Censura prévia

Bloquear a notícia não restabelece o sigilo

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9 de dezembro de 2009, 9h11

De W.Rehnquist@edu para J.Barbosa@gov
Assunto: Censura à imprensa

Prezado ministro Joaquim Barbosa,
O senhor me detesta, mas achei que devia lhe escrever porque temos uma coisa muito forte em comum e eu precisava me comunicar com algum ministro do Supremo Tribunal Federal brasileiro. Hoje vocês vão votar o caso da censura imposta ao jornal "A Província de S. Paulo" (terá mudado de nome? Quem me fala dele é o Pedro de Alcântara, que por aí foi rei).

Preocupo-me com a projeção histórica de vosso tribunal.

Ministro Barbosa, eu estive durante 33 anos na Corte Suprema dos Estados Unidos (1972-2005), 19 dos quais presidindo-a. Ajudei a desmanchar o ativismo judicial que o senhor aprecia. Para ser sincero, também não gosto de suas ideias, mas temos uma velha e dolorosa afinidade: a dor nas costas. Nossos inimigos vivem na eterna expectativa de que venhamos a renunciar. Sei de colegas seus que, além de torcer pela sua desdita, murmuram que sua saída ocorrerá em 2013. Fique firme. Minhas dores eram tamanhas que me viciei em Placidyl. Fui internado, alucinei e ouvi vozes. Como o senhor, eu não aguentava ficar sentado por mais de duas horas e, por isso, perdi bons filmes, como "O Resgate do Soldado Ryan".

Aguentei a coluna estragada e morri no cargo em 2005, de câncer na tiroide, aos 81 anos.

A Constituição de vocês, como a nossa, proíbe a censura e o caso de hoje envolve o direito de a imprensa publicar gravações colhidas num inquérito cujo sigilo foi rompido. Eu sei o que há nele. Tenebrosas transações contra o erário e os princípios da moral pública e privada.

A censura será defendida sob o disfarce de sua condenação, desviando-se o debate para a questão de um sigilo que não foi quebrado pela imprensa. Bloquear a notícia não restabelece o sigilo, apenas estabelece a censura. É um truque antigo: "Sou contra a censura, mas ela não está em discussão… O que temos que decidir é outra coisa…"

Esse tipo de sustentação é eficaz em juízos de primeira instância. Com boa vontade, serve até para um recurso. Para a Suprema Corte, não. O Supremo Tribunal Federal é o guardião da Carta Constitucional. Num caso desses, ou ele cresce decidindo o litígio na sua essência, a livre circulação das informações, ou acanha-se, confundindo-se em aspectos periféricos do litígio.

Tenho autoridade para dizer isso porque esse foi o meu caminho em 1971 quando, como vice-procurador-geral, tentei impedir a publicação de um conjunto de documentos secretos relacionados com a Guerra do Vietnã. Eu argumentei que não se tratava de censura, mas de defesa da segurança nacional. Em menos de um mês a corte julgou o caso e perdi por 6 a 3. Se eu tivesse prevalecido e o Pentágono liberasse mil páginas por ano, o serviço estaria concluído em 1978. A guerra acabou em 1975. Era de censura que se tratava.

A imprensa já fez muito mal ao mundo, mas a Constituição não manda que ela seja boa, manda que ela seja livre. Quem me conhece sabe que eu não gosto de jornais nem de jornalistas. Raramente vou além do noticiário esportivo e metropolitano, mas gosto das palavras cruzadas.

Diga aos seus colegas que, quando o Bill Rehnquist está do mesmo lado que os jornalistas, o caso é sério.

Cordialmente,
William Rehnquist

William Hubbs Rehnquist
Foi Juiz Associado da Suprema Corte dos Estados Unidos de 7 de Janeiro de 1972 a 26 de Setembro de 1986 e 16º Chefe de Justiça dos Estados Unidos, presidente da Suprema Corte, de 26 de Setembro de 1986 a 3 de Setembro de 2005. Seu grande legado como membro da Suprema Corte foi a defesa do federalismo contra a centralização do governo federal e a primeira limitação séria do poder do congresso de legislar sobre comércio tal como definido pela Constituição dos Estados Unidos. Morreu em 3 de Setembro de 2005, em Arlington, Virginia.

O Resgate do Soldado Ryan
Filme norte-americano de 1998, dirigido por Steven Spielberg e estrelado por Tom Hanks no papel do capitão John Miller e Matt Damon como o soldado Ryan. Tornou-se muito falado por suas realistas cenas de batalha e foi inspirado numa história real. A história se desenrola durante a Segunda Guerra Mundial, começando com o desembarque das forças aliadas na Normandia no Dia D, na Praia de Omaha. Após o ataque, descobre-se que três irmãos Ryan morreram em combate. Ao capitão John Miller (Tom Hanks) e seus homens é designada a missão de resgatar o último filho, James Francis Ryan, que era parte do pelotão de paraquedistas e caiu no lugar errado, podendo estar em qualquer lugar da França.

Artigo publicado originalmente nos jornais Folha de S. Paulo e O Globo desta quarta-feira (9/12).

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