal que considera atípica uma conduta que não representa risco social, não tendo efetivamente lesionado um bem jurídico penalmente protegido, ao ponto de exigir a intervenção do Direito Penal. Nesse sentido, tem decidido o Excelso Pretório:

EMENTA: HABEAS CORPUS. PENAL MILITAR. USO DE SUBSTÂNCIA ENTORPECENTE. PRINCÍPIO DA INSIGNIFICÂNCIA. APLICAÇÃO NO ÂMBITO DA JUSTIÇA MILITAR. ART. 1º, III DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA. 1. Paciente, militar, condenado pela prática do delito tipificado no art. 290 do Código Penal Militar (portava, no interior da unidade militar, pequena quantidade de maconha). 2. Condenação por posse e uso de entorpecentes. Não-aplicação do princípio da insignificância, em prol da saúde, disciplina e hierarquia militares. 3. A mínima ofensividade da conduta, a ausência de periculosidade social da ação, o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento e a inexpressividade da lesão jurídica constituem os requisitos de ordem objetiva autorizadores da aplicação do princípio da insignificância. 4. A Lei 11.343/2006 — nova Lei de Drogas — veda a prisão do usuário. Prevê, contra ele, apenas a lavratura de termo circunstanciado. Preocupação, do Estado, em alterar a visão que se tem em relação aos usuários de drogas. 5. Punição severa e exemplar deve ser reservada aos traficantes, não alcançando os usuários. A estes devem ser oferecidas políticas sociais eficientes para recuperá-los do vício. 6. O Superior Tribunal Militar não cogitou da aplicação da Lei n. 11.343/2006. Não obstante, cabe a esta Corte fazê-lo, incumbindo-lhe confrontar o princípio da especialidade da lei penal militar, óbice à aplicação da nova Lei de Drogas, com o princípio da dignidade humana, arrolado na Constituição do Brasil de modo destacado, incisivo, vigoroso, como princípio fundamental (art. 1º, III). 7. Paciente jovem, sem antecedentes criminais, com futuro comprometido por condenação penal militar quando há lei que, em lugar de apenar — Lei n. 11 .343/2006 — possibilita a recuperação do civil que praticou a mesma conduta. 8. No caso se impõe a aplicação do princípio da insignificância, seja porque presentes seus requisitos, de natureza objetiva, seja por imposição da dignidade da pessoa humana. Ordem concedida.[12]

Assim, há que se considerar que o artigo 28 da Lei de Drogas (Lei 11.343/06), quando colocado à prova diante dos princípios da lesividade e da insignificância, corolários do fundamento da dignidade da pessoa humana, não subsiste, devendo o jurista, sobretudo aquele que decide, realizar o controle difuso de constitucionalidade, pois o mencionado tipo penal viola princípios extraídos do perfil constitucional adotado pela República Federativa do Brasil.

Não se trata aqui de incentivo ao uso de drogas, mas de questionamento acerca da sua constitucionalidade enquanto conduta prevista na legislação penal, ante aos princípios ora invocados.

Com efeito, o combate ao consumo de drogas, longe de demandar a atuação do Direito Penal sobre o usuário, requer a adoção de políticas públicas que efetivamente promovam o Estado Democrático de Direito, devendo prevalecer a prevenção, o tratamento e a inclusão social do usuário.

Bibliografia

BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de direito constitucional e internacional,São Paulo, n. 58, p. 129/173, jan.-mar. 2007.

BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. Rio de Janeiro: Renavan, 1996.

CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 1: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2009.

GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 4ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2004.

______________. Direito penal do equilíbrio: uma visão minimalista do direito penal. 3. Ed. Niterói: Impetus, 2008.

JIMÉNEZ, Emiliano Borja. Curso de política criminal. Valência: Tirant lo blanch, 2003.

LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio da insignificância no direito penal: análise à luz da lei 9.099/95: juizados especiais criminais, lei 9.503/97, código brasileiro de trânsito e da jurisprudência atual. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2000.

REALE JR. Miguel. Parte geral do código penal – nova interpretação. São Paulo: RT, 1988.

STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e constituição: da proibição de excesso (übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (üntermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Disponível em: http://leniostreck.com.br/index.php?. Acesso em: 18 set. 2009.


[1] Recurso de hecho 9080

[2] BARROSO, Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e constitucionalização do direito (o triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Revista de direito constitucional e internacional,São Paulo, n. 58, p. 129/173, jan.-mar. 2007, p. 141/142.

[3] STRECK, Lenio Luiz. Bem jurídico e constituição: da proibição de excesso (übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (üntermassverbot) ou de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais. Disponível em: http://leniostreck.com.br/index.php?. Acesso em: 18 set. 2009.

[4] CAPEZ, Fernando. Curso de direito penal, volume 1: parte geral. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 8.

[5] BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal. Rio de Janeiro: Renavan, 1996, p. 92-94.

[6] GRECO, Rogério. Direito penal do equilíbrio: uma visão minimalista do direito penal. 3. Ed. Niterói: Impetus, 2008, p. 78.

[7] Op. Cit., p. 79.

[8] JIMÉNEZ, Emiliano Borja. Curso de política criminal. Valência: Tirant lo blanch, 2003, p. 198.

[9] REALE JR. Miguel. Parte geral do código penal – nova interpretação. São Paulo: RT, 1988, p. 21.

[10] GRECO, Rogério. Curso de direito penal. 4ª ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2004, p. 70.

[11] LOPES, Maurício Antônio Ribeiro. Princípio da insignificância no direito penal: análise à luz da lei 9.099/95: juizados especiais criminais, lei 9.503/97, código brasileiro de trânsito e da jurisprudência atual. 2ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: RT, 2000, p. 114, 116/117.

[12] STF. HC 90125/RS. Rel. Ellen Gracie. DJ-e 05.09.08.

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